Como dói o dedo na ferida!
Foto: Sushil Nash/Unsplash
O eu, já dizia o velho Jacques Lacan, é uma formação subjetiva de natureza sintomática. Conjugação imaginária e cristalização de defesas psíquicas. Às faltas, dores e angústias de cada sujeito, serão sobrepostas camadas protetoras de componentes egóicos. Essa espécie de capa sedimentada em vários níveis e à qual designamos eu, acumula uma densidade temporal. Só pelo sintomático eu, o sujeito será capaz de decifrar as mediações de sua história. Ele é o gesso emoldurado em torno de buracos e feridas. Espécie de cicatriz suturada e revestida por uma bela maquiagem.
Embora seja expressão de nossos limites e fragilidades, o escudo por trás do qual se esconde o vulnerável corpo erótico e mortal concentra uma importância que atravessa simultaneamente dois campos: o subjetivo e o objetivo. Dores e cortes que aparentemente restringem-se à história de uma vida subjetiva, atingem, em verdade, várias dimensões espaço-temporais determinadas social, política e historicamente. O que se tem, então, é algo muito claro: defesas psíquicas refratam-se em vários prismas, apontando nas diferentes direções de sintomas sócio-políticos historicamente formados.
Problemas do modelo civilizatório moderno-europeu emergem nas vidas humanas de várias partes do globo. Como pequenos cacos que espelham um todo em ruínas, suscetibilidades psíquicas refletem a agonia do mundo. Talvez não seja um exercício tão exaustivo localizar o marco fulcral de grande parte dos impasses modernos. Depositados nos diferentes processos de colonização da África, do Extremo Oriente, do Sudeste da Ásia e das Américas, suplícios tinham como alvo carnes específicas. A colonização europeia e a diáspora africana foram eventos simultâneos que alastraram feridas ainda hoje em carne-viva. Num movimento manco e compulsivamente repetido de buscar configurações simbolicamente amputadas para histórias de incessante violência, atenuaram-se com o verniz da cultura ocidental brutais subdivisões orientadas pela noção de raça, pelos preconceitos contra a mulher, sobretudo a mulher negra, e pela divisão de classes, sendo a escrava negra a mais humilhada e sem valor na lógica mercantil que passou a reger o mundo.
Na década de cinquenta, Aimé Césaire já proclamara seu veredicto em Discurso sobre o colonialismo:
O fato é que a civilização chamada “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como foi moldada por dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou: o problema do proletariado e o problema colonial. Esta Europa, citada ante o tribunal da “razão” e ante o tribunal da “consciência”, não pode justificar-se e se refugia cada vez mais em uma hipocrisia ainda mais odiosa porque tem cada vez menos probabilidades de enganar. A Europa é indefensável. (Aimé Césaire)
Vendo por essa perspectiva, alguns meandros de processos sublimatórios não deixam de ser, eles mesmos, violentos e defensivos. Seus resultados foram adensados na ressonante frase uma vez escrita pela pena de Walter Benjamin e que se tornou axiomática: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.
Talvez seja possível compreender a insistência na defesa restauradora de alguns modelos europeus indefensáveis, recorrendo a Jacques Lacan:
As resistências têm sempre sua sede, nos ensina a análise, no eu. O que corresponde ao eu é o que por vezes chamo a soma dos preconceitos que comporta todo saber, e o que cada um de nós carrega individualmente. Trata-se de algo que inclui o que sabemos e o que cremos saber – pois saber é sempre, por algum lado, crer saber.
O eu, como vimos, articula-se em torno de nossas fragilidades. Proteger-se, não raro, implica rechaçar o desconhecido. Enaltecer características próprias e depreciar a de outros. Conceder aos nossos saberes lugares totêmicos. Partindo daí, talvez seja essencial soerguer das sombras algumas incômodas perguntas: quais as deficiências de nossas armaduras, construídas em meio à lama irrefreável de violência? Como a brutalidade do mundo está entranhada em nossa linguagem? Não seriam as nossas couraças, elas mesmas, violentas? Avançando um pouco mais: que tipo de violência é promovida pelas nossas fragilidades brancas? Quais preconceitos carregam nossos saberes brancos? Quais os limites de nossos sistemas egóicos equipados por eles? E, finalmente: se afiados no agora, aos nossos ouvidos não soam familiar os seguintes dizeres de Franz Fanon?
Quando um preto fala de Marx, a primeira reação é a seguinte: ‘Nós vos educamos e agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se pode esperar nada de vocês’.
