Arcas de Babel: Patrícia Lavelle traduz Catherine Weinzaepflen

Arcas de Babel: Patrícia Lavelle traduz Catherine Weinzaepflen
Weinzaepflen: Para mim, o trabalho da tradução faz parte de uma ética de poeta (Fotos: Marc de Launay e Herbert List)

 

Catherine Weinzaepflen publicou mais de quinze volumes de poesia e de prosa ficcional, colabora regularmente para a revista CCP (Cahier Critique de Poésie) e recebeu o Prêmio France Culture em 1983. Traduzi poemas de seus dois últimos livros, ainda inéditos em português – Le rrawrr des corbeaux (Flammarion, 2018) e avec Ingeborg (Des femmes-Antoinette Fouque, 2015) – que têm em comum o instigante projeto de escrever em diálogo com outros textos literários de várias autoras e autores, inclusive a brasileira Clarice Lispector. Conversei com a autora sobre esses livros recentes e sobre a sua relação com a leitura e as línguas estrangeiras. O resultado da entrevista segue abaixo, como apresentação das traduções que me levaram também a traduzir poemas de Ingeborg Bachmann, relidos por Weinzaepflen em sua própria poesia.

Em seu livro Le rrawrr des corbeaux (O rrawrr dos corvos), os poemas remetem a outros textos, em prosa e em verso, de autoras e autores do passado, que as vezes são também citados em sua língua de origem ou, na maior parte das vezes, em tradução francesa. A coletânea avec Ingeborg (com Ingeborg) tece um diálogo com a obra e a vida de Ingeborg Bachmann, que você também traduziu. Como a leitura e a tradução se associam ao seu processo de escrita poética?

Nunca se dirá suficientemente que escrevemos com aqueles que lemos, como eu mesma já disse mais de uma vez. Ora, Ingeborg Bachmann (assim como Marguerite Duras ou, mais recentemente Roberto Bolaño, para citar apenas estes) faz parte das autoras e autores que me trouxeram o maior prazer de leitura. Foi por isso que empreendi a tradução de certos poemas de Ingeborg e depois a escrita “com” ela, de poemas meus. Eu retirava alguns versos dela a partir dos quais escrevia meu próprio poema. Em seguida o projeto se tornou mais complexo: a reunião dos poemas em livro me pareceu monocórdica, então decidi acrescentar também pequenos textos em prosa que concernem a vida dela ou a minha, quando aparecia uma relação de afinidade. Foi o que deu avec Ingeborg.

Dando continuidade à prática do preceito “escrever com aqueles que lemos”, concebi o projeto de Le rrawwr des corbeaux, escrevendo poemas em ligação com minhas leituras. A partir de uma citação, de um título, ou mesmo de uma ocorrência biográfica, escrevi cada poema em homenagem a uma autora ou autor.  avec Ingeborg e Le rrawrr des corbeaux formam assim um díptico no meu percurso.

Quanto à tradução, além do prazer, para mim este trabalho faz parte de uma ética de poeta. Acredito poder afirmar que nenhuma tradução de poesia feita por alguém que não é poeta tenha alguma vez me parecido satisfatória. Poetas devem traduzir quando tem a sorte de saber outras línguas, além da sua materna e… mesmo quando não é o caso! Já me aconteceu participar de seminários de tradução de poesia árabe ou russa (línguas que não sei). Um tradutor nos dava uma tradução literal e trabalhávamos em presença da/do autor/a. Traduzir coletivamente é uma experiência formidável.  Individualmente, hesita-se durante dias entre tal ou tal maneira de traduzir um verso; em coletividade, discute-se, as vezes acaloradamente… sobre o modo como podemos ou não nos distanciar do texto de origem, numa responsabilidade compartilhada. No que concerne à poesia (ou a prosa, aliás) é preciso encontrar um equivalente, um texto que produza a mesma “sensação”; em poesia, o ritmo, a música da língua, são evidentemente essenciais.

Você nasceu em Strasbourg, capital da região da Alsácia, essa fronteira com a Alemanha que é também um limiar linguístico entre o francês, o alemão e o dialeto alsaciano, de raiz germânica. Você também tem feito longas estadias fora da França, na África, nos Estados Unidos e na Austrália. Experiências em países estrangeiros e palavras em outras línguas aparecem também em alguns dos seus poemas. Você escreve em outras línguas, além do francês? Outras línguas alimentam a sua língua de escrita? Como?

