O que temos aprendido com tanta pancada?
A esquerda não pode parar a luta institucional, mas precisa dividir sua energia com lutas extra institucionais (Arte Revista CULT)
Muitos amigos tiveram dificuldades para acordar na segunda-feira 18 de abril de 2016. Outros tantos sequer dormiram depois daquele domingo fatídico em que a Câmara dos Deputados votou o pedido de impeachment de Dilma Rousseff, expondo as vísceras do sistema político brasileiro. Foram horas e horas de pequenos discursos terríveis, que não preciso sequer exemplificar aqui, porque certamente estão gravados na memória do leitor. Entre um “como vota, deputado?” e outro dito por Eduardo Cunha, foram mais de 500 discursos que, concordando ou não com o golpe, mostravam que “nossos” representantes, no geral, nem a si próprios deveriam representar.
O país não se levantou daquele pesadelo. Como alguns já alertavam então, o passo dado naquele momento era tão grave que cobraria, durante muito tempo, uma conta que todos nós teríamos que pagar de alguma maneira. Estamos pagando e não sabemos quando nem como essa conta se encerrará, num país entregue a um grupo político profundamente enredado em questões criminais e comprometido com o desmantelamento da estrutura social – precária e frágil, obviamente, mas acenando para políticas distributivas e de democratização – que marcou os governos anteriores.
Gritamos “não vai ter golpe!” e, na verdade, tivemos um golpe tentacular, ainda em expansão, capaz de explorar todas as fragilidades da democracia liberal que engatinhava por aqui e, mais que isso, mostrar outras tantas fragilidades que insistíamos em não ver nos mais diversos campos da vida brasileira, colocando entre aspas muito pesadas nosso discurso sobre a “superação” da escravidão, do colonialismo, do fascismo, da exclusão social mais brutal etc, entre outras pragas históricas que arrastamos e nos atacam agora por todos os flancos.
Para tanto, o que começou como o ataque midiático e judicial a um partido logo mostrou ser bem mais que isso: não era apenas destruir o PT, mas tudo que a luta dos trabalhadores e dos movimentos sociais significa. O lema do golpe pode ser: “o Brasil não será um país mais justo, igual, democrático – nunca!”.
E essa “obra” conjunta que chamamos “golpe” não parece ter uma coordenação. Tem diversos “atores”, como um bando que se reúne caoticamente para saquear um mercado, como um arrastão, cada um atacando dentro do seu “negócio”: os políticos atacando na política, os latifundiários atacando o território, os empresários da saúde atacando o SUS, os empresários da educação atacando a universidade pública, os empresários da construção civil atacando as cidades, os empresários da mídia atacando a comunicação, os empresários em geral atacando a proteção social do trabalhador, as corporações de juízes, promotores, militares e policiais atacando nas suas “áreas de interesse”. E por aí vai, porque o único acordo entre os golpistas é golpear.
A prisão de Lula, sem dúvida, é mais um passo do golpe, um passo decisivo, porque visa tornar concreta a influência do golpe de 2016 sobre as eleições de 2018 e, assim, garantir que, no mínimo, os golpistas terão mais quatro anos para atingir seus objetivos, que incluem as “reformas” inconstitucionais que já vêm realizando e o empenho para desembaraçar-se das investigações policiais em que também foram envolvidas algumas das principais cabeças políticas do golpe.
Boaventura de Sousa Santos tem usado a imagem do “golpe continuado”, em analogia ao “crime continuado” do Direito Penal, para explicar a forma como têm se sucedido, em diversos níveis e esferas, os atos que constituem o conjunto do golpe. Parece-me muito apropriada a imagem, daí que não conceba pensar a ação política contra os golpes do golpe sem considerar essa continuidade, mas também seu caráter até mesmo aleatório, porque está em curso uma espécie de jogo sem regras, em que nem mesmo – ou principalmente? – os juízes atuam de forma minimamente previsível.
Nesse sentido, vários indicativos que estão nas manchetes dos jornais, a começar pelas declarações recentes de ministros do Tribunal Superior Eleitoral, fazem soar como excesso de ingenuidade a aposta em que as eleições deste ano estejam fora do alcance do golpe. Isso não significa que não haja nada a fazer, mas, pelo contrário, que o que deve ser feito, a partir da(s) esquerda(s), é muito mais complexo do que disputar eleições cuja previsibilidade vem sendo construída sem qualquer pudor. Quero dizer: haverá eleição, mas ela ocorrerá dentro do esquadro definido para beneficiar os mesmos grupos que mandam no país depois do golpe que tirou o mandato de Dilma. Prender Lula, como dito, é um passo decisivo dessa tarefa, mas não é o último.
Também nas obras recentes do professor português Boaventura, como A difícil democracia (2016) e Esquerdas do mundo, uni-vos! (2018), temos aprendido algo inquietante sobre as lutas que a esquerda deve empreender: “agir como se a democracia estivesse funcionando com mínima consistência, sabendo de antemão que não está”. De fato, aí está um imenso desafio, porque a esquerda, a um só tempo, não pode abandonar a luta institucional, mas, além de dividir sua energia entre ela e a articulação de lutas extra institucionais, tem que agir dentro do campo minado das instituições democráticas, que, por aqui, a cada dia mais se revelam dispostas a decepcionar as mais modestas expectativas de que serão fieis às funções que lhes são atribuídas na Constituição.
A pergunta que encabeça este texto, na verdade, vai bem além dele. À sua sombra, o que se disse aqui tem o objetivo de dar início a uma investigação coletiva das formas de resistência e atuação não apenas indispensáveis, mas competentes para lidar com um ataque com as dimensões e características que tentei retratar acima. É fácil, no entanto, definir seu sujeito: o que nós da esquerda temos aprendido com tanta pancada? É à esquerda, claro, atingida de modo muito mais duro, que se coloca a questão de tirar algum aprendizado de tudo que tem acontecido no país, ainda que as pancadas tenham sido distribuídas de modo bem mais amplo do que podiam imaginar os apoiadores do golpe nas classes médias e baixas… Qualquer esperança de que o país saia dessa profunda crise mais justo e igual passa pelas lições severas que formos capazes de tirar das formas como nossos muitos inimigos agem. Eis uma tarefa urgente.
TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.