Por uma psicanálise a favor da identidade

Por uma psicanálise a favor da identidade
Se identificar como preta/o ou mulher ou gay ou lésbica ou trans etcetera é um ato de descentramento do lugar de confusão alienante entre eu e outro (Foto: Tanushree Rao/Unsplash)

 

Subversão do sujeito, descentramento do eu, dessubjetivação: a teoria psicanalítica costuma agenciar toda uma gramática de termos críticos da noção de identidade, entendida como alienante, ilusória e narcísica. No que se refere ao laço social, chegamos mesmo a vê-la como potencialmente fascista, segundo o esquema da massa, que é concebida por Freud como uma espécie de identidade grupal firmemente construída sobre os pilares da relação acrítica de cada membro a um líder, uma ideia ou valor investido no lugar de ideal do eu. Unidos como irmãos que compartilham tal ligação a um pai que os amaria igualmente, os membros da massa formam um tecido social homogêneo, no qual não há lugar para diferenças e dissensões. A força da identificação operante entre eles pode chegar ao contágio que suspende toda censura e leva a atos que individualmente não seriam realizados, como linchamentos, por exemplo. Tal adesão acrítica à identidade do grupo reforça-se, ademais, pelo atiçamento de ódio e repúdio ao seu oposto complementar, a figura de um outro cuja diferença é realçada, ainda que consista em distinções mínimas, segundo a lógica do que Freud chama “narcisismo das pequenas diferenças”.

No bem conhecido texto de 1921, Psicologia das massas e análise do eu, o psicanalista antecipava, com essas ideias, aquilo que o nazismo poria em prática nas décadas seguintes da maneira mais espetacular e terrível, com o genocídio de milhões de judeus, homossexuais, ciganos, pacientes psiquiátricos, portadores de deficiência física e outras minorias. O próprio Freud teve o fim de sua vida manchado pela perseguição e exílio por sua condição de judeu, como bem sabemos, e na segunda metade do século XX o discurso psicanalítico marca na cultura uma clara e importante oposição a tais descalabros identitários nos quais a massa de semelhantes nega a diferença e chega a visar aniquilar o outro. Ele o faz através de uma espécie de elogio da alteridade que vai de par com a compreensão do sujeito do inconsciente como oposto à noção mesma de identidade.

No Brasil, tal crítica da identidade podia parecer, até pouco tempo atrás, consonante com certas noções como a de miscigenação, a de gentileza para com o outro e a de antropofagia, proposta pelo escritor Oswald de Andrade, em manifesto de 1928 que afirmava que “só me interessa o que não é meu”. Segundo a lógica de tais noções relativizadoras das diferenças, haveria entre nós uma grande mobilidade entre eu e outro, que poderia até ser tomada, paradoxalmente, como uma espécie de traço identificatório do brasileiro. O diferente seria aqui facilmente assimilável, de acordo com este raciocínio, na medida em que o “eu mesmo” seria constituído pela mistura entre povos e “raças”. Diversas vozes vêm, entretanto, desmontando a falácia de tal permeabilidade entre eu e outro para demonstrar seu papel no ocultamento das desigualdades, especialmente no que diz respeito aos indígenas e descendentes de escravos, cujo assujeitamento violento, aviltante e sistemático fica silenciado pela ideia de mescla entre culturas, que pressupõe que todas nela participam em pé de igualdade. Neste contexto, a crítica da identidade, em vez de se aliar ao reconhecimento da alteridade, corre o risco de servir à não aceitação do outro como diferente.

Diversos movimentos identitários surgiram e fortaleceram-se recentemente no jogo político do país em reação a tal discurso pseudo-desidentitário, que oculta as opressões para melhor exercê-las. Eles tomam hoje importante papel crítico e de mobilização contra a desigualdade, a opressão e as práticas genocidas que marcam nossa história e nosso presente. Entre as importantes e numerosas questões por eles colocadas, interessa-me aqui aquela que convoca a psicanálise a examinar a noção de identidade como seu fundamento. Para adentrar tal problemática, porém, devo dizer que não acredito que se possa “examinar” a questão, de um ponto de vista neutro quanto ao agente do verbo, nem tampouco que se possa falar d’a psicanálise como uma abstração una, consistente e independente de quem a mobiliza assim como das questões que o levam a fazê-lo. O que tentarei trazer aqui não é um exame, mas sim uma proposta singularmente assumida: a de retomar a questão da identidade em sua relação à teoria psicanalítica, para salientar uma vertente que lhe é correlata, mas costuma permanecer latente. Refiro-me à sua dimensão de reconhecimento pelo outro.

