Gilberto Braga: a Globo e o artista II

Gilberto Braga: a Globo e o artista II
A atriz Gloria Pires (Foto: Reprodução/Globo)

 

No longínquo ano de 1991 aconteceu um importante fenômeno de massas, desde uma forma estética e de pensamento verdadeiramente surpreendente. De repente, sem aviso prévio e nenhum sinal identificável, no mesmo instante e ao mesmo tempo milhões de pessoas no Brasil mudaram o canal que assistiam em sua televisão, ou, simultaneamente a desligaram.

Em uma determinada noite de quinta feira daquele duro ano, o do apogeu do desastre do governo Collor, aconteceu o inimaginável: uma parcela significativa do público amante de novelas de televisão e da grande mãe de todas as novelas, a rede Globo de televisão, se recusou abertamente a seguir assistindo a uma delas. Em um momento preciso do fluxo do tempo, espécie de brecha utópica, sem nenhuma combinação, as pessoas se desligaram aos milhões da até então tão onipresente rede Globo. Hoje ninguém mais se lembra do fenômeno, o que também faz parte de seu sentido paradoxal, de simultâneo desrecalque e sintoma regressivo, como pretendo pensá-lo.

Agora, já em 2003, no momento do lançamento de uma nova novela de Gilberto Braga – o artista responsável pelo desligamento maciço do aparelhinho naquele episódio – uma novela que promete, como é próprio dos melhores momentos do dramaturgo, adentrar os jogos simbólicos do poder e das relações entre classes e dinheiro no país, as muitas reportagens surgidas nos grandes jornais nada lembraram sobre o grande happening negativo, tele dramático, de 1991, que, no entanto, de fato mobilizou uma multidão. Nestas matérias de hoje, a história de Gilberto Braga foi contada direitinho, porém elidindo o seu grande momento, de resto como a própria Globo sempre o desejou: que aquele estranho acontecimento, de evidente matiz político, jamais tivesse ocorrido.

É muito curioso, passada pouco mais de uma década, que ninguém mais se lembre daquele que foi um dos maiores momentos da televisão entre nós, superado na prática por ficções políticas e emocionais reais mais eficazes nos anos que se seguiram. Analogamente, mas às avessas, os anos tucanos só tiveram a sua ruptura imaginária na consciência pública quando a catástrofe já ia avançada, no momento de seu grande, e também para todos surpreendente, apagão. Para a lógica conservadora e de chiques entre si dos anos tucanos brasileiros podia-se mesmo se esquecer o acontecimento que se deu ao redor de O dono do mundo.

Que estranho objeto estético ou de pensamento tomou a telinha da TV naquele longínquo 1991? Era apenas mais uma novela do já então celebrado autor Gilberto Braga, o mesmo de Escrava Isaura, de Dancin’ days e de Vale tudo; tratava-se da primeira novela de Braga após o grande reconhecimento artístico e emocional da minissérie Anos dourados e da imensa comoção pública de Vale Tudo. O novo produto tinha o título de O dono do mundo e teve, na época, o maior e mais requintado investimento já feito em uma novela entre nós. A começar pela abertura, baseada na célebre imagem de Charlie Chaplin brincando com o globo terrestre, comprada junto aos detentores dos direitos de O grande ditador, de 1940. Sobre estas muito clássicas imagens cinematográficas transcorria uma elegante canção de Tom Jobim, composta e interpretada especialmente para a novela…

Esta imagem inicial, do grande ditador de Chaplin a brincar feliz e displicente com o mundo, sobre uma irônica neo-bossa executada por piano e orquestra, já indicava em uma solução da imaginação o material explosivo que o folhetim eletrônico encerrava. No tempo em que a poderosa Globo, através da explícita e aberta vontade de seu dono, Roberto Marinho, acabara de interferir de forma decisiva a favor de Fernando Collor de Melo na primeira eleição livre do país em 25 anos, na época da emergência do arrogante arrivismo apleboisado e bufo do primeiro tempo do governo Collor, com seu desprezo bem radical pelo dinheiro popular, O dono do mundo tinha início com sua cifrada referência a ditadores satisfeitos, que confundiam seu poder com o melhor da cultura local, a muito carioca, mas também universal, música de Tom Jobim. A alegoria que reúne poder absoluto, satisfação pulsional evidente pelo total predomínio frente ao outro, cultura local e universal de qualidade, mesmo que de massa, tudo sobre a particular aura de verdade daquela imagem clássica, era muito sugestiva e é surpreendente que o sistema de autocensura da emissora tenha deixado passar uma tão clara notação irônica frente à sua própria estrutura de poder, que fazia suas peripécias no próprio país. Evidentemente, para um bom entendedor, o dono do mundo também era Roberto Marinho.