Difícil admitir, mas essa espécie de ruído não tem chegado aos nossos ouvidos de muito longe. Antes menos audível, a tonalidade desses sons propagou-se nos últimos anos em situações de menor evidência entre a classe intelectual e em renomados eventos culturais e acadêmicos, expondo de maneira um tanto quanto constrangedora fragilidades brancas e resistências psíquicas um pouco excessivas. Não se trata de acaso. Tanto a visibilidade de alguns limites de epistemes consagradas como a reatividade afetiva de quem as porta como ferramentas insubstituíveis embaixo dos braços resultam do árduo trabalho intelectual e político de engajadas mulheres, de cidadãos/as negros/as, da população LGBTQIA+ e de povos indígenas que conseguiram mostrar a estreiteza de lugares nos quais, nós brancos/as, muitas vezes nos situamos. A constrição de tais lugares indica que precisamos ouvir para avançar, não reagir de maneira perturbada.
Vale lembrar que grande parte da população negra e indígena respeitou uma série de protocolos estabelecidos por brancos. Dentre outros, submeteu-se aos injustos processos seletivos de universidades, cujos muros de tão altos as tornavam quase inacessíveis. Chegou a um lugar legítimo, ainda que sem dispor do traquejo para manejar convenções e códigos adquiridos pelo hábito da casta e partilhados naquelas reclusas atmosferas. Estudou a partir de uma grade orientada pelo saber preponderantemente europeu-branco, esmiuçado em grande parte por brasileiros europeizados. Realizou pesquisas, compondo opressões sofridas e referências intelectuais extraídas desse repertório ocidental. Abriu a duras penas espaços nos quais sua voz pode ser, aos poucos, enunciada. Ganhou lugares importantíssimos de articulação política. Tudo pelas brechas de um sistema que a apartava.
E o que agora dela se espera? Franz Fanon é quem coloca, mais uma vez, os pingos nos is: “Na verdade”, diz, “espera-se que os negros não tenham sido negros a fim de legitimarem-se como negros, o que é uma tarefa impossível”.
Qual é, então, o panorama que se depõe hoje sob nossos infelizes olhos brasileiros? De um lado, enxerga-se nitidamente e de longe: reações chauvinistas da mais tenebrosa espécie, promovidas pela milícia fascista que se expandiu pelos vastos territórios do Brasil. Os ressentidos de plantão sentiram a temperatura efervescente da luta por espaços de poder entre mulheres, LGBTQIA+, indígenas e a população negra, segmentos cuja força tem sido difícil esconder sob os antigos véus da cordialidade tropical. De súbito, os misóginos racistas e expropriadores atacaram. Pouco surpreende: temem perder poder, pois tombariam se respeitassem uma disputa digna, isto é, feita de ideias, da justiça e de propostas para um país mais livre e igualitário.
Do outro lado, porém, o que se vê, em muitos casos, causa certo desalento. Há certamente os que se juntaram às mulheres, aos LGBTQIA+, à população negra, aos indígenas e a reivindicações milenares. Escutaram cada articulação inédita dessas vozes prenhes de novas referências e experiências. Entretanto, há também, entre aqueles que se consideram “do lado da luta”, os que reclamam de uma dorzinha aguda na frágil pele branca de classe média. Não raro, sentem-se como os injustiçados da vez.
Se fosse para seguir Karl Marx à risca melhor seria que aqueles que insistem em se intitular de esquerda comemorassem, e vivamente, manifestações, digamos assim, pouco polidas de sujeitos que finalmente abriram suas gargantas nas lutas tidas por aí como “identitárias”.
Os intelectuais “da esquerda” sempre defenderam a dialética. Na letra! Agora ela bate na face de alguns. E com força! O que acontece com alguns desses intelectuais? Sentem-se fragilizados.
São feitas de carne e osso as defendidas contradições da dialética, presentes nas letras de nossos livros. Estão em cada molécula de oxigênio que respiramos. Antíteses aparecem agora sentadas, de pé, nas falas, nos olhos, na voz que vibra, na escrita visceral. Pode-se deduzir, pelo que se observa, que alguns intelectuais de esquerda supunham a dialética como uma espécie de corrente violenta por entre revoltosas ondas na superfície do mar e que eles, com toda sua bela magnanimidade, estariam mergulhados lá no fundo, até que toda turbulência fosse apaziguada sobre suas intactas cabeças. Imersos entre bolhas de água e muito sal, poderiam seguir falando da justiça social e da igualdade a serem um dia conquistadas.