O fato de nascer numa região fronteiriça, ainda por cima perdida e reconquistada várias vezes em meio a guerras trágicas, tem sem dúvida uma incidência sobre minha relação com a língua. Que se tenha nascido em Strasbourg, ou em Tours, no centro da França, onde o francês é, parece, mais puro, implica uma diferença.

Meus pais falavam o dialeto entre eles (com a ilusão de que não compreendíamos), dialeto proibido sob pena de punição na escola (nasci no final da guerra, em plena germanofobia). O alemão, o “Hochdeutsch”, era no entanto ensinado e foi minha primeira língua estrangeira no ensino médio.

Esperei décadas antes de fazer uma estadia na Alemanha, em Berlim, onde surpreendi-me ao me expressar em inglês nos cafés e nas loja, porque falo inglês correntemente e lá todo mundo fala inglês… O alemão permanece para mim uma língua de certo modo interdita apesar da imensa admiração que tenho por escritores de língua alemã ou pelas operas e lieder.

Escrevo sobretudo em francês, algumas vezes em inglês… Às vezes o alemão aparece nos meus sonhos. Quando utilizo palavras em inglês é porque em tal ocorrência nenhuma palavra francesa tem a mesma eficácia. Ou pelo som. Uma vez um jornalista reparou na minha escrita uma sintaxe influenciada pelo alemão (proposição relativa no final da frase); ele viu justo, eu mesma não tinha consciência disto.

Também sou, para responder a sua questão, muito permeável a outras línguas além da minha materna e adoraria falar muitas línguas estrangeiras. Estou, aliás, aprendendo o italiano por causa da descoberta apaixonada da Sardenha… Quando passo algum tempo lá, escrevo poemas em que as vezes surgem palavras italianas (pela música).

Acrescentaria ainda que meu dicionário favorito é um dicionário etimológico, Le Grand Robert: quando a gente se interessa pela origem de uma palavra percebe que sua evolução atravessa várias línguas.

 

***

 

Poemas de Avec Ingeborg (com Ingeborg)

amplitude do mundo

 

Ingeborg no final da viagem
mãos vazias
acorrentada
a todos os longínquos

Atrás do mundo haverá uma árvore
com nuvens nas folhagens
e cume azul

os lugares são muitos
e as cidades italianas
que vemos do alto das torres
como ela, também conheci

de cidade em cidade
de mar em mar sobretudo
continuo a viagem
e os lugares do passado
as imagens
afloram :
vestidos de mulheres nômades
que joguei fora
(sobre um tecido verde escuro
com florezinhas vermelhas
espessos bordados consolidavam
um algodão da Inglaterra,
faziam dele o vestido de uma vida)
como pude?

nunca mais jogarei fora
(aqui está, por escrito)
uma obra de arte

 

l’ampleur du monde

 

Ingeborg à la fin du voyage
les mains vides
enchaînée
à tous les lointains

Il y aura un arbre derrière le monde
un arbre aux feuilles de nuage
et à la cime bleue

les lieux sont nombreux
et les villes italiennes
qu’on voit du haut des tours
comme elle, j’en ai connus

de ville en ville
de mer en mer surtout
je poursuis le voyage
et les lieux du passé
les images
affleurent :
robes des femmes nomades
que j’ai jetées
(sur un tissu vert sombre
à petites fleurs rouges
les lourdes broderies consolidaient
une cotonnade d’Angleterre
en faisaient la robe d’une vie)
comment ai-je pu ?

je ne jetterai plus
(voilà, c’est écrit)
d’œuvre d’art

 

em verdade

 

Não se pode ajudar
quem nunca foi pego
de surpresa por uma palavra

Corona :
– maquina de escrever
– carro japonês
– título de um poema de Celan
– cidade romena
– coroa em latim

Corona se diz Kronstadt em alemão
1921 repressão em Kronstadt
era Trotski quem conduzia o Exército vermelho
descubro isto hoje
ao buscar no Google
o sentido da palavra Corona

 

en vérité

 

On ne peut rien faire
pour celui qui n’a jamais
été pris de court par un mot

Corona :
° machine à écrire
° voiture japonaise
° titre d’un poème de Celan
° ville roumaine
° couronne en latin

Corona se dit Kronstadt en allemand
1921 répression à Kronstadt
c’est Trotzky qui menait l’Armée rouge !
je l’apprends aujourd’hui
en cherchant sur Google
le sens du mot Corona

 

***

 

Poemas de Le rrawrr des corbeaux (O rrawrr dos corvos)

Vinte

 

(com Friedrich Hölderlin)

 