Para tal, gostaria de retomar a narrativa apresentada por Freud como uma espécie de mito das origens da sociedade no texto Totem e Tabu, de 1912. Ela toma como ponto de partida a hipótese darwiniana de caracterização das hordas primitivas como um bando de machos submetidos à violência e arbitrariedade de um pai que detinha todos os poderes, inclusive a posse das mulheres. Um dia, encorajados talvez pela invenção de uma nova arma, os irmãos unem-se e matam-no. “No começo era o ato”, afirma Freud, referindo-se a este assassinato realizado coletivamente. Em seguida, os irmãos devoram o pai em um grande banquete antropofágico, no qual sua incorporação é igualmente compartilhada, para vir a realizar-se como identificação com o pai morto, tornado um significante, pode-se dizer, que o totem declina em objeto de reverência ritual, ao mesmo tempo em que gera o estabelecimento de alguns tabus. Instala-se assim a fratria, a sociedade de irmãos, guiada pela Lei que impede que qualquer um deles venha a ocupar a lugar tirânico do pai. Deve-se sublinhar, nesta narrativa, a partilha igualitária do ato e do significante pelos irmãos, que serve de esteio para o consequente compartilhamento da identidade grupal simbolizada pelo Totem, bem como para a igualdade de condições dos irmãos frente à Lei. Mas é surpreendente que nesta partilha não se mencionem as mulheres, nomeadas como objeto de gozo na situação inicial. Elas simplesmente não são identificadas neste ato fundante. O significante “irmãos”, em vez de subsumi-las implicitamente, recobre o campo de forma total, negando a elas qualquer significante identitário – ou seja, qualquer reconhecimento. A universalidade da posição do “irmão” como sujeito do pacto social já mostra assim, na pluma de Freud, que sua condição fundamental baseia-se no apagamento de alguns significantes, a carrear com ele a exclusão de muitos/as sob a ilusão de “todos”.

Apesar de não ser articulada à narrativa de Totem e Tabu, a opressão de alguns é reconhecida por Freud como inerente à sociedade, como mostra sua citação da máxima que Hobbes toma de Plauto: “o homem é o lobo do homem”. A apropriação fundante de um significante capaz de identificar o sujeito se dá coletivamente, em uma situação de reconhecimento mútuo e pretensa igualdade de direitos, mas ela encobre a violência exercida sobre alguns, que não fariam parte “dos irmãos” e cuja exclusão e opressão seria naturalizada por sua condição de “diferentes” – como os povos autoctónes das colônias europeias, por exemplo. A estes não parece possível realizar a apropriação fundamental que Freud caracteriza, ao citar o Fausto de Goethe: “o que herdastes de seus pais, adquira-o para possui-lo”, pois eles sequer são reconhecidos como filhos. A eles só cabe, no discurso “dos irmãos”, a posição de espoliados, complementar àquela de seus espoliadores.

