Obra de Gilka Machado volta a circular após 24 anos fora de catálogo

Obra de Gilka Machado volta a circular após 24 anos fora de catálogo
A poeta carioca Gilka Machado (Foto Domínio Público)

 

Em 1907, ao ler o poema vencedor de um concurso realizado pelo jornal A imprensa, o crítico e ensaísta Afrânio Peixoto disse que aqueles versos só poderiam ter sido escritos por uma “matrona imoral”. Ele falava de Gilka Machado, na época uma menina de apenas 14 anos. Aquela palavras, escreveu a poeta sessenta anos mais tarde, mancharam o seu destino, mas a imunizaram “contra a malícia dos adjetivos”. E foram muitos os que se abateram sobre ela até a publicação de seu último livro, em 1938.

O motivo é simples: Gilka, mulher negra de origem pobre, foi a primeira a publicar poesia erótica no Brasil. Isso num momento em que mulheres nem mesmo conseguiam publicar seus escritos: apenas Francisca Júlia (1817-1920) e Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934) tinham alguma importância no meio literário quando o primeiro livro de Gilka saiu, em 1916. Esgotada desde 1993, a obra completa da poeta carioca volta a circular pelo selo Demônio Negro.

“Gilka escreveu o erótico porque queria liberdade. Negava mordaças à sua escrita, à sua arte”, diz Jamyle Rkain, organizadora da edição. “O corpo feminino, os anseios e o gozo da mulher eram ferramentas de libertação para ela na escrita”. Nos cinco livros que publicou – Cristais partidos (1916), Estados da alma (1917), Mulher nua (1922), Meu glorioso pecado (1928) e Sublimação (1938) -, Gilka colocou em versos os desejos, os traumas, as paixões e a sexualidade feminina pela primeira vez na poesia brasileira. A crítica reagiu instantaneamente.

Rui Barbosa (1849 – 1923), por exemplo, se perguntava “como seria possível conciliar o espírito das senhoras de boa sociedade com o espírito de uma poetisa que tem o mau gosto de escrever essas coisas plebéias”. Um jornal do Rio de Janeiro publicou uma caricatura em que Gilka aparece vestindo uma saia esvoaçante junto do trecho “eu sinto que nasci para o pecado”, retirado do soneto “Reflexões”, de sua autoria. Afrânio Peixoto, em 1930, relata a Humberto de Campos sua decepção ao se encontrar pela primeira vez com Gilka, “uma pequena mestiça sombria” e não a “jovem mulher branca, atraente, chamando a atenção” que ele esperava.

Gilka Machado fotografada para a revista O Malho na ocasião do plebiscito para maior poeta do Brasil (Revista O Malho/Biblioteca Nacional)

Duas vidas

Houve quem reconhecesse seu talento literário, como Lima Barreto, Olavo Bilac, Nelson Rodrigues e Jorge Amado – que fez campanha para que Gilka se candidatasse a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras quando a instituição abriu vagas para mulheres, na década de 1970. Em 1933, ela foi eleita a melhor poeta brasileira pela revista O Malho, em votação realizada com cerca de 200 intelectuais da época.

Muitas vezes, entretanto, autores e críticos a elogiavam “com o cuidado de separar a ‘Gilka da arte’ da ‘Gilka da vida’”, afirma a professora Nadia Batella Gotlib, que entrevistou a autora em 1979, um ano antes de sua morte, aos 86 anos. “Humberto de Campos ressalta suas qualidades de poeta, mas faz questão de afirmar que, por outro lado, ela era ‘a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães’. Para poder elogiar, dividiu a Gilka em duas”, ressalta Gotlib.

Isso porque o teor erótico da poesia de Gilka teria lançado sobre ela mesma algum grau de “suspeição moral”, escreve a professora Maria Lúcia Dal Farra no prefácio da obra completa: Agripino Grieco (1888 – 1973) chamou a poeta de “bacante dos trópicos”, Emílio Moura (1902 – 1971) classificou sua obra como um “bailado voluptuoso” e Humberto de Campos (1886 – 1934) a julgou como uma “tempestade de carnes”.

“Muitos acreditavam que ela fazia o que escrevia nos poemas, que era a ‘messalina hedionda’ de seus versos, colocando-a como um mau exemplo de mulher”, diz a organizadora da obra, Jamyle Rkain, que responsabiliza a crítica da época pela falta de reconhecimento de Gilka entre o cânone da poesia brasileira. “Para eles [os críticos], por ser ‘mulata’ Gilka tinha em si uma ‘depravação vinda dos negros’. Isso deixa explícito como, além do machismo, existia também o racismo em relação a ela, com essa sexualização da figura da mulher negra”, critica.

A poeta abandonou a literatura aos 45 anos, retirando-se por completo da vida pública: “Eu tomei enjôo – da poesia não, mas do ambiente”, afirmou, em 1979, em entrevista concedida a Nadia Gotlib, mesma conversa em que relembrou os insultos a que os filhos, Heros e Eron, foram submetidos por terem uma “mulher imoral” como mãe. O adjetivo a acompanhou durante grande parte da sua trajetória por ter ousado explorar um “território então proibido à mulher”, como afirma Gotlib.

“Gilka nos diz que a mulher tem desejos e que pode expressá-los em textos de qualidade estética. Tanto o rigor formal quanto os sensacionismos variados surgem, na sua poesia, paralelamente a uma consciência da necessidade de libertar a mulher dos ‘grilhões dos preceitos sociais’ (expressão sua) que aprisionavam – e ainda aprisionam – a mulher em contextos de autoritarismo machista. Por tais razões sua poesia é tão atual”, afirma a professora.

Em 1910, ainda bastante jovem, Gilka ajuda a fundar o primeiro partido político feminino, o Partido Republicano Feminino. “Ela não se considerava feminista, mas entendia que a mulher tinha que ocupar os espaços pela equidade de gênero. Esse momento histórico onde a mulher começava a lutar por voz e representatividade seria outro fator para que ela fosse libertária na poesia – o que para a crítica (quase completamente composta por homens) era inaceitável“, diz Jamyle Rkain. 

Mãe de dois filhos, viúva aos 30, Gilka trabalhou como diarista na Estação de Ferro Central e, mais tarde, na cozinha de uma pequena pensão que abriu com a ajuda do poeta Pereira da Silva – seus “bons versos foram escritos à beira do fogão”, disse, mais tarde. “Amei tanto a todos e a tudo que não sobrou amor para mim mesma”, escreveu em 1978. “Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor”. 

Rkain pretende aproveitar o lançamento da Demônio Negro para atrair toda a atenção possível para a obra de Gilka: “Precisamos olhar para as mulheres que sofreram a mesma invisibilidade que Gilka sofreu. Precisamos olhar para o passado – não só na literatura, mas na História em geral – sem os preconceitos que eram mais arraigados para tirarmos essas mulheres dos porões e mostrarmos suas contribuições para o mundo. Existem muitas.”

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