O sacrifício

O sacrifício
(Foto: Foto Stoyan Nenov)

Como sonâmbulos, caminhamos por entre abismos. – Mas mesmo se dizemos neste instante: “agora estamos despertos”, podemos estar seguros de não despertarmos em outra hora? (Dizer, então: voltamos a dormir).
L. Wittgenstein, Observações sobre os fundamentos da matemática

1. Há alguns dias fui me deitar sob o impacto da notícia de que a maior usina nuclear da Europa foi atingida por bombas. Mais um ato no teatro da invasão da Rússia na Ucrânia. Como acontece nesses dias, não havia clareza sobre as circunstâncias e responsabilidades: tudo é nebuloso. Mas já estamos nos acostumando a caminhar à beira de um abismo com os olhos vendados. Claro mesmo só duas coisas: as chamas que cortam a noite, labaredas lambendo as paredes que nos protegem do fim do mundo, e o que essas imagens revelam… A ameaça nuclear. Pode ser um exagero, mas para quem tem medo, ouvir “Não tenha medo” não tem qualquer serventia.

No pavor dos sentimentos que a cena alimenta em minha alma combalida, tentei pensar em outras coisas e atravessar a noite. Foi um sono sem sonhos, uma noite branca, vazia, imensa e pastosa. Não foi a agitação de quem está acuado nem a apatia da tristeza: apenas o branco pastoso. Se observamos bem, não são as ruas destruídas e as vítimas (que começam a se transformar em números) que perturbam o sono humano na Europa e alhures – afinal, todos nós sabemos da Síria e de Darfur e não me ocorre que algum dos meus vizinhos tenha perdido o sono. O que vem tornando as noites intranquilas é supor que um gesto, um descuido, um delírio ainda mais insano do que o delírio que nos trouxe até aqui, fizesse com que eles, aqueles barris de testosterona, ultrapassassem a linha fatal. Esse é o bicho que grunhe detrás da porta, à noite, enquanto se tenta dormir.

2. Quando acordei, no dia seguinte, não fui direto para o computador, a televisão permaneceu seca, imóvel e calada. Eu também não liguei para minha esposa que está há 1.700 km, na Itália, para dar ou receber notícias. Sentado à beira da cama, enquanto tentava escapar do torpor, me dei conta de que ao redor do apartamento onde estou havia um silêncio ainda mais intenso do que o costumeiro.

Nas vezes que pensei no fim, o fim absoluto, não imaginei explosões ensurdecedoras, terremotos, gritos. Só uma cortina de luz que nos cobre e se dissipa em uma fração de segundo e o silêncio perpétuo.

Porém, também quando eu penso no fim da guerra, no fim da calamidade, me vem à mente esse tipo de silêncio. Lembro de alguns dos meus escritores favoritos, como Sandor Márai, W. G. Sebald, Primo Levi, e imagino o ciclo imediatamente posterior ao fim da guerra como um tipo de exaustão que toma conta dos sobreviventes: eles estão tão cansados que não querem pular nas ruas, fazer Carnaval; foi tudo tão absurdo e aterrador que eles querem somente ficar quietos, próximos de alguém que amam, usufruindo do milagre de respirar, não pensam no futuro, não estão alegres, usufruem o milagre de respirar.

Por um segundo, ainda no meu quarto, me passou pela cabeça: tudo acabou ou o que acabou foi a guerra?

3. No interior desse segundo, como uma tempestade condensada numa gota de chuva, surge para mim, com todos os detalhes, tomadas e ângulos o filme O Sacrifício (Sacrificatio/Offret, 1986) de Andrei Tarkovsky. Estarrecido, no meio da tempestade no interior da gota d’água, somente agora, mais de 30 anos depois de o ter assistido pela primeira vez, o filme se apossa de mim.

Erland Josephson interpreta Alexander, um ator que abandonou os palcos por não suportar mais ser “honesto” na sua relação com os seus personagens e histórias (em Hamlet e n’O Idiota). Melancólico, Alexander desfia um diálogo interior, expressando seu desapontamento com os rumos da humanidade e na esperança mística da remissão e da redenção. Aquele era o dia do seu aniversário: estão reunidos, num lugar belo e retirado, a filha, o filho silencioso, a esposa, o amigo de longas datas que partirá em breve, o carteiro nietzschiano e as serviçais. O filme segue com cenas intrigantes, algumas desconexas, imagens superpostas de ruínas, dando a impressão, às vezes, de que Alexander ainda não havia despertado de um intempestivo desfalecimento de que fora acometido nos primeiros minutos da narrativa.

Sucedem-se os pequenos conflitos existenciais comuns à vida de todos os mortais, quando, de repente, o noticiário na televisão anuncia o início da Terceira Guerra Mundial e a iminente destruição total da humanidade. Todos são tomados pelo pânico. Num canto escuro da casa, Alexander, tentando conter seu desespero e crente da Providência Divina, reza. São mais ou menos essas as suas palavras:

– Eu Vos darei tudo que tenho, abandonarei a minha família que amo, destruirei minha casa, desistirei do meu filho, ficarei mudo, nunca mais falarei com ninguém. Eu destruirei tudo que me une com a vida se Vós fizerdes tudo voltar como era antes, como era nesta manhã, como era ontem. E livrai-me desse mortífero, nojento e animalesco pavor. Deus, ajudai-me! Farei o que prometi.

Alexander ainda realiza outros gestos no sentido de se fazer ouvir por Deus. Toda a narrativa está repleta de simbologias oníricas: permanecem os cortes repentinos e sequências fragmentadas. Até quando, depois de fazer a última evocação taumatúrgica – deitar-se com Maria, uma das empregas com supostos poderes –, adormece. Ao acordar, está de volta à sua casa. É dia. Observa incrédulo ao redor, verifica a lâmpada, o telefone, as pessoas que conversam no jardim. Finalmente o fim e a destruição não se consumaram. Tudo parece ter voltado a ser como era antes, como fora na manhã anterior, como fora ontem. Todos os indícios daquele inferno de desesperos havia desaparecido. E entre todos na casa não havia qualquer resquício do acontecido.

Tudo não passou de um sonho ruim ou se operou o milagre? Talvez tudo aquilo fosse apenas o fruto do sono profundo de uma alma angustiada. Talvez! Talvez Deus, na Sua infinita bondade, uma vez mais, houvesse interrompido, com Suas próprias mãos, o curso das coisas e salvo a humanidade. Fez isso ouvindo a súplica sincera de um piedoso, Alexander, capaz de se oferecer em sacrifício.

4. Aqui há um problema: como saber se sonho, se realidade? De onde viria a certeza? Posto que o sonho, o delírio, a ilusão, assim como a realidade, a vigília e a lucidez, são marcados pela mesma força arrebatadora da presença, do percebido, do que se sente… O que se nos aparece no sonho é formado pela mesma “matéria sensível” oferecida à visão, à audição disponível na vigília. Está ali, está para mim.

Mergulhamos numa bruma quando tentamos apontar a fronteira precisa entre o real e o onírico, a ilusão e a certeza… Principalmente quando estamos na solidão de nossos próprios pensamentos e pavor. A solidão e sua tristeza e horror é um critério?

5. No filme, Alexander pensa que distinguirá o sonho da realidade por aquele que parece ser o único critério irrefutável: o real é o que lhe ocorria como real; o sonho, o que lhe parecia como sonho. Ele solicita sua própria memória, averigua suas apercepções, consulta sua própria e solitária consciência. Ele poderia duvidar de alguma coisa que sua esposa lhe dissera (afinal, ela não o amava mais) ou não acreditar nos mapas. Depois de receber, como presente de Otto, o carteiro nietzschiano, um mapa da Europa, comenta: “– Tenho a impressão que os mapas de hoje não têm nada de verdadeiro”. Ele poderia duvidar de tudo, mas não poderia, sinceramente, duvidar da vividez dos próprios sentidos, cuja evidência só poderia aparecer ali, na presença integral, diante dos olhos da sua consciência. Os limites do mundo são os limites do seu mundo.

Por fim, Alexander se decide pelo sacrifício. Numa das mais belas sequências que o cinema já pode produzir, ele ateia fogo em sua casa que arderá, em tempo real, até desmoronar. Aquilo que parece sua insanidade é, na verdade, o cumprimento consciente e sofrido do sacrífico… único sustentáculo do mundo, tal como todos os outros os conhecem e habitam.

5. Agora eu ouço algumas vozes distantes de crianças e um carro acelera num ponto que calculo ser a esquina da minha rua. Vou até a janela e vejo crianças, outras pessoas, um senhor com seu labrador e carros que cruzam em duas direções opostas. Mesmo que eu não tenha escolhido e decidido, o silêncio se extinguiu – é possível que a minha angústia tenha tomado conta do meu corpo e me alheado de tudo. Ligo para minha esposa e ouço sua voz doce e amorosa, compartilhamos nossas aflições com os últimos acontecimentos, nosso horror pela insanidade política de um Brasil que nos espera e falamos dos planos de nos encontrarmos em breve. Com palavras carinhosas, nos despedimos e nos preparamos para mais um dia de trabalho. Somos professores e pesquisadores e precisamos, além de trabalhar, fazer algo contra a barbárie que nos cerca dia após dia.

Outra vez me encosto na janela e me certifico que as pessoas estão ali. E se eu ainda estivesse dormindo, eu poderia me dizer “acorde”? O que me importa agora não é isso, é outra coisa: se eu descer e puxar conversa com aquele homem que passeia com seu belíssimo labrador, poderíamos partilhar nossas preocupações com a guerra?

6. Não, não é um sonho, embora eu não possa decidir se é ou não é um sonho. O mundo gira sem que eu precise autorizar a rotação; a chuva cai ainda que eu esteja distraído. As tropas avançam, o perigo se propaga ainda que eu seja um homem bom. As bombas existem, elas estão nas mãos deles sem considerar que você que lê este texto seja uma alma generosa e ame alguém.

Deus operou o milagre? Não, ainda não. Ele ainda tem tempo e poderes para fazer isso. O que Ele está esperando? Talvez eu tenha esquecido de rezar ontem à noite.

Waldomiro J. Silva Filho é professor titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. Atualmente é Pesquisador Visitante do Center for Contemporary Epistemology and the Kantian Tradition da Universidade de Colônia, Alemanha.


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