; e a noite vem, a fabulosa
sim noite
para reencontrar
estes aí que estão mortos
seu corpo já não existe
mas seu pensamento
em palavras retorna
como flores
vivazes

em torno a cidade entra em repouso
um grito às vezes
o chiado dos pneus
porteiras que batem
fachadas obscuras
e o silêncio
para acolher
os livros de meus mortos

 

Vingt

 

; et la nuit vient, la fabuleuse,
oui la nuit
pour retrouver
ceux-là qui sont morts
leur corps n’est plus
mais leur pensée
en mots revient
comme des fleurs
vivaces

la ville autour entre en repos
un cri parfois
le chuintement des pneus
portières qui claquent
façades obscures
et le silence
pour accueillir
les livres de mes morts

 

Vinte oito

 

(com Dante, Divina comedia, canto V, verso 142)

 

e eu caí como cai um corpo morto
fraturando o ombro
depois caí ainda
quebrando a cara

num aeroporto
ou no coração da floresta
eu sou só
questão de direção

ele me diz “leia comigo”
e eu escuto
ele me diz “vou pra lá”
e eu vou com ele

 

Vingt huit

 

Et je tombai comme tombe un corps mort
me fracturant l’épaule
puis tombai encore
me cassant le nez

dans un aéroport
ou au cœur d’une forêt
je suis seule
question d’aiguillage

il me dit “lis avec moi”
et je l’écoute
il me dit “j’y vais”
et je pars avec lui

 

Cinquenta e quatro

 

(com Marguerite Duras)

 

escutava essa manhã
a voz de M. D.
aqui em Sydney
um dia luminoso
de inverno ensolarado
Marguerite dissipando assim
uma noite de pesadelos
noite de pequenas angústias
pessoais

há tantas regiões
em você
que se desnudam,
dizia ela ao seu ator
e gosto que ela diga região

mais tarde no terraço
com vista para o porto
ponte barcos joggings e cães
plantei kangaroo paws
flores do buch peludas
em forma de patas de canguru
rosa estas
(conhecia apenas as rubro-escuro)
elas se adaptam diriam

mas a sirene rouca de um ferry
soa para mim o alarme de Gaza
neste mês de julho de 2014
lá cidades em ruínas
recobrem mil cadáveres
crianças morrem despedaçadas
pelas bombas

 

Cinquante quatre

 

J’écoutais ce matin
la voix de M.D.
ici à Sydney
la lumière d’un jour
d’hiver ensoleillé
Marguerite balayant ainsi
une nuit de cauchemars
nuit de petites angoisses
personnelles

il y a des tas de régions
en toi
qui se mettent à nu,
disait-elle à son acteur
et j’aime qu’elle dise région

plus tard sur la terrasse
avec vue sur le port
pont bateaux joggeurs et chiens
j’ai planté des kangaroo paws
fleurs du bush velues
en forme de pattes de kangourou
roses celles-ci
(ne connaissais que les rouge sombre)
elles s’adaptent on dirait

mais la sirène rauque d’un ferry
sonne pour moi le tocsin de Gaza
en ce mois de juillet 2014
là-bas les villes en ruines
recouvrent mille cadavres
les enfants meurent déchiquetés
par les bombes

 

Cinquenta e oito

 

(com Clarisse Lispector)

 

a cada noite
eu paro sob a porta
e me preparo pro nojo
o dedo no interruptor
do banheiro
barata imóvel
carapaça marrom oblonga
sobre o branco do lavabo
e suas antenas estremecem
captores de minha presença
depois se esconde
sob um cabo elétrico
ontem seu duplo fugiu
no sifão
e o aferventei
hoje esmago

há alguns dias
J. dizia que nós
andaríamos sobre uma
espessa camada de insetos
se não tivéssemos os pássaros

e o que seria dos nossos mortos
se os vermes não os limpassem
até os ossos?

 

Cinquante huit

 

chaque nuit
je m’arrête sur le seuil
me prépare au dégoût
le doigt sur l’interrupteur
de la salle de bain
blatte immobile
carapace marron oblongue
sur le blanc du lavabo
et ses antennes frémissent
capteurs de ma présence
puis se planque
sous un câble électrique
hier son double a fui
dans le siphon
je l’ai ébouillanté
aujourd’hui j’écrase

il y a quelques jours
J. disait que nous
marcherions sur une
épaisse couche d’insectes
si nous n’avions les oiseaux

et qu’en serait-il de nos morts
si les vers ne les nettoyaient
jusqu’aux os ?


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