Mas o melhor ainda estava por vir. Logo nos primeiros dias da novela, de grande sucesso como era óbvio se esperar, pela redundância do desejo própria da indústria cultural, ela se completa com o desligamento em massa e uma grande comoção de opinião pública, extremamente rara no predomínio absoluto do campo da televisão sobre o seu público no Brasil. Este acontecimento iria acossar fortemente o seu autor nas semanas que se seguiram ao imprevisto apagão. Podemos relembrar um pouco o seu quiprocó dramático, a origem do fenômeno.

Felipe Barreto, provavelmente o maior personagem já interpretado por Antonio Fagundes na tevê, é um importante cirurgião plástico, bem casado com a filha de um milionário carioca e figura destacadíssima da sociedade local. Homem de caráter duvidoso, ele esbanja desprezo de classe e fetichismo de consumo e luxo, ao que chama de “bom gosto”. Homem inteligente, ele disfarça cuidadosamente sua violência antidemocrática mais ampla frente seus pares de classe com elegância e lances de espírito. Sabendo do casamento de um assistente seu, Felipe Barreto aposta com seu secretário particular, Júlio, uma caixa de champanhe que ele consegue deflorar a muito bela, e pobre, noivinha virgem Márcia, a jovem Malu Mader, antes mesmo do noivo chegar a ter acesso a moça.

Está armada a estrutura muito própria a um melodrama clássico de fins do século 18 e início do 19, a la Richardson, envolvendo poder, direitos e sexo, mas que põe em movimento um jogo simbólico muito preciso referente aos lugares das classes no Brasil do fim do século 20. Após muitas peripécias e uma velocidade dramática verdadeiramente estonteante, nunca vista antes em dramas de televisão entre nós, que vai ampliando com beleza formal o leque dos lugares e dos circuitos sociais representados na novela, em seu quarto dia de exibição, uma quinta-feira, subitamente chegamos ao capítulo em que Felipe Barreto desvirgina a noiva, que se oferece por ela mesma ao seu senhor, acreditando na nobreza de espírito do sedutor e na verdade de sua paixão por ela. E isso acontece mais ou menos na metade capítulo, e não ao final, como preconizavam as formas canônicas das novelas até então.

Como podemos ver a novela tem início com um forma e um ritmo dramático intensos e muito concebidos, de maneira intelectual mesma, por seu autor. Imediatamente após o acontecimento dramático, político e sexual, ainda durante o transcorrer do capítulo, o ibope de fato despenca: enquanto nos dois dias anteriores a novela perdera quatro pontos de audiência em relação aos 48 pontos da sua estreia na segunda-feira, apenas no fatídico quarto capítulo, em um dado instante, ela perdeu nada menos do que 9 pontos de audiência, em um fenômeno jamais visto em semelhantes casos. O melhor produto já realizado pela televisão brasileira em sua história teve uma queda de 13 pontos de audiência em seus quatro primeiros dias de exibição, sem que ninguém pudesse prever o fato e nem explicá-lo.

Impacientes, os espectadores, alguns ofendidos outros humilhados, desligaram o aparelho antes mesmo do episódio terminar. Ainda me recordo que nos dias seguintes a empregada doméstica que trabalhava na casa de minha mãe, com seu radinho de fofocas, fazia coro forte com uma boa parte da elite carioca ofendida em falso, sobre o desrespeito (a quem?), a pouca vergonha, como ela dizia, em seu baixo moralismo impotente, proporcionada à vista de todos pela perversa novela de televisão. O autor foi logo enquadrado, dentro e fora da empresa, e teve que dar declarações explícitas de que Felipe Barreto seria punido, de que ele mesmo, Gilberto Braga, era um moralista e de que a novela passaria a se comportar melhor. Um verdadeiro efeito de consciência e julgamento, de massas, brechtiano mas todo às avessas, isto é, conservador.

