Pentagramas poéticos

Pentagramas poéticos

Drummond é o poeta brasileiro que teve o maior números de obras transpostas para a pauta musical, inspirando clássicos modernistas como Villa-Lobos, Osvaldo Lacerda, Francisco Mignone, Ernst Mahle ou Camargo Guarnieri e compositores contemporâneos como Gilberto Mendes, Edino Krieger, Kilza Setti e Ricardo Tacuchian

 Leila V.B. Gouvêa

 Drummond talvez ficasse “comovido como o diabo”. Neste seu primeiro centenário de nascimento, o acervo de seus poemas musicados cresceu um pouco mais. Nove canções de câmara foram criadas pelos compositores Edino Krieger, Kilza Setti e Ricardo Tacuchian, especialmente para os concertos europeus da Fundação de Arte Apollon, que o homenagearam em agosto e setembro. O apreço que o autor de Claro enigma dedicava à criação de música sobre seus versos pode ser avaliado pelo fato de ele mesmo ter tomado a iniciativa de inserir a relação dos poemas musicados na edição de 1983 de sua Poesia completa. Na edição do centenário, publicada pela Aguilar no primeiro semestre, já se registravam 120 peças para canto solo ou com acompanhamento de instrumento, coral ou orquestra, assinadas por um time de 58 compositores. Entre eles, alguns dos maiores nomes de nossa música erudita.

Um único poema seu, “Cantiga de viúvo”, mereceu transcrição musical de criadores como Villa-Lobos, Osvaldo Lacerda e Francisco Mignone. Terá sido Frutuoso Viana o primeiro a compor sobre a lírica do poeta gauche, musicando “Quero me casar” em 1931, um ano depois do aparecimento do livro de estréia, Alguma poesia. Já em 1938, Mignone escrevia música sobre sete poemas, entre os quais “Quadrilha” e “No meio do caminho”. Seis anos depois, Villa-Lobos compunha sobre “José” (música para coro a capela), “Cantiga de viúvo” (seresta) e “Viagem na família” (voz e orquestra).

Em carta à compositora paulista Kilza Setti, que no início da década de 80 musicara “Ser” e o platônico “Memória”, Drummond deixou transparecer o quanto esse tipo de iniciativa o tocava: “Foi uma surpresa muito agradável, a que você me deu, com a sua carta gentil e as suas composições musicais sobre meus versos. Nada mais compensador para quem se dedica à poesia do que induzir à criação de obra de outro gênero artístico, seja música, pintura, escultura etc. Na verdade, as artes, por mais caracterizadas que sejam, obedecem a princípios comuns de estética, e provam a unidade fundamental do espírito criador.” E continuava: “Agradeço-lhe muito, prezada Kilza, o trabalho de musicar ‘Memória’ e ‘Ser’. Com isso, deu um prolongamento, um enriquecimento sonoro às palavras do texto. Espero um dia ter a alegria de ouvir a sua ‘valsinha’ e o coro à capela.”

Foi, contudo, por intermédio de uma carta do professor Luís Milanesi, da Escola de Comunicações e Artes da USP, que o poeta teve conhecimento, por volta de 1977, do número já então avançado de partituras sobre seus poemas. Pouco depois de graduar-se pela ECA, Milanesi iniciara um trabalho admirável de levantamento da produção de compositores brasileiros vivos junto à ainda incipiente biblioteca da escola. O trabalho nasceu do inconformismo diante da dificuldade que músicos e estudiosos encontravam para ter acesso às partituras de nossos compositores contemporâneos. O empenho de Milanesi e sua equipe resultou na catalogação da obra de 40 autores musicais e, ainda, na fundação de um Serviço de Difusão de Partituras, que logo despertaria a atenção até mesmo de instituições musicais da Europa. A pedra no caminho da continuidade do projeto foi a incompreensão de um ex-diretor da ECA, que determinou a interrupção do serviço.

Antes disso, porém, Milanesi, surpreendido com o número elevado de partituras sobre poemas de Drummond – em sua maior parte, inéditas –, comunicou o fato ao poeta, que se manifestou ainda mais surpreso, além de feliz e interessado. Seria com base principalmente no levantamento de Milanesi e equipe que Drummond viria a anexar a lista de seus “Poemas musicados” na Poesia completa, acompanhada da discografia individual e coletiva que, na edição do centenário, já registra 42 títulos. As partituras sobre os poemas quase sempre resultavam da iniciativa espontânea de músicos que, talvez por timidez, sequer comunicavam ao autor dos versos sobre as composições que eles haviam inspirado. A aprovação do poeta ao saber dessa produção musical foi incondicional, recorda Milanesi. “Ele também bem compreendia as dificuldades interpostas à vida dos artistas no Brasil.”

Intrigado com o fato de Drummond nunca ter ouvido a maioria daquelas “transcriações”, raramente executadas em público, Milanesi chegou a esboçar em carta ao poeta um plano de registrá-las em discos. A resposta foi imediata, além de lírica: “Se eu não subir aos céus nas asas da poesia, subirei nas asas da música (e não é a mesma coisa?)”, escreveu ao professor. O projeto, todavia, até hoje não saiu do papel por falta de patrocínio.