O Totem pode, por essa via, ser entendido como instrumento de poder de alguns sobre muitos outros, em vez de traço identificatório inclusivo e igualmente partilhado entre todos. E os tabus podem se revestir do papel de “recalcadores”, por assim dizer: práticas que impedem que alguns significantes sejam acessados. Ao se suspenderem alguns tabus, creio que se pode claramente perceber, sob o mito da democracia “dos irmãos”, a violência com a qual o pai da horda segue vivo, a embaralhar os significantes de modo a incitar aqueles que oprime a com ele se identificarem, na promessa de que um dia também lhes caberá o lugar da espoliação e exurpação. Está assim em pauta, hoje, a necessidade de reconhecermos, ética e politicamente, que a narrativa mítica das origens do pacto social que se declina em Totem e Tabu não é mítica apenas no sentido de que não se realizou concretamente em dado momento da História, mas também por sustentar um ideal ocidental de sociedade justa e igualitária que jamais se cumpriu plenamente e que sempre encobriu a exploração do “outro”, daquele que estaria fora das fronteiras arbitrárias que delimitam “os irmãos”, os cidadãos, etc. E que subverter tal perversão (que é uma père-version, ou seja, uma versão de pai, para Lacan) implica quebrar tal narrativa – analisá-la (lembrando que a etimologia do termo é a de decomposição) – de modo a revelar seu “recalcado”, digamos. Ou, em um país periférico, desigual e ainda hoje sob o jugo do neocolonialismo como o Brasil, revelar que tal narrativa, que costumamos tomar como um esquema estrutural do advento da Lei, só pode agir como uma farsa – na medida em que simplesmente não há e nunca houve uma “sociedade dos irmãos”, a não ser localizadamente, entre aqueles que detêm os privilégios.

Isso teria por consequência a impossibilidade de que se formem certas massas em torno de significantes que sejam coerentes com a situação social e histórica de seus membros, e que pessoas reforcem a alienação de sua construção egóica pelo pertencimento imaginário a agrupamentos opressores e excludentes. Este seria um dos fatores capazes de justificar a adesão de parcelas excluídas da população ao discurso, e por vezes ao voto, de representantes de seus opressores históricos, ao lado de outros também importantes, como a parca educação histórica e política e o embaralhamento das palavras de ordem dos partidos e dos políticos que costuma servir a fins espúrios. E deste modo revela-se a necessidade e legitimidade de que a ação política passe, hoje, pela busca de significantes capazes de reconfigurar o pacto social em direções plurais, suspendendo recalcamentos atávicos na sociedade brasileira e explicitando finalmente as linhas de força que nela se opõem ou convergem. A reivindicação de “lugar de fala” e a afirmação de significantes referentes a cor de pele, origens e gênero devem assim ser vigorosamente comemoradas, e em minha opinião seria grave equívoco a elas se opor em nome da crítica psicanalítica à lógica identitária e narcísica.

De fato, recusar a identidade em nome da alteridade, da diferença e da singularidade, hoje, é ignorar que se trata, com o recurso a significantes identitários, justamente de afirmar diferenças secularmente denegadas por discursos pseudo-desidentitários que relativizam a cor da pele pela afirmação de uma mestiçagem generalizada e despistam a violência de gênero através de uma suposta libertinagem carnavalesca. Mas isso não significa que a psicanálise deva ser descartada no debate – pelo contrário, acredito que ela tem muito a contribuir. Mas para podermos efetivamente nele tomar voz, parece-me necessário reconhecer a existência de uma espécie de hiato entre o terreno no qual a psicanálise surge na Europa e aquele do colonialismo no qual ela é chamada a comparecer, no Brasil. Freud e Lacan tinham como ponto de partida, grosso modo, o mito do pacto social como compromisso igualitário entre irmãos, no qual cada um teria acesso equânime a certos significantes identitários, aos quais se oporiam outros significantes a agrupar membros de outras fratrias. Diante de tal princípio da semelhança e da igualidade como base da sociedade, tratar-se-ia de emancipar o sujeito pela via da crítica da identidade, em nome da alteridade constitutiva de si mesmo. Mas em uma sociedade cujo pacto social se dá pela exclusão de grande parte de seus integrantes da possibilidade de acederem à partilha significante em grupos identificados e seus significantes e interesses, em um país marcado pela violência colonial como o nosso, desmascara-se a exclusão encoberta pela narrativa iluminista e o jogo revela-se muito mais complexo.

 

Em um contexto em que as posições do eu e do outro se embaralham para que se escondam as diferenças entre opressores e oprimidos historicamente constituídos, a identidade está, paradoxalmente, a serviço da alteridade.