De fato, ao longo de sua longa história nada disso aconteceu: feita a tentativa de punição e rebaixamento de Felipe Barreto, mais ou menos no segundo terço da novela ele seduz novamente a mocinha Márcia e novamente lhe joga na cara que ela era apenas um objeto do seu desejo e prazer. Ao final da trama, ele retorna ao campo de influência da sua mãe de adoção, a socialmente perversa Constância Eugênia, interpretada por Nathalia Timberg, e afasta-se da mãe boa, mas cafetina de luxo, Olga Portela – papel de Fernanda Montenegro – reafirmando os traços melodramáticos clássicos do gênero, e casa-se novamente, com uma moça muito jovem, uma quase adolescente, filha de um milionário provinciano do interior do Brasil. Na última cena do folhetim Felipe Barreto está no altar com a jovem linda e rica, quando vira-se para a câmera, colocada ao seu lado, dá uma piscadela e um sorriso e diz, para o público que o desprezou: “E é virgem…”

O fato de Gilberto Braga não ter desvirtuado o poder sádico e cínico da parcela de elite que lhe interessava observar, que nada aprende no espaço dramático e histórico da novela, negando a ela, e a nós, qualquer redenção imaginária possível, faz parte da força da obra, tanto quanto o choque e o curto circuito na esfera pública que ela realizou concretamente.

Podemos pensar a correspondência entre o evento massivo, acontecido como espécie de formação do inconsciente através de O dono do mundo, no início dos anos 1990 brasileiros, com a célebre transmissão radiofônica de Orson Welles e seu Mercury Theatre de A guerra dos mundos, nos Estados Unidos de 1938. Lá Welles localizou e positivou a profunda paranoia nacional americana, medo culposo generalizado e pronto para achar que seu mundo e sua vida serão exterminados pelo outro, princípio emocional delirante que está no fundo do histórico belicismo imperial do país, e é de fato a sua projeção externa difusa, país que, – como recentemente notou Paulo Eduardo Arantes – faz do mundo uma imensa fronteira de si mesmo, região de exceção e barbárie, fronteira que, como a ficção científica não cansa de nos ensinar, não tem limites nem mesmo no espaço, e, como pensou o filosofo local, não se limita a nenhum espaço. Como se sabe, ao ouvirem parcialmente a transmissão da adaptação realista para o presente da novela de H.G. Wells, milhares de pessoas entraram em pânico com a invasão marciana em todo o país, tornado agora ele mesmo a fronteira de um outro império em expansão tecnológica, o marciano, produzindo um caos social por algumas horas, que chegou a resultar mesmo em algumas mortes.

Aqui, no mesmo registro da comunicação de massas e de maneira igualmente surpreendente, Gilberto Braga levou seus milhões de espectadores pelas mãos – de forma psíquica adormecida para o sentido do que estava em jogo para eles próprios – até o ponto exato da novela em que a comunicação de uma imagem do país e de si mesmos se tornou insuportável, instantaneamente, como um brusco despertar de quem se afasta de um pesadelo. A maestria do hipnotizador das massas está exatamente aí: controlar tão bem as estruturas da sua linguagem que os espectadores alienados da novela são levados a um ponto de pensamento que ainda a pouco lhes era inconcebível, em uma figuração mesmo da força amorosa da sedução, a qual, por fim, todos reagem bruscamente, defensivamente, fugindo e negando tal matéria e tal forma, impensável imagem especular que se fez horror.

Desta forma, Gilberto Braga confrontou seu conformado país com a sua própria fratura simbólica, desvirginando seu público e fundindo pensamento social e sexualidade: os donos do mundo aqui – os Collors, os Roberto Marinhos… – tem total direito sobre o outro, objeto que se oferece docilmente – como a mocinha Márcia, por amor ao outro perverso de classe e para existir para ele – a secular lógica da agregação ao poder brasileira para a manipulação e o gozo exclusivo dos senhores, cujo resultado final é a alienação do fraco de qualquer direito objetivo.

Naquele contexto histórico concreto de escárnio do poder corrupto e violento do país, promovido, em parte, pela própria Globo, por um segundo as massas foram chocadas com intensidade contra a realidade simbólica de seu lugar no jogo brasileiro e, não suportando o que viram, atacaram em ato a forma pensamento, irônica e reveladora, tecida no todo do tempo, da novela de Gilberto Braga.

