Pensamento afro-brasileiro
Traje de Egungum, entidade que na cultura yorubá é responsável pela ancestralidade (Foto: Museu Americano de História Natural em NY/ Divulgação)
A “filosofia da ancestralidade”, pensada em relação à filosofia africana da e na contemporaneidade, pode, no caso específico do Brasil, ser entendida como uma filosofia afro-brasileira. Uma filosofia que resiste em nossas formas culturais de matriz africana.
Um dos problemas enfrentados pela filosofia da África é bastante sui generis e não atinge “outras filosofias”: seria ela filosofia ou não? Os seus estudiosos defrontam-se com a questão: o que é (existe?) filosofia africana? Há vários tratados filosóficos tradicionais que se perguntam “O que é a filosofia?”, mas nenhum deles questiona se o que fazem (se quem o faz e desde onde o faz) é de fato e de direito um fazer filosófico. Deleuze não se perguntou se o que ele fazia era ou não filosofia levando em consideração que era um pensador francês, na França. No entanto, esse é um pressuposto com os qual os filósofos africanos (e os estudiosos da filosofia africana) aparentemente não podem contar. É, então, incontornável que as diásporas africanas e a colonização (seja dos países africanos, seja do Brasil) de algum modo condicionam as reflexões de uma filosofia africana e da filosofia da ancestralidade.
Kwame A. Appiah, filósofo ganense, em sua obra Na casa de meu pai – A África na filosofia da cultura, defende que a “filosofia é o rótulo de maior status no humanismo ocidental”, o que justificaria, segundo ele, as negociações em torno não só da origem da filosofia, mas dessa rotulação para um sistema de pensamento. Ele, entretanto, problematiza o fato de que essa questão que recai sobre a produção filosófica africana é um falso problema se considerarmos que dentro das tradições ocidentais também há inúmeras divergências sobre o que é filosofia e o que unificaria os seus tão diferentes pensadores. Para além das querelas de se atribuir ou não um conceito ocidental (isto é, a filosofia) ao pensamento africano, ele pondera que existiria uma filosofia popular em todas as culturas. Ainda que nem todas tenham os mesmos conceitos organizadores das tradições filosóficas ocidentais, é provável que tenham conceitos familiares. A sistematização desses conceitos é o trabalho do filósofo a ser feito. Esse trabalho seria resultante da inegável influência endógena nas culturas tradicionais africanas. Em que pesem todas as consequências trágicas da colonização, para Appiah não há como não recorrer ao uso da formação filosófica ocidental. Disso dependeria, segundo ele, o destino dos intelectuais africanos, já que a filosofia estaria em melhores condições de deliberar sobre a racionalidade dos conceitos. Haveria conceitos africanos que estariam prontos para o trabalho filosófico e isso seria filosofia africana.
Embora Appiah seja uma referência importante e coesa, ele parte de uma hierarquização das ciências humanas e sociais que poderia engessar outros modos de abordagem da filosofia a partir da cultura. Em sua crítica à etnofilosofia, por exemplo, ele pondera que muito dessa investigação do pensamento africano na sua interioridade seria baseado em material “de segunda mão”, como relatos antropológicos, entre outros, que nem sempre seriam devidamente rigorosos.
Algo diferente nos propõe o filósofo americano Bruce B. Janz. Para além das questões metafilosóficas que são – ele admite – batalhas necessárias, o que faria da filosofia africana uma questão vital e urgente não é simplesmente uma resposta para um desafio estrangeiro (ocidental), mas antes a explicação de uma significativa experiência vivida. Questões que podem muito bem ser pinçadas nesses “materiais de segunda mão”, na medida em que são estudos das experiências culturalmente vividas na África e serviriam para investigações filosóficas, pois tratam de temas e modos de condensá-los que são significativos para os africanos. Ele refere-se, por exemplo, ao trabalho feito pelo antropólogo francês Marcel Griaule com Ogotemmêli, ancião dogon que lhe descreveu de forma ordenada o sistema de pensamento de seu povo. Ainda que alguns rejeitem essas fontes como “crenças” e superstições, outros entendem que os ancestrais fazem parte da centralidade da vida na África, são a base de sua moralidade e do sentido da vida. “Não é que os filósofos africanos tendam a manter a crença em feitiçaria, por exemplo, mas antes que feitiçaria continua a ser significante para muitos dentro da cultura africana e, portanto, torna-se um interessante objeto para uma investigação filosófica.” É o que se faz também, por exemplo, com o conceito bantu de ubuntu.
Essa possibilidade é o marco que separa também o que Eduardo Oliveira (UFBA) está chamando aqui no Brasil de uma epistemologia da ancestralidade, na medida em que esse conceito se tornou fundamental para muitas tradições resistentes em solo brasileiro. A ancestralidade em si é uma forma cultural desenvolvida na diáspora. Não nasce como categoria, e sim como experiência e, enquanto tal, implica uma ética, salvaguardada nos corpos, das formas artísticas e nas diversas manifestações da cultura afro-brasileira. Segundo ele, no Brasil recriamos a cosmovisão africana e a África, que é em tudo mais africana que a África dos dias atuais.
Todo esse conjunto de elementos merece também abordagens filosóficas e, o sabemos, o objeto da abordagem determina o melhor método de fazê-la. Nesse sentido, uma filosofia da ancestralidade ou uma filosofia afro-brasileira vai se alimentar desses encontros, modificações e reconstruções do pensamento africano. Algo como o que Oliveira faz e que também timidamente estamos fazendo nos programas de filosofia do país. Isso gera uma agenda de temas e problemas, semelhantes e irmãos, mas também diferentes, dos enfrentados pela filosofia africana.
Elizia Ferreira é doutora em Filosofia pela UFSC, professora da UNILAB e membro do grupo de pesquisa Geofilosofia e Performances do Pensamento.