Por uma teologia da beleza

Por uma teologia da beleza

Juvenal Savian Filho

Na contemporaneidade, falar de Beleza, a respeito das artes, parece tão démodé e quase anacrônico como falar de verdade a respeito das filosofias.

Faria algum sentido, então, falar de Beleza a partir do patrimônio intelectual-espiritual que herdamos da tradição judaico-cristã ocidental? Essa pergunta não pode ser negligenciada.

O cristianismo, como se sabe, viu nascer, em seu interior, com os movimentos de Reforma e Contra-Reforma, uma série de tendências que representaram novas possibilidades de pensamento e ação em diversas áreas da experiência cristã. No que se refere à experiência da Beleza, abriu-se espaço para o despontar de um novo tipo de concepção e relação com o Belo: se, do lado católico, com o Concílio de Trento, continuava-se a insistir nas formas exteriores como recursos para a excitação à contemplação, do lado protestante, ao contrário, adotava-se, sistematicamente, certa desconfiança para com a beleza religiosa, a ponto de alguns calvinistas e zwinglianos excluírem de sua liturgia qualquer outra música que não fosse o canto dos salmos (para não falar de alguns iconoclastas que, além das estátuas, destruíram também os órgãos das igrejas).

É certo que essa caracterização geral não se faz sem restrições, porque, por exemplo, entre os protestantes, Lutero e outros viam razões teológicas para considerar a música como algo de suma importância para a vida espiritual, cedendo lugar apenas à teologia. Também do lado católico, encontrava-se antiga tradição de zelo pela beleza do culto. No século 13, curiosamente, um autor como Tomás de Aquino não via com bons olhos o emprego de instrumentos de música, dado o risco de as almas serem mais impressionadas no sentido das emoções agradáveis do que no da virtude (Tomás de Aquino, Suma de teológica). Isso não significava, entretanto, uma desconfiança total com os instrumentos de música, porque, alhures, o mesmo Tomás afirma que instrumentos e sons musicais podem elevar a alma ou envolvê-la agradavelmente (Tomás de Aquino, Comentário ao Salmo 33).

O importante a notar, nessa movimentação em torno da Beleza, é que se começa a falar do Belo no modo como, posteriormente, se há de constituir o objeto da estética moderna, a estética propriamente dita. Nesse sentido, não é casual o diagnóstico hegeliano segundo o qual, na época dos reformadores, a representação religiosa também foi chamada para fora do elemento sensível e reconduzida para a interioridade do espírito e do pensamento (Hegel, Cursos de estética). Menos ainda casual foi o fato de Hegel iniciar seus Cursos de estética afirmando excluir de sua “filosofia da arte” o Belo natural. A novidade está em falar da Beleza da arte, e não mais, como se fazia até os tempos modernos, da Beleza do mundo, a Beleza experimentada em meio à realidade natural circundante, que despertava a alma para seu caminho de retorno à pátria, onde, de fato, estaria a verdadeira Beleza.

Um esquema de concepção como esse, ou seja, que vê, no sensível, a revelação da Beleza ideal, da Beleza que suscita o éros (o amor do gozo, o desejo) e que move a alma para sua pátria, é, certamente, um esquema platônico, retomado e desenvolvido, sem dúvida, por Plotino; mas, justamente por constituir, aos olhos dos cristãos, uma forma extremamente útil para a inteligibilidade da experiência humana, esse esquema foi assimilado e reelaborado já pelo cristianismo nascente. Dessa perspectiva, entende-se o teor de uma afirmação como a de Alberto Magno, quando ele diz que é próprio da Beleza “chamar a si” (Alberto Magno, O belo e o bom).

Ora, se é assim, então a Beleza é identificada com o próprio Bem, o divino, mas essa identificação não significa dizer simplesmente que a Beleza é Deus, como se os cristãos soubessem, perfeitamente, qual a essência divina. Trata-se de algo parecido com a experiência mística, algo como a expressão de um fervor: “Sei que não pode haver algo mais belo” (João da Cruz, “Sei bem que a fonte”, estrofe 3).

Em todo caso, quando os antigos e medievais falam da Beleza, fazem-no de maneira bastante clássica: iniciam pela experiência sensível, pelos dados da experiência do cosmo, e ascendem à Beleza divina. E toda a Beleza de sua arte, eles não a produzem para a arte em si, pois não parecem ter uma consciência clara da especificidade das belas artes (Umberto Eco, Arte e beleza na estética medieval); visam, antes, ao sentido que a divindade tem para eles.

O que faz a estética moderna, com relação à estética clássica, parece ser a absolutização da arte e da Beleza, saindo do campo do Belo natural, porque estranho ao espírito. O espírito estaria “acima” da natureza, e a bela arte seria “nascida” e “renascida” do espírito.

Ora, essa absolutização acaba por criar um impasse para a tradição cristã, pois, numa palavra, ela implica uma mudança mais radical na arte: desloca seu centro do Absoluto para o relativo; de Deus para o homem. Assim, como advento e manifestação da verdade da experiência humana, a arte corre o risco de não dizer nada sobre o éros divino que estaria inscrito no coração do homem, pondo, portanto, em questão a possibilidade mesma de realização humana.

Essa a razão de alguns teólogos distinguirem o domínio estético do domínio da fé, mas, atento à tradição cristã, um teólogo como Hans Urs von Balthasar pode, sem defender ingenuamente um retorno à primazia do Belo natural, superar a dificuldade de associar Deus e Beleza, porque nutre o projeto de construir uma “estética teológica” que não seja, necessariamente, uma “teologia estética”, isto é, que não confunda a Beleza da Revelação com a Beleza “profana”: Von Balthasar procura viabilizar uma autêntica estética teológica – no sentido de uma doutrina centrada na relação com Deus – a respeito da percepção, com a tarefa de decifrar a “figura” de Deus, revelada na história humana (que é, portanto, história da salvação), principalmente em Jesus de Nazaré (Hans Urs von Balthasar, A glória e a cruz e Teologia da história).

Essa experiência estética que capta a aparição da glória divina na história, principalmente na figura de Jesus de Nazaré, tem uma relação analógica com toda experiência do Belo, ao mesmo tempo, porém, que a transcende, porque Deus também se revela na “desfigura” de Jesus crucificado, e isso não tem, absolutamente, nenhum termo de comparação em nenhuma experiência “profana”. 

O que as várias faces da experiência cristã parecem dizer, de algum modo, sobre a Beleza remete a uma concepção do Belo como primeira manifestação da revelação divina. Dessa perspectiva, sem fornecer, propriamente, uma definição de Beleza, indica-se, porém, uma nota característica dela, a de manifestar Deus. Dito em linguagem menos religiosa, a Beleza manifesta a verdade profunda da experiência humana, a verdade da dimensão do espírito e do sentido, que, para os cristãos, consiste numa vocação divina.

Dessa maneira, parece possível compreender a experiência cristã paradoxal de captar a Beleza em situações (pessoas, obras, atitudes etc.) superficialmente “feias”, como é o caso, por exemplo, de pessoas pouco atraentes em quem resplandece uma bondade e uma veracidade autênticas. Na contrapartida, experimenta-se, também, a feiúra humana em pessoas superficialmente atraentes.

De algum modo, a experiência cristã constata a necessidade de o Belo ser continuado e integrado pelo verdadeiro e o bom; caso contrário, não manifestando o chamado de uma Beleza mais exigente, suprema, as belezas relativas mostrar-se-iam falsas belezas, para não dizer belezas aprisionantes e esquizóides.

Juvenal Savian Filho
é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM – Campus de Guarulhos)

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