 

Em outras palavras, dizer “eu é um outro”, como o faz o poeta Rimbaud, pode ser extremamente alienante, quando se trata de identificar-se com o outro opressor e assim eliminar qualquer possibilidade de oposição a ele. Apenas sobre o pano de fundo da noção ocidental do sujeito racional e autônomo o descentramento do sujeito pode ser concebido como potência desalienante e subversiva. E neste ponto a questão explicita seus contornos políticos, que são de fundamento, mais do que consistir na aplicação de um direcionamento ideológico, digamos, a uma teoria coesa e bem estabelecida. O lugar e o tempo no qual nos encontramos nos convocam a recolocar em obra a teoria, inclusive em suas bases epistemológicas, ou seja, no que diz respeito às próprias condições de construção do pensamento. Não existe sujeito neutro correspondente a uma razão transcendental, como a própria psicanálise contribuiu para denunciar. O sujeito da enunciação não se oculta e cala diante do saber/poder do enunciado. Afirmar aqui que eu falo – mulher, branca, em um país periférico e marcado pela violência e desigualdade social da qual estou em grande parte protegida por minha cor de pele e pelo fato de ser da classe média – não significa apenas pedir passagem para me pronunciar diante de grupos distintos; significa identificar-me para reconhecê-los. Aqui, a identidade mostra claramente, ao ser assumida como ponto de partida, sua dimensão performativa de reconhecimento. Significa recusar a me apresentar como mera porta-voz de uma verdade incorpórea e sem localização geopolítica. Exprime minha tentativa de descentrar o pensamento – e assumir tal deslocamento como gesto político.

Tentando assim deslocar um pouco os cânones, parece-me importante considerar a possibilidade de que o descentramento do sujeito hoje se decline, em nossa realidade, como processo de identificação coletiva. Que o traço unário do qual fala Lacan possa explicitar-se, neste contexto, como declinação particularizada de um princípio geral. Que em determinados contextos, o uso de categorias como “universal” ou “estrutural”, no sentido de determinações apriorísticas e imutáveis, possa ser alienante, e que falar em seu nome possa consistir no exercício de uma posição de poder. Que a ética que nos pauta – aquela mesma da subversão do sujeito – implique neste momento histórico uma aliança com o desvelamento ativo das diferenças – especialmente de cor de pele e de gênero –, e portanto com os movimentos identitários, contra a alienação e a hipocrisia pseudo-desidentitária. Aqui e neste momento, parece-me inegável que se identificar ativamente pelo compartilhamento de significantes como preta/o ou mulher ou gay ou lésbica ou trans etcetera é um ato de descentramento do lugar de confusão alienante entre eu e outro.

Isso não implica, entretanto, no abandono da ideia (ou do desejo) de que o laço social possa operar de modo distinto do compartilhamento de significantes que incidiriam igualmente sobre cada um de seus membros conforme o funcionamento da massa, tendendo a homogeneizá-los e calar dissensões e singularidades. Em primeiro lugar, talvez seja importante conceber que os significantes estão em movimento, eles circulam, se interseccionam e atritam, e chegam eventualmente a alterar-se, historicamente – e “as massas”, no plural, estão igualmente em trânsito, em fluxos internos de divergência e convergência, constituindo-se em conflito e atrito, mais do que na rígida e completa identificação entre seus membros que teria como complemento, em sua configuração fascista, a negação e a busca do aniquilamento do outro. Nessas movimentações internas, complexas, conflitantes e talvez um tanto erráticas, talvez se deem, sim, laços não narcísicos, em pequenos acontecimentos que seriam como lapsos ou atos falhos. Afinal, se levamos a sério a afirmação freudiana já citada de que a psicologia social é sempre e de saída individual, devemos apostar que também esteja em ação, na construção de um entre nós, vias plurais de dissonâncias e dissidências, nas quais o sujeito se subverta, sim, coletivamente.

Resta a inventar os modos como cada um de nós poderia se aliar a tal laço subversivo, e com ele colaborar na construção de significantes capazes de articular as identidades e as diferenças em prol de uma ampla frente de luta contra o fascismo.

Tania Rivera é ensaísta, psicanalista e Professora Titular do Departamento de Arte e da Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua também junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora de diversos livros, entre os quais O Avesso do Imaginário. Arte Contemporânea e Psicanálise (2013, CosacNaify), que recebeu o prêmio Jabuti na categoria psicologia/psicanálise.

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