Quem é o dono da TV?

Quem é o dono da TV?

Alzimar R. Ramalho

 Há muito tempo questões ligadas à produção audiovisual andavam esquecidas das pautas dos meios de comunicação, com exceção da imprensa especializada e publicações científicas. Com a digitalização do sinal e todos os desdobramentos técnicos e de conteúdo que o novo sistema irá proporcionar, a televisão tem ocupado espaço na agenda, não apenas na cobertura factual, como também em análises sobre o contexto no qual vem se desenhando a política de migração digital. Afinal, esse tema é central, pois estamos tratando de um serviço público, garantido pela Constituição e disponibilizado à iniciativa privada por meio de concessão. Por ser um espaço público, é patrimônio do Estado, não do governo.

Embora se tratando de um bem público, a implantação da televisão brasileira trilhou o caminho inverso ao dos modelos europeu e norte-americano. Começou privada, e somente depois de quase 20 anos, o telespectador brasileiro (inicialmente apenas os paulistas) passou a ter acesso ao modelo de TV pública, com a criação da TV Cultura. Nesse período também foram formadas as redes de alcance nacional. E, há menos de 20 anos, com a implantação dos sistemas por assinatura, o telespectador de maior poder aquisitivo passou a ter acesso a uma programação segmentada e maior diversidade de conteúdo.

Instrumento de unificação cultural

A história da televisão brasileira está disponível em várias publicações, principalmente sua cronologia de implantação. Mas o tema ainda não merece, principalmente por parte dos pesquisadores, uma atenção em volume compatível com a “avassaladora” (no entender de muitos) presença da TV no cotidiano das pessoas. Influindo nas conversas, na decoração das casas, na vida cotidiana, na informação e no lazer. Exerce, inclusive, grande influência na formação do senso de unidade nacional e, paradoxalmente, as reflexões a seu respeito são norteadas muito mais pela tendência à “demonização” do veículo, criticando-o por princípio e por preconceito. Para Marília Franco, a TV é “tão importante quanto a língua portuguesa, porque nos identifica. Em qualquer lugar do Brasil, se comentarmos sobre a novela das oito, somos compreendidos”.

Sabe-se que em televisão a maior qualidade implica, muitas vezes, a redução da audiência, deslocando-se o conceito de ‘elitismo’. Por baixa que seja a audiência, o público é de centenas de milhares de telespectadores, superior à audiência de qualquer outro meio. E, como pergunta Arlindo Machado, esse simples fato já não justifica toda a televisão? Outro fato que a justifica está na própria economia. A produção audiovisual brasileira, especialmente o cinema e a teledramaturgia, tem sido responsável pela divulgação da cultura brasileira para outros países. A escrava Isaura, de 1976, é um ícone desse sucesso internacional de produções brasileiras, tendo sido exibida em mais de 70 países, entre eles a China, Cuba e os Estados Unidos.

Coberturas esportivas também são destaque da televisão brasileira, cujas cotas de patrocínio superam, em rentabilidade para os clubes, a própria venda dos ingressos. E há quem acredite que, futuramente, a exportação de produtos audiovisuais passe a ocupar, na balança comercial, um status tão importante quanto os produtos agrícolas, como a soja.

Breve história

Até a primeira década de implantação, em 1960, a televisão brasileira esteve distante da linguagem audiovisual. Era o rádio na TV, com os mesmos patrocinadores, formatos, artistas e diretores já consagrados. Após esse período, com as possibilidades tecnológicas, passou a incorporar o teatro e o cinema, e programas como o TV de vanguarda, o Grande teatro Tupi, o Sítio do picapau amarelo levaram ao ar autores como Brecht, Lorca, Shakespeare e Monteiro Lobato. Rapidamente a televisão caiu no gosto popular.

A Rede Globo de Televisão, com seu padrão de qualidade, tem garantido a liderança isolada de audiência praticamente desde sua implantação. Mas essa hegemonia vem sendo periodicamente ameaçada, embora em horários ou programas pontuais. Entre alguns exemplos, a novela Pantanal, que em 1990 chegou a levar a audiência da extinta TV Manchete para 48 pontos, contra dez da Globo. Escrita por Benedito Ruy Barbosa, a trama trouxe como inovação a locação das cenas, 90% externas, e o nível alto de audiência masculina também é referência dessa obra. O SBT também experimentou seus momentos de glória, com o jornalístico Aqui, agora, em 1991, e a Casa dos artistas dez anos depois, quando superou os índices do Fantástico, da Globo. Agora, a bola da vez é a Record, que tem se arvorado como a vice-líder.

A política de concessões

Criada por um grupo empresarial (os Diários associados), a TV no Brasil se materializou como empresas eminentemente familiares e, como conseqüência do poder de decisão sobre quem poderia explorar as faixas de freqüência em radiodifusão, na década de 1930, tornou-se importante moeda de troca dos poderosos.        

O veículo servia aos interesses políticos e, em agosto de 1961, Carlos Lacerda, nos estúdios da TV Excelsior do Rio, acusou o então presidente Jânio Quadros de estar preparando um golpe de Estado. Em 1964, boa parte das emissoras divulgava repetidamente imagens das grandes “marchas com Deus pela liberdade”, demonstrando claramente posicionamento contrário aos ideais comunistas. A TV Tupi e demais órgãos Associados promoveram ainda a campanha “Dê ouro para o bem do Brasil” para pagar a dívida do país.

 Considera-se que o sucesso das novelas diárias, em meados de 1960, fez com que o governo militar montasse uma infra-estrutura básica no setor de telecomunicações para possibilitar a universalização do acesso. A TV “era encarada como instrumento estratégico desde o primeiro momento do novo regime”.

