Poesia: luto e luta
A poeta Lubi Prates (Foto: Mayara Barbosa)
Em um mundo desigual e assolado pela Covid-19, o ódio racial, étnico, de gênero e as políticas de extermínio expandem-se, talvez, mais rapidamente que a pandemia. Distintos modos de trânsito da violência ocupam as redes sociais, enquanto, nas ruas, a população negra é assassinada, escancarando o racismo da sociedade, que se manifesta também por meio da criminosa instrumentalização do Estado e/ou legitimação de grupos, cujas práticas corroem princípios de direitos universais, de cidadania e a própria democracia. O assassinato de João Pedro Mattos Pinto, a morte de Miguel Otávio Santana, no Brasil, e o estrangulamento de George Floyd, nos Estados Unidos, ocorridos entre maio e junho deste ano, atestam o genocídio dos negros – são três fatalidades em face de muitas outras que, silenciadas, que ocorrem ao redor do planeta e não chegam até nós. Nos diferentes países, as esferas política, social, educacional bem como a sociedade civil são convocadas a reagir, mas, neste cenário, cabe ainda perguntar qual é o papel da arte no que concerne à barbárie e seu combate e ao testemunho daquilo que a experiência traumática mal alcança nomear.
O objeto estético, quando encena o trauma, faz do impossível de dizer uma possibilidade simbolizável, um testemunho, transforma a pobreza da experiência em narrado, o “rio sem discurso” em curso de rio, para lembrar o poema de João Cabral. É o caso do poema “para este país”, de Lubi Prates, publicado no pungente Um corpo negro (Proac/Nosotros, 2019), com prefácio de Lívia Natália e orelha de André Capilé. O poema de Prates abre o testemunho às fissuras do interdito, à errância do corpo que não quer calar; em perspectiva benjaminiana, é um documento da cultura e, consequentemente, da barbárie. A poeta converte os leitores em partícipes da experiência, de modo que a singularidade do vivido expande o corpo negro, individual, para uma dimensão coletiva, histórica. O texto longo, do qual reproduzo um trecho, figurativiza a diáspora africana e ao mesmo tempo engaja-se com o presente:
[…]
Ele não me viu com a roupa da escola, mãe?
Marcos Vinícius da Silva, 14 anos
assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro
e ainda que
eu trouxesse
para este país
meus documentos
meu diploma
todos os livros que li
meus aparelhos eletrônicos ou
minhas melhores calcinhas
só veriam
meu corpo
um corpo
negro
No fragmento, nota-se a articulação da notícia de jornal ao poema, ele mesmo um corpo circunscrito ao silenciamento dos versos breves; cuja morte é interpelada pelo corte, pela indignação que o ritmo das estrofes denuncia, ora esparsamente em poucas palavras, ora avolumando-se para indicar tudo o que o eu-poético usaria para se identificar ao ingressar no país destacado na estrofe de verso único, expediente estético que de um lado escancara a realidade brasileira e, de outro ponto de vista, universaliza o país. Para esse lugar/país, qualquer que seja, ainda que o eu-poético levasse diploma, livros, aparelhos eletrônicos, ou seja, marcadores de renda e classe, de nada adiantaria, nada resgataria seu corpo negro da morte.
Octavio Paz ensina que a ironia é a ferida por onde a analogia sangra e aqui, sem dúvida, sangra também no corpo do poema e do sujeito lírico, que na sequência das estrofes, retomando o tom inicial marcado pelo enfrentamento da impossibilidade de dizer atesta: só veriam/ meu corpo/um corpo/negro. Desse modo, o corpo-poema velado-escondido vela Marcos Vinícius, morto em 2019; poema vela-acesa que pervive e pranteia, para além da escritura, Miguel, João, George, tantos outros que têm sua morte anunciada pela hostilidade e pelo ódio dirigido aos negros. Nesse movimento, o poema é profecia, testemunho e documento histórico; como um oráculo, diz dos destinos orientados para um fim trágico, mortes que na sequência umas das outras expiam a responsabilidade da existência das vidas sacrificadas. Como testemunho, denuncia mortes causadas pela crueza da injustiça e do horror. Como documento de seu tempo que não deixa de ser, a leitura expandida do poema remete, ainda, a outra questão.
O assassinato dos negros se expande, na sociedade, para outros corpos, cuja humanidade e direto à vida não são garantidos pelo Estado. Como no tabu freudiano, tudo o que se prende metonimicamente à proibição original (os negros), torna-se ameaçador e deve ser extirpado, desse modo, as práticas de extermínio dirigem-se a novos alvos: pobres, refugiados, pessoas em situação de rua, travestis, indígenas, sem-terra, sem-teto, entre outros, estão sujeitos, ao que Berenice Bento chama de necrobiopoder, um conjunto de práticas do “fazer viver e fazer morrer”, a partir das quais corpos são distribuídos hierarquicamente, de modo que é retirada de alguns deles a possibilidade de reconhecimento humano; e então devem ser mortos. No caso brasileiro, o fundamento do necrobiopoder é o racismo – aí estão a dor e a crueldade – enquanto existir racismo, enquanto a noção de branquitude não for redefinida e reconstruída, milhares serão assassinados.
O poema, ao perfurar o Real, tornando conteúdos imaginários simbolizáveis, por meio de seu plano de expressão, nomeia a experiência anteriormente inominável, abre relatos e “escova a história a contrapelo”, conforme quereria Walter Benjamin. Como em todo grande poeta, a militância aqui está na linguagem que eleva à alta potência o par ética-estética. Não é uma notícia, é literatura, arte. Um corpo negro mostra a abundância dos negros, a multiplicidade de sua história e condena seu extermínio, alertando-nos, simultaneamente, sobre a urgente necessidade de combate aos discursos dominantes, na medida em que vincula a poesia à política da poesia. Diante da impotência e do temor que assaltam este país, os versos de Lubi Prates fazem as utopias acenderem, bordeiam o imponderável, entre o luto e a luta: insurgem-se.
DIANA JUNKES é poeta, crítica literária e professora da UFSCar.