O que Bolsonaro foi fazer na Rússia e na Hungria?
Esta semana uma jornalista perguntava no Twitter, retoricamente, “o que diabos Bolsonaro está indo fazer na Rússia?”. Certamente havia a questão das circunstâncias: como é que alguém vai fazer uma visita de Estado a um país que já tinha combinado uma guerra exatamente no mesmo período? Imaginem Putin deixando-lhe um bilhete dizendo assim: “Desculpe, Jair, fui ali invadir a Ucrânia e começar a 3ª Guerra Mundial, de forma que não pude esperar. Volte outro dia. Vladimir”.
Mas também tem a questão de qual pauta comum seria assim tão importante para que dois países mergulhados em profunda crise política e social precisassem de uma reunião oficial de chefes de Estado para se resolver. Até Ernesto Araújo, o bolsonarista ex-chanceler, disse que nada havia de tão importante a ser tratado que justificasse tal reunião. Como se a gente já não soubesse disso.
E assim voltamos à questão inicial: o que Bolsonaro foi fazer na Rússia e, em seguida, na Hungria? A resposta não poderia ser mais simples: foi fazer foto, como se dizia antigamente, ou vídeo, como é prática hoje em dia. Bolsonaro foi buscar registros audiovisuais da sua existência como chefe de Estado e de governo, do mesmo jeito que as pessoas fazem vídeos de quando estão grávidas, ou quebram o pé, ou tiram férias em lugares legais. Foi registrar recordações “instagramáveis”.
Bolsonaro e família estão curtindo os últimos momentos dos privilégios que vêm com o cargo de presidente da República, que só é garantido por mais dez meses. Gostaria, naturalmente, de levar a patroa, filhos, cupinchas e apaniguados (que são muitos) a Paris, Londres ou Roma, quem sabe a Berlim, Madri ou Lisboa. Queria mesmo era ser recebido em Washington, mas teve que se contentar com quem o quis receber.
Reuniões multilaterais, cúpulas e visitas de Estado, a prescindir dos resultados materiais que chefes de Estado sérios buscam com prioridade, são, além disso, excelentes ocasiões para conseguir reforçada cobertura da mídia. Ainda mais do jornalismo internacional. Pautar a mídia, exibir prestígio, mostrar ao público interno o quanto se é respeitado entre os pares internacionais, tudo isso é um capital político importante para um mandatário moderno. Tudo isso que Lula conseguiu recentemente em visitas não oficiais, não tendo cargo para mostrar nem corpo diplomático para as arranjar, apenas por ter nome e reconhecimento.
Bolsonaro não tem a sombra do prestígio de Lula, apesar de poder marcar visitas de Estado e obter tudo o que isso comporta em protocolos e cerimônias. Nas 19 viagens presidenciais feitas até agora (para visitas de Estado, reuniões ou participação em encontros e cerimônias), foi sempre uma figura pálida, secundária, ignorado como costumam ser os parentes esquisitos ou insuportáveis em festas de família.
Por isso, tem que se contentar com o que consegue. A sua primeira visita de Estado, no início de 2019, foi ao Estado de Israel, quando estava sob a liderança do linha dura e pouco prezado internacionalmente Benjamin Netanyahu. Depois disso, fora a Índia, a Argentina (quando ainda estava sob Macri) e o Suriname, por importância estratégica, Bolsonaro só andou frequentando autocratas. Com exceção da China, só autocracias de direita, como as monarquias absolutistas do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes), que são as suas prediletas.
Não é de surpreender, portanto, que as visitas de Estado desta rodada sejam a homens de ferro da direita, considerados tóxicos pelos líderes europeus, a começar por Putin, depois Viktor Orbán. Ao que se sabe, teria tentado ir também à Polônia, mas até mesmo um direitista isolado como Andrzej Duda lhe disse “não, obrigado, quem sabe na próxima?”. De fora do roteiro principal do Tour de Autocracias, até agora só faltaram Erdoğan, na Turquia, Lukashenko, na Bielorrússia, e Duterte, nas Filipinas. Quem sabe até outubro não sobre tempo para uma visitinha e uns vídeos?
A aposta da diplomacia de Bolsonaro em fazer visita aos líderes europeus e asiáticos da extrema-direita não é ideológica, é estratégica. Nenhum líder civilizado quer se ver fotografado em relações amistosas com essas figuras estranhas, justamente nesse momento em que, nos seus próprios países, movimentos e partidos populistas de direita emergem com maior força desde o fim da 2ª Guerra.
Bolsonaro é considerado internacionalmente como um dos inimigos da democracia e dos seus princípios, um populista de direita sem modos ou valores que se possa compartilhar. Além do arqui-inimigo mundial do meio ambiente. Quem, além dos líderes feios, sujos e malvados mundiais haveria de o querer em casa? É por isso que Putin o recebe, mesmo no meio do conflito com a Ucrânia, quando está ainda mais desprezado por todo mundo, e ainda que com visíveis contragosto e impaciência. Afinal, quem quer ser visto fazendo juras de amor a Putin, a não ser Bolsonaro, ou em convescote com Bolsonaro, a não ser Putin, Viktor Orbán e os ditadores do Golfo Pérsico? São os governantes internacionalmente enjeitados da Kombi da extrema-direita tentando se escorar uns nos outros. É cada um com seu cada qual.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes