“Estamos ainda diante de um ambiente refratário à presença feminina”

“Estamos ainda diante de um ambiente refratário à presença feminina”
A escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (Arte Revista CULT, Divulgação)

 

Academia Brasileira de Letras prepara homenagem a uma de suas fundadoras, Júlia Lopes de Almeida. A escritora nunca chegou a ocupar uma Cadeira na instituição, que elegeu apenas oito mulheres em 120 anos

 

Em finais de 1896, um grupo de escritores desejosos de cultivar a língua e a literatura brasileira delinearam a criação de um espaço com essa intenção. Nas reuniões, presididas por Machado de Assis, era comum a presença do casal de escritores Júlia Lopes de Almeida e Filinto de Almeida. Na primeira lista com os possíveis membros do que viria a ser, um ano mais tarde, a Academia Brasileira de Letras, Júlia Lopes era a única mulher considerada, mas seu nome acabou sendo preterido pelo do marido, inaugurando o que se tornaria uma característica da ABL pelos 80 anos seguintes: a total ausência de mulheres.

Mais de um século depois, a escritora será homenageada pela instituição em uma iniciativa que visa reverenciar autores brasileiros que jamais alcançaram o posto de imortais. Michele Fanini, autora da tese de doutorado “Fardos e fardões: Mulheres na Academia Brasileira de Letras (1987 – 2003)”, celebra a homenagem, mas diz que é preciso encará-la como uma oportunidade para questionar os critérios e forças sociais que operam na criação de um cânone literário – que para ela possui um gênero, o masculino. “Só assim se torna possível compreender os porquês de uma escritora do quilate de Júlia Lopes de Almeida ter ficado de fora da Academia Brasileira de Letras e ainda ser pouco conhecida do grande público”, afirma.

A homenagem, iniciativa da escritora Ana Maria Machado, acontece durante o mês de julho, quando também serão relembrados outros autores que nunca tiveram uma Cadeira na instituição, como Clarice Lispector e Lima Barreto. Relembrar o nome de Júlia Lopes é especialmente representativo, para a pesquisadora, por se tratar do primeiro e mais emblemático vazio institucional da ABL, ambiente ainda “refratário à presença feminina”, segundo ela – foram eleitas apenas oito mulheres em 120 anos.

“Atentar para os desvãos da história da ABL pode ser um bom caminho para enxergarmos a história como palco de disputas simbólicas por distinção, legitimação, canonização e para percebermos que tais lutas produzem marginalizações, hierarquizações e silenciamentos”, diz.

CULT – A ABL está preparando, para julho, uma homenagem aos escritores que nunca foram nomeados pela instituição, e a primeira será à Júlia Lopes de Almeida. O que acha dessa iniciativa?

Michele Fanini: Coincidindo com as comemorações dos 120 anos da ABL, dos quais, é bom ressaltar, 80 foram marcados pela ausência de mulheres em seus quadros [a primeira a se sagrar imortal foi Rachel de Queiroz, em 1977], a homenagem se revela não apenas acertada, como necessária. Mas é fundamental não a enxergarmos simplesmente como um gesto de reparação histórica, como um preito póstumo àquela que foi uma das escritoras mais importantes da Primeira República, pois se trata, a um só tempo, de um convite à reflexão, uma inegável oportunidade de avaliarmos e questionarmos os critérios e as forças sociais a operar, tantas vezes ocultamente, na “fabricação” do cânone literário e na produção de lacunas historiográficas. O cânone literário possui um gênero. À medida que os “silêncios da história” ganham voz, como disse Michelle Perrot, a parcialidade dos registros oficiais pode ser demonstrada. Por isso, vejo que é justamente naquilo que transcende a homenagem que reside sua potência e suas potencialidades. Há, nesta iniciativa, ao menos três dimensões: histórica, simbólica e social. Elas nos instigam a olhar para o momento de criação da ABL sob um prisma pouco (re)visitado: o das assimetrias das relações de gênero. Só assim se torna possível compreender os porquês de uma escritora do quilate de Júlia Lopes de Almeida ter ficado de fora da Academia Brasileira de Letras e ainda ser pouco conhecida do grande público.

A homenagem, então, é válida?

Sem dúvida. Convida à reflexão sobre a dinâmica do campo literário, sobre as injunções sociais capazes de eclipsar o protagonismo das mulheres que tencionavam fazer da pena um ofício. A escolha do nome de Júlia Lopes de Almeida para inaugurar a homenagem não poderia ser mais apropriada, porque se trata do primeiro “não ingresso” feminino ou, como eu costumo dizer, do primeiro “vazio institucional” feminino na ABL. Júlia Lopes de Almeida participou, juntamente com seu cônjuge, Filinto de Almeida, de muitas das reuniões que culminariam na criação da ABL. Lúcio de Mendonça, um dos idealizadores da agremiação, chegou a elaborar uma lista extraoficial com os nomes daqueles que, segundo ele, deveriam figurar como seus membros fundadores. Publicada no Estado de São Paulo, em 1896, a lista trazia o nome de uma única escritora: o de Júlia Lopes de Almeida. Até onde nos é dado saber, a tímida ressonância da indicação entre os demais postulantes (à exceção de Filinto de Almeida, Lúcio de Mendonça, José Veríssimo e Valentim Magalhães), amparada na alegação pretensamente impessoal de que a agremiação estaria sendo concebida à imagem e semelhança de sua congênere francesa, a Académie Française de Lettres, em cujo Regimento Interno a expressão homme de lettres adquiria sentido literal, culminou em um desfecho sugestivo, que viria a assumir os contornos de uma gentileza compensatória: o ingresso de Filinto de Almeida, que passou a ser considerado por alguns como o “acadêmico consorte”. Filinto de Almeida chegou a fazer a seguinte afirmação em entrevista concedida ao dândi João do Rio: “Não era eu quem devia estar lá [na ABL], era ela”. Júlia Lopes de Almeida protagonizou o primeiro e mais emblemático vazio institucional da ABL produzido pela barreira do gênero. Gostaria, no entanto, de mencionar o papel fundamental desempenhado por Claudio Lopes de Almeida, neto da escritora, que foi quem cuidou de seu arquivo pessoal até fins de 2010, quando então passou a ser custodiado pela ABL. Como Júlia Lopes de Almeida fez coincidir sua trajetória literária e social com a produção de seu arquivo, a preservação de sua memória muito se deve à cuidadosa atuação do neto e, atualmente, ao Arquivo da ABL. A doação do arquivo, em certo sentido, não deixa de simbolizar o ingresso post-mortem da escritora na agremiação que, em 1897, havia lhe cerrado as portas.

Por que devemos relembrar a história dessas mulheres “invisíveis” na história da Academia?

Conferir visibilidade a este não ingresso é, inevitavelmente, evidenciar em que medida o gênero atuava (e ainda atua) como uma potente fonte extraliterária de validação e ampliação, no caso dos homens, ou mitigação, no caso das mulheres, do capital simbólico. Ou então como uma espécie de critério reputacional sub-reptício, mas decisivo, na formulação do juízo estético. Dentre as estratégias classificatórias engendradas nas lutas por reconhecimento – que respaldavam e respaldam as apreciações críticas e guiavam a hierarquização das obras e dos autores, o gênero se destacava, e ainda hoje se destaca, como critério de seleção, não raro inadmitido e travestido de neutralidade. Pensando especificamente no caso da ABL, as oito décadas marcadas pela ausência feminina não corresponderam ao desinteresse das escritoras em disputar uma de suas quarenta Cadeiras, mas, antes, sinalizaram sua presença como parte do inenarrável. Nesse prolongado decurso subjazia a latência de sua presença. Tratava-se, portanto, de uma ausência repleta de significados. Entre a intenção de ingresso e a formalização das candidaturas se interpunha um impedimento social travestido de sina. Temos, por exemplo, na década de 1930, a tentativa de candidatura da escritora Amélia Beviláqua, posteriormente, temos as duas tentativas de Dinah Silveira de Queiroz, em 1970 e 1971. Dinah teve sua candidatura oficializada apenas em 1980, quando disputou o pleito com Pontes de Miranda, mas não se elegeu. A escritora ingressou, então, no ano seguinte, quando concorreu com Gustavo Capanema justamente à Cadeira deixada pelo jurista que a havia derrotado.

Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) | Arte Revista CULT, Divulgação

Acredita que há uma intenção de reparar essas injustiças históricas, muitas vezes cometidas pela dominação masculina?

Acho, sim, que a homenagem não pode ser dissociada de sua dimensão reparadora, mas o evento possui uma importância maior, e é também nesta chave que ele deve ser percebido: como uma oportunidade de revisitar nosso passado e, para falar como Walter Benjamin, “escová-lo a contrapelo”, enxergar suas fissuras, brechas, incongruências, perceber como se dá o processo de naturalização do que é produzido socialmente e colocá-lo sob suspeição. O modelo patriarcal de sociedade, percebido por muitos de modo desistoricizado, se sustenta sobre um duplo padrão de moralidade produzido pela “dicotomia consagrada”, na definição de  Mariza Corrêa, entre os gêneros – talvez a mais marcante oposição seja aquela engendrada e derivada da divisão entre os espaços público e privado, encontra nos discursos que apontam para a“complementaridade” entre os papéis sociais a serem neles desempenhados pelos homens e pelas mulheres. Trilhar os caminhos da profissionalização literária significava, no caso das mulheres, contrariar expectativas sociais naturalizadas em torno dos papéis que tradicionalmente lhes competiam desempenhar, estritamente relacionados ao âmbito privado (maternidade e afazeres domésticos). O peso do gênero sobre o destino social das escritoras era tal que aquelas que conseguiam transpor a barreira do anonimato, seja abrindo mão do escudo dos pseudônimos, seja desvinculando-se do estigma do amadorismo, eram muitas vezes vistas como excepcionais, casos isolados, pontos fora da curva, dotadas de um talento incomum. Sob o cintilante véu de uma aparente neutralidade, os rótulos de amadora e excepcional atuavam complementarmente como trunfos semânticos de deslegitimação, concorrendo para a atualização das distorções subjacentes à dinâmica do campo literário, ao pressuporem que em apenas uma minoria de escritoras reluzia a “chama do gênio”, ou, então, que a produção autoral consistia em uma atividade eminentemente masculina, como bem mostrou a socióloga Ana Paula Simioni.

