A potência do sensível em tempos de ciberfascismo
Os bons encontros são os únicos capazes de nos libertar das amarras de uma existência de medo (Foto: Serge Kutu)
Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?
Foucault, 1991
Convidado para escrever a introdução do livro O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Foucault entregou algo como que um manual intitulado “Para uma vida não fascista”, em que elenca aquilo que devemos evitar ou fazer afim de não cairmos na armadilha de sucumbir ao fascismo. E, um desses conselhos, que parece bastante óbvio a principio, trata-se do ato de buscarmos evitar o próprio fascismo. Mas, a não-obviedade está no fato de que o fascismo ao qual ele se refere não é tão somente aquele que marcou a história com Hitler e Mussolini, mas também, e não menos importante, aquele que “está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”.
Desta forma, para além do fascismo como instrumento político de dominação das massas, há os diversos microfascismos individualizantes resultantes do medo do desamparo diante de um sistema político, econômico e social baseado propositalmente na fragilidade dos laços humanos e na sujeição dos nossos corpos aos ditames desta figura onipresente que é o mercado. Neste lugar, os seres humanos seriam o que se denomina um homo economicus, cujo valor encontra-se na sua capacidade de servir mais ou menos a uma engrenagem baseado essencialmente em produção e consumo.
No artigo “A era do humanismo está terminando”, Achille Mbembe, teórico, historiador e filósofo camaronês, trata sobre a onda anti-humanista que atravessa a atualidade e cuja existência é marcada por movimentos autofágicos de destruição do que significa o próprio senso de humanidade.
Para Mbembe, a tônica das relações humanas nos dias atuais tem sido dada através do que ele denomina de uma necropolítica detentora do poder de decidir quais vidas devem ser preservadas e aquelas que podem e devem ser exterminadas.
Na necropolítica impera a angústia
diante da fragilidade dos nossos
corpos perante um sistema de regras
criadas para manter uma estrutura
social desigual e desumana.
E são esses microfascismos, frutos das incertezas diante do desamparo com o qual lidamos cotidianamente num mundo que torna nossos corpos tão suscetíveis aos ventos do mercado, a força-motriz que alimenta regimes políticos totalitários dotados de enorme capacidade de sedução e manipulação das massas e que retornam no século 21 com nova roupagem e estratégias de ação, como vemos com as fake news, que sempre existiram, verdade, mas não com a mesma sofisticação e velocidade de propagação atual.
As fake news representam algo mais complexo do que a simples propagação de notícias falsas, o que por si só já promove grandes estragos. Elas fazem parte de toda uma teia econômica, política e social que estimula traços paranoicos nos indivíduos como resposta a um instinto de preservação e competição diante do Outro, do diferente, daquele que pode imprimir risco à existência do sujeito, sentimentos inerentes ao mundo nada acolhedor ao qual pertencemos. E, desta desconfiança coletiva nascem auto realidades paralelas recheadas de ressentimentos e cujo conceito de verdade não está no campo do real/concreto, a verdade neste contexto é relativa e corresponde a tudo aquilo que é mais familiar e considerado seguro para o sujeito.
As fake news podem representar, portanto, um desejo coletivo de fuga da realidade. Para indivíduos que experimentam uma existência baseada no desamparo, trazer para a mesa discussões como o formato da Terra e teorias da conspiração de toda espécie, é, talvez, desviar-se do medo de se estar só diante de um mundo forjado na individualização e em relações extremamente desiguais entre as diferentes existências.
Com isso, as fake news também trazem, ao mesmo tempo, um sentimento por parte destes indivíduos de pertencimento a uma coletividade, ao gerar um inimigo em comum a ser combatido, em um processo ao mesmo tempo simbiótico e disfuncional.
Isso mostra que o que está jogo não é mais uma dicotomia entre saber e não-saber, mas entre saber e desejo, como alerta Freud em “O futuro de uma ilusão”, em que afirma que o que importa em uma ilusão não reside na possibilidade de que ela possa ou não ser verificada no campo da veracidade, mas o que conta é a sua relação com o desejo.
Assim, podemos ver que a batalha
da comunicação não está apenas
no campo racional da informação,
mas também no campo das emoções,
no lugar onde constantemente
afetamos e somos afetados.
Nesse sentido, a linguagem tem o papel de ressignificar o simbólico e criar outros elementos de representação capazes de tratar esta espécie de transe coletivo através da substituição de afetos tristes por afetos positivos. Isto me remete a um relato de uma paciente de Jacques Lacan, nascida na Alemanha em 1938, e que viveu os horrores da Segunda Guerra:
“Um dia, numa sessão, contei a Lacan um sonho que tive. Eu disse: “acordo todos os dias às 5 da manhã, era essa a hora que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas”. Nesse momento, Lacan se levantou como uma flecha de sua poltrona, veio na minha direção e me fez um carinho muito doce no rosto. Eu entendi: “geste à peau”… [ele transformou “Gestapo” em “geste à peau” (gesto na pele), expressões que na língua francesa têm a mesma fonética].”
Este é um exemplo tocante sobre como processos fantasmáticos e inconscientes do sujeito podem ser ressignificados a partir da ideia de Deleuze de que “[…] quando um corpo encontra outro corpo, uma ideia outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, e ao contrário, quando um decompõe o outro, destrói a coesão das suas partes”. Portanto, é notório que os bons encontros, aqueles que produzem os tais afetos alegres de Espinosa, são os únicos capazes de proporcionar a libertação do sujeito das amarras que o aprisionam a uma existência de medo, ressentimento e subjugação.
Nesse sentido, ao militante revolucionário: é importante cuidado para não tornar-se um “ativista de si”, para não isolar-se em seu universo particular. Ao militante revolucionário é importante que busque uma escuta genuína e equilibrada que não recaia nem em arrogância e nem em apaziguamentos no que se refere ao outro e que seja capaz de compreender que a razão não se sobrepõe à emoção, que elas são partes que se integram na constituição do sujeito e por isso precisam estar em constante diálogo, a não alienação.
Do militante revolucionário espera-se que compreenda que não é necessário ser triste para ser militante, pelo contrário, pois a alegria gera potência de transformação, o ódio e a tristeza imobilizam, como também é esperado o comprometimento com o exercício de uma ética do cuidado e de uma política dos afetos que substitua o ódio pelo amor em todas as esferas. E, por último, que jamais, em hipótese alguma, se apaixone pelo poder.
Ingrid Gerolimich é socióloga, membra da Sociedade Psicanalítica Iracy Doyle e documentarista