Há um curioso paradoxo em todo este sintoma coletivo, que cinde o país em um movimento que tem de um lado um polo muito alto e de outro o rés do chão. Como produção de uma falha no circuito tradicional da recepção do drama – falha em que o dramaturgo fala pela exigência reflexiva e emocional que faz a seu público, enquanto este cala a própria reflexão e passa ao ato de desligar a teve – tudo parece indicar que pela primeira vez o teledrama brasileiro encontrou um limite objetivo na relação da sua forma com a sua matéria social, resolvido pelo autor, mas epicamente e de modo paradoxalmente inconsciente, rechaçado por seu público. De modo específico, a telenovela brasileira entrava na era da crise da forma drama, calando a sua possibilidade ao romper o circuito de sua representação e encantamento, mesmo que a contrapelo, e ao tornar-se subitamente épica, mesmo que na esfera do sintoma social.

Talvez a novela tenha adentrado aquela crise da representação unitária e de mutismo que Peter Szondi localizou no final do século 19 e primeira metade do século 20 no teatro europeu de Ibsen, Tchekov, Strindberg e Hauptmann. Podemos mesmo dizer, como Szondi escreveu sobre Os tecelões, de Hauptmann, que a crise de O dono do mundo se daria ao redor da “contradição entre a temática épica e a forma dramática não destituída que parece ser responsável por ela” (ver Peter Szondi, Teoria do Drama Moderno). Deste modo Gilberto Braga esteve nos limites da forma e do conteúdo social de seu meio, o que foi percebido por seu público, e infelizmente, para o pensamento, para a estética e para todos nós, rechaçado, de um modo social e psicanalítico que necessita de interpretação.

Voltando a nossa comparação de fundo, enquanto Orson Welles, em sua época, deu forma e conteúdo para a expansão de um aspecto da psicose americana, que passou a alucinar quando encontrou seu espelho positivo no objeto da indústria cultural, Gilberto Braga levou a consciência popular brasileira ao limite das suas contradições estruturais, e a novela adaptativa e conformista foi por um segundo odiada e atacada – realizando como sintoma um velho sonho da esquerda – bem como nos anos seguintes o fenômeno foi esquecido ou, a bem dizer, recalcado na cultura, em uma sintomática defesa diante do pior, a verdade insuportável: neste nosso mundo existem os donos absolutos de toda a riqueza, de todo gozo e de todo falso jogo dos direitos e os despossuídos de tudo se entregam masoquisticamente a eles. A promessa utópica de O dono do mundo seria a possibilidade de suportar tal consciência do estado sadomasoquista subliminar das coisas de classe no Brasil, para se poder atacar o mal real e não a sua figuração melodramática no sonho, tornado pesadelo, da novela.

Aqui o desenvolvimento da consciência como salto e ruptura, gesto de um despertar histórico, como artistas radicais da modernidade como Brecht ou Eisenstein propuseram para as formas do teatro e do cinema, surpreende a todos ao aparecer disfarçada sobre a tradicional estrutura maniqueísta do melodrama, forma ficcional própria à origem mesma do capitalismo, que, no entanto, no Brasil de fins do século 20 ainda articula algo da realidade simbólica das coisas (ver a respeito The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James and the mode of Excess, de Peter Brooks). Mas tal salto do pensamento que pudesse alcançar a verdade de sua realidade mais uma vez foi dado para trás, bem ao contrário do desejo crítico formalizado do artista. É nesta regressão que ainda estamos instalados, e talvez, provavelmente, com um grau muito mais sofisticado de desprezo pelas coisas reais do aquele que já se tornou impensável na novela de Gilberto Braga.

Não deixa de ser significativo também que, nos Estados Unidos, o fenômeno de massas ao redor da transmissão de Welles tenha se tornado uma referência para o pensamento e o entendimento dos problemas concernentes aos meios de comunicação, criando uma consciência histórica a respeito das formas de sua própria cultura, enquanto no Brasil, frente ao nosso happening negativo de massas ao redor de O dono do mundo, a tendência tenha sido bem a contrária: tratou-se de apostar no esquecimento, de tirar o acontecimento do mapa, de não saber vê-lo nem julgá-lo. Como se nada disso um dia tivesse acontecido.

Destes dois episódios históricos – o de Orson Welles e o de Gilberto Braga – dos efeitos algo inconscientes dos meios de comunicação de massas pode-se talvez sonhar com a esperança de cataclismas positivos nesta esfera, para além do sujeito da consciência, que, bem ao contrário da adaptação preconizada cotidianamente, pode levar a apreensão da estrutura de nosso mal estar comum. Tal expansão do pensar poderia, no momento certo, ser de superação, ou despertar, do maior dos pesadelos, nossa própria realidade.

Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

* Texto originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 5 de outubro de 2003.


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