Por serem concessões públicas, o rádio e a TV eram os meios mais suscetíveis à censura. Ao contrário de outros veículos, que manifestavam claramente posições críticas, a TV optou pelo gênero predileto do público-alvo – o melodrama das telenovelas e uma linha popularesca de programação. No campo do jornalismo, permaneceram como exceções programas de entrevistas e de debates políticos, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a exemplo do Pinga-fogo, da TV Tupi de São Paulo.

A TV e a ditadura

No final de 1968, com o acirramento da censura por parte do regime militar, a participação do jornalismo ficou ainda mais reduzida, e os telejornais se mantinham no ar apenas para cumprir a legislação, com algumas exceções.

 Mas, ironicamente, a televisão também serviu de instrumento para a divulgação de idéias contrárias ao regime militar. Um mês depois da estréia do Jornal nacional, em outubro de 1969, o grupo que seqüestrou o embaixador norte-americano Charles Elbrick fez três exigências às autoridades para que fosse solto, e entre elas, a leitura de um manifesto na TV, escrito por Franklin Martins (atualmente Ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), que conforme reporta Simões, “foi lido por um constrangido Cid Moreira, tão apavorado com o teor do documento que chegou a dizer ao vivo que estava ali como mero leitor do texto”.

Outro fato que marcou o telejornalismo durante o regime militar foi a morte do diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, Vladimir Herzog, que havia assumido o cargo em setembro de 1975, depois de ter sido aprovada sua indicação pelo SNI (Serviço Nacional de Informações). O Brasil vivia o início da abertura política, mas Herzog foi mais uma vítima do regime.

Os movimentos musicais também encontraram acolhida na TV, especialmente a partir dos festivais organizados pela Excelsior, Record e Globo, a partir de 1965. Durante dez anos foram revelados jovens artistas que retratavam a realidade brasileira de modo bastante combativo, mesmo diante da força da censura.

Os programas de auditório, a exemplo do rádio, também marcaram a história da TV brasileira. De 1960 a 1980, os apresentadores Silvio Santos, Flávio Cavalcanti e Chacrinha disputavam a liderança de audiência, e essa concorrência levou à opção por atrações sensacionalistas, como incorporação de espíritos durante os programas, ou casos de bigamia. No programa de Chacrinha, a censura chegou a se indispor até com o tamanho dos maiôs das chacretes. Já Silvio Santos sempre foi o mais bem-comportado. Tanto que ­ganhou sua própria concessão.

Na telenovela houve muitos fatos relacionados à censura, e o mais bizarro ocorreu em 1976, em O casarão, de Lauro César Muniz, veiculada pela Rede Globo. Por causa da Lei Falcão, que proibia qualquer aparição de candidatos nas redes de televisão, nem o personagem que era candidato a prefeito na ficção se livrou da censura. Saiu do ar por uns tempos. De 1985, com o retorno dos civis ao governo, até a promulgação da Constituição de 1988, as emissoras se valeram de filmes anteriormente proibidos e as novelas diárias utilizaram o erotismo e a sensualidade para aumentar a audiência.

A abertura política não significou liberdade de expressão, como a minissérie O pagador de promessas, que foi reduzida por se referir à reforma agrária. E, como se verificou depois, o pedido inicial de interdição total não partiu da censura e, sim, do patrocinador, o grupo Bradesco Seguros.. 

Questões político-ideológicas não foram os únicos motivos para que a censura mostrasse sua força. Quem não se lembra de Roque Santeiro, da Globo, que em 1985 apresentou uma Regina Duarte totalmente repaginada, e um Lima Duarte cujos fetiches viraram bordões. Dez anos antes, com menos de 30 capítulos gravados, a trama de Dias Gomes foi interrompida com a seguinte explicação: “ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja”.

A Constituição de 1988 estabeleceu o fim da censura, sendo implantado o sistema de classificação etária. Mesmo assim, em 1993, o autor José Louzeiro teve sua novela O marajá proibida antes mesmo da exibição, respeitando uma liminar impetrada pelo ex-presidente e atual senador da República, Fernando Collor de Mello (que se sentiu retratado no papel-título), com base na garantia constitucional de preservação da imagem.

Entre o público e o privado

Passados 20 anos de promulgada a Constituição, ainda esperamos a regulamentação das questões que podem nortear uma política pública para a televisão, respeitando seus preceitos de complementariedade entre os sistemas público, estatal e privado. E, principalmente, uma revisão do sistema de concessão, em que a sociedade possa intervir nas decisões que, hoje, cabem unicamente aos poderes Executivo e Legislativo federais.

Além disso, esperamos que, com a TV digital e suas possibilidades de interatividade e de multiprogramação, haja maior alternativa na oferta de conteúdo, e o telespectador possa ter garantido o acesso a uma programação plural, que efetivamente represente e respeite nossa cultura. A produção audiovisual no Brasil já é expressiva, carecendo de veiculação e, com mais alternativas no espectro público, tende a crescer.

Não acredito que haja, de imediato, uma mudança de mentalidade quanto aos formatos já sacramentados, especialmente por parte das emissoras privadas. Mas as emissoras públicas (educativo-culturais, universitárias, comunitárias, legislativas e as estatais), ao se fortalecerem enquanto campo, podem oferecer alternativas a esse modelo tão centralizador. Afinal, estamos tratando de um serviço público, e devemos lutar para que seja de qualidade.

Alzimar Ramalho
é jornalista e professora de Jornalismo da Fundação educacional do município de Assis-SP

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