De modo condizente com o sentimento de fraternidade tão presente em sua lírica, Drummond conseguiu reunir em coexistência pacífica em torno de seus versos músicos de tendências opostas, como os nacionalistas e os vanguardistas. Camargo Guarnieri, por exemplo, escreveu uma comovente cantata, em dupla versão para voz e piano e para voz e orquestra, sobre “Caso do vestido”. “O compositor se arrepiava ao ouvir o texto cantado”, recorda Milanesi. Por sua vez, Gilberto Mendes inspirou-se em “Episódio” e “Lagoa”, enquanto Ronaldo Miranda musicou “Segredo”, Bruno Kiefer, “Anoitecer” e “A rosa e um jardim”, e Ernst Mahle assinou, entre as décadas de 60 e 80, um conjunto de dez composições inspiradas no autor de “A máquina do mundo”. “Hoje Drummond talvez possa ser considerado nosso poeta mais musicado por nossos compositores, sucedido por Manuel Bandeira e Cecília Meireles”, estima Luís Milanesi.

Conta-se que Murilo Mendes, apaixonado especialmente por Mozart, chegou a criticar Drummond por ele não gostar de música – interpretação que este negou. Pelo menos Chopin e Ravel são referidos em seus poemas. Já Otto Maria Carpeaux, a propósito de alguns versos, assinalou que “a poesia de Drummond está sem música”. No entanto, ainda em “A poesia em 1930”, Mário de Andrade já bem percebera “movimentos ostensivamente cancioneiros” no livro de estréia. Segundo um dos principais críticos contemporâneos do autor de Viola de bolso, Alcides Villaça, Drummond é “musical de ponta a ponta – entendendo-se por isso desde a capacidade de explorar ruídos e dissonâncias, como acontece por exemplo nos poemas modernistas da primeira fase e em algumas peças de Lição de coisas, até a capacidade de grandes orquestrações, como nos poemas discursivos e nas elegias da década de 50. O andamento, os movimentos rítmicos e o jogo de timbres de poemas como ‘Um boi vê os homens’, ‘Nudez’, ‘Relógio do rosário’ e ‘A máquina do mundo’ são uma lição de música”, assinalou Villaça em recente entrevista.

Múltiplos compositores que têm musicado Drummond por certo assinariam embaixo dessa avaliação. Edino Krieger – que neste ano compôs sobre três sonetos do poeta para os concertos da Fundação Apollon, apresentados na Europa pelo barítono Renato Mismetti e o pianista Maximiliano de Brito – diz ter necessitado tão-somente absorver a essência musical latente nos próprios poemas. “Apenas me deixei levar. É como se tivéssemos sido parceiros”, resume. Para Krieger, poucos poetas podem inspirar a composição do lied (canção de câmara), gênero em que poesia e música devem formar uma unidade perfeita, quanto o autor de “Poema de sete faces”. O compositor já musicara anteriormente outros poemas de Drummond, com quem conviveu em seus tempos de Rádio MEC, no Rio.

O carioca Ricardo Tacuchian, que colocou música em três peças da lírica amorosa do poeta, para a mesma homenagem da germânica Apollon na Europa, dialogou não apenas com a musicalidade como também com o caráter dramático dos poemas (“Amar”, “Poema patético” e “Toada do amor”). “São peças para serem não apenas cantadas, mas também como que teatralmente interpretadas, o que foi muito bem compreendido pelo barítono Renato Mismetti.” Segundo Tacuchian, que também já  musicara anteriormente Drummond, ele explora, como todo grande poeta, a ambigüidade sonora e semântica das palavras, o que faz dele um autor ideal para o músico.

Presente nos concertos europeus com música sobre três canções do poeta (“Canção amiga”, “Canção para ninar mulher” e “Canção para álbum de moça”), Kilza Setti entende que a lírica drummondiana reúne todas as condições para inspirar partituras, principalmente as de provocar imediato e duradouro encantamento pelos poemas e expressar códigos compatíveis com os da criação musical. “Observei também que a escrita de Drummond em geral apresenta uma quebra, como uma música que muda de repente de compasso, de andamento. O motivo das três canções que agora musiquei é um só, o da procura, mas cada poema encerra uma sugestão bastante distinta, e demandou procedimentos diferentes.”

Nesta homenagem na Europa, foram também apresentados o “Poema de Itabira”, composição de Villa-Lobos sobre “Viagem na família” (adaptada para canto e piano), e “Canto multiplicado”, com a leitura musical que Marlos Nobre fez da elegia “A Federico García Lorca”. Todos os poemas de Drummond foram cantados em português, mas no programa dos concertos, impresso em alemão e inglês, tiveram tradução respectivamente de Curt Meyer-Clason e de Bárbara Heliodora.

O músico Renato Mismetti, que concebeu toda a homenagem – como parte da série “Poesia&Música: Sonoridades Brasileiras”, realizada anualmente desde 2000 pela Fundação Apollon em algumas das principais salas de concerto da Europa, a qual já celebrou Mário de Andrade e Cecília Meireles –, escolheu como “fio condutor da dramaturgia do programa” o “Canto órfico”, do livro Fazendeiro do ar, em que o poeta lamenta: “A dança já não soa,/ a música deixou de ser palavra,/ o cântico se alongou  do movimento”. Et pour cause. Afinal, conforme o mito, é a música que reunifica o corpo dilacerado de Orfeu. “Preferimos não solicitar a nenhum compositor que musicasse esse poema, embora ele tenha constituído o núcleo semântico de todo o projeto deste ano. Drummond clama a Orfeu para compartilhar o poder de seu subsolo interior, para que a arte volte a intervir sobre a vida.” Neste centenário, a música voltou a “ser palavra” e “movimento”, nos versos dramáticos do poeta entoados alto e bom som também na Europa.


Leila V. B. Gouvêa
pesquisadora, jornalista e tradutora, é autora de Cecília em Portugal (Iluminuras)

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