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Construções ideológicas de estratificações valorativas raciais começaram no século XV da era moderna com a expansão marítima europeia. Ganharam o brilho da sofisticação científica sobretudo a partir do século XIX. Teorias eugenistas justificaram, entre diversos horrores, a edificação de um campo de extermínio na ilha de Shark, Namíbia, que dizimou os povos hereros e nama entre os anos de 1904 e 1909. Sob os poderes de Wilhelm II da Alemanha, desabrocharam ali os gérmens dos modelos nazistas. Mais tarde, o nacional-socialismo transpôs para dentro das fronteiras europeias as atrocidades que se mantinham além-mar.
Brancos europeus estabeleceram estratificações de colorido da pele para justificar a mais profunda crueldade e a expropriação dos povos dominados. Tal estratificação, porém, não se limitou às sentenças dadas por padres jesuítas ou às macabras classificações dos manuais de Josef Mengele e de outros da mesma laia. Infelizmente, ela penetrou em cada filigrana de modelos sociais e políticos estabelecidos na Europa.
Os degraus da estratificação chegaram pré-fixados no Brasil. Enrijeceram-se ainda mais por aqui. Alguns degraus subiram aos céus, deixando uma pequena parcela da população “eleita” apartada do todo. Outros desceram ao rés do chão. No meio, cambaleavam uns e outros, ora tentando segurar no alto degrau, ora vendo-se arrastados para os andares lá de baixo. Foi nessa escadaria desigual que se moldou grande parte de instituições públicas e privadas que nós, brancos, frequentamos durante anos a fio e sem tantos constrangimentos. Uma violência que chegamos a reiterar quase silenciosamente pelo simples correr de nossos dias.
Foram as políticas identitárias, agora tão atacadas por alguns, que começaram a mudar um pouco o curso dessa história. Com elas, os passos nos degraus passaram a variar um pouco. O resgate mais recente de movimentos que começaram ainda na década de 1930, com pessoas como Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor, embaralhou antigas estratificações. Como um tropo de linguagem, o termo negro expresso pelos lábios desses poetas e pensadores inverteu a ordem valorativa instituída pelos brancos. Nesse movimento de reviravolta, emergiram maneiras diversas de exaltar a cultura negra e de dela orgulhar-se. A altivez passou a acompanhar a enunciação da palavra negro.
Agora espera-se que negros, LGBTQIA+, mulheres e indígenas se desfaçam de suas identidades nas lutas por poder, embarcando num movimento de dissolução absoluta das camadas egóicas. Como vimos, porém, a identidade egóica não é apenas retrato de sistemas defensivos do eu. Cada uma das defesas psíquicas carrega traços de uma história sócio-política, capaz de revelar toda a estrutura identitária estabelecida pelo poder patriarcal branco, nitidamente fracassado. Certamente não é o inconsequente abandono de identidades o que será feito pelos movimentos feminista, negro, LGBTQIA+ e pelas lutas indígenas. Os movimentos e lutas são dotados de sensatez. Enquanto houver defesas egóicas e de privilégios em torno das identidades brancas, haverá dialética e, portanto, outras identidades farão seu contraponto, criando zonas de atrito e mostrando as inúmeras contradições do modelo estrutural branco.
Em meio a essas tensões, o que menos se espera é empatia, cuja tonalidade é a da piedade. Basta ler atentamente a letra de Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas para observar de perto o que ocorre quando brancos bem-intencionados apelam aos afetos da empatia e da piedade. Que não é disso que se trata, aliás, deveria ser algo calejado para qualquer velho intelectual de esquerda. Só a título de exemplo: acrescidas ao roteiro de uma das mais conhecidas peças de Bertolt Brecht, as notas para os atores, escritas nos pés de página de A ópera de três vinténs, já diziam claramente o seguinte: “No que diz respeito à transmissão do enredo, o espectador não deve ser levado a trilhar o caminho da empatia”. Nota que ganhou estofo na teoria brechtiana do teatro contrária aos modelos aristotélicos e assumiu lugar decisivo na filosofia da história de Walter Benjamin. As razões para isso, encarrego os leitores de fazer a busca.
Seja como for, não é a empatia e a piedade que poderão fortalecer a luta. Talvez firmeza, bravura, respeito, atenção, despreparo e vulnerabilidade sejam alguns bons ingredientes para que nós, os “frágeis brancos”, possamos escutar a complexidade das vozes que ainda desconhecemos.
Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de “Sublimação e Unheimliche” (Pearson, 2017), “A abstração e o sensível: três ensaios sobre o Moisés de Freud” (E-galáxia, 2020) e organizadora de “Freud e o patriarcado” (Hedra, 2020).