Em sua tese você analisa a ABL como um espaço marcado pelo androcentrismo. Essa perspectiva tem mudado com o tempo?

As mudanças têm sido muito tímidas e descontínuas. Estamos ainda diante de um ambiente refratário à presença feminina. Para se ter uma ideia, durante os primeiros anos de existência da ABL, o impedimento à candidatura feminina era algo tácito, tendo sido oficializado, isto é, incorporado ao Regimento Interno apenas em 1951. O veto caiu em 1976, quando Rachel de Queiroz propôs candidatura. Por isso, iniciativas como esta promovida por Ana Maria Machado são de vital importância, já que tencionam justamente lançar luz sobre esta característica histórica (travestida de casualidade), mostrar suas fendas e, quem sabe, concorrer tanto para um processo de auto-avaliação por parte da ABL – a homenagem pode ser o ponto de partida para eventos similares, que busquem dar visibilidade às histórias que não constam dos “registros oficiais” – quanto para revisões e complementações historiográficas. Atentar para os desvãos da história da ABL pode ser um bom caminho para enxergarmos a história como palco de disputas simbólicas por distinção, legitimação, canonização e para percebermos que tais lutas produzem marginalizações, hierarquizações e silenciamentos.

Em que medida essa reprodução de um sistema patriarcal dentro da ABL a desqualifica como uma instituição voltada à literatura brasileira?

Esta reprodução, com suas arbitrariedades, pode ser pensada como uma forma de deslegitimação. Quando a ABL foi criada, a carreira de escritor começava a ganhar os contornos de profissão, no sentido estrito do termo. No entanto, estamos nos referindo a uma época em que as mulheres eram vistas como essencialmente inferiores aos homens, tidas como pouco afeitas às atividades intelectuais. Uma agremiação voltada para o cultivo das letras e para a consagração literária significava, portanto, um ambiente exclusivamente masculino, capaz de lograr a seus fundadores uma posição hegemônica no ainda incipiente campo literário brasileiro. Contudo, a ABL não contava apenas com homens de letras em seus quadros. Havia também os chamados expoentes (em geral políticos e profissionais liberais), indivíduos sem vínculos significativos com o universo literário, mas que, dada a notabilidade conquistada em suas respectivas áreas de atuação, encontraram facilidades de acesso na entidade, estando seus ingressos tacitamente justificados em termos das vantagens que suas notáveis presenças renderiam à agremiação. Sob esse aspecto, a política de ingresso era, na prática, mais flexível do que previa o Estatuto da ABL ao definir o mérito literário como um de seus critérios indispensáveis de seleção. No caso dos homens, esta norma não precisava ser seguida ao pé da letra. Ingressar na ABL na condição de expoente sempre se afigurou como uma prerrogativa masculina: as mulheres que até então foram eleitas (e, diga-se de passagem, mesmo aquelas preteridas) são, sem exceção, profissionais das letras e/ou pesquisadoras reconhecidas, com carreira literária ou acadêmica consolidada.

Ainda poderia ocorrer algo como o que houve com Júlia Lopes, preterida em detrimento do marido simplesmente por ser mulher?

Não acho provável, porque estamos nos referindo a um período em que a barreira do gênero era quase intransponível, em que a profissionalização literária feminina era vista com grande objeção. Júlia Lopes de Almeida adquiriu notabilidade e prestígio justamente por ter sabido negociar com as expectativas sociais da época em torno do “devir” mulher, ou então graças ao engenhoso equacionamento que promoveu entre seus diferentes papéis – como escritora, esposa e mãe. É como se ela cuidasse para que “o riscar da caneta não perturbasse a paz do lar”, para usar uma expressão de Virginia Woolf. Mas entre o prestígio e a consagração literária propriamente dita existia a barreira do gênero. Apesar de os tempos serem outros e de não ser possível comparar a sociedade atual com a do século 19 sem correr incorrer em anacronismo, as relações de gênero continuam assimétricas, ainda que sob novas roupagens; estereótipos e estigmas relacionados às dicotomias entre mundo doméstico e esfera pública são diuturnamente reproduzidos e atualizados. Há formas sutis e veladas de violência simbólica que tornam desnecessária a existência de barreiras regimentais como a de 1951. Basta aludirmos, para tanto, à expressão “teto de vidro”, síntese dos obstáculos invisíveis a limitar a ascensão profissional feminina.

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