O pensamento mítico e o surgimento da Filosofia

O pensamento mítico e o surgimento da Filosofia

O que é real nos deuses é a ordem transcendental que têm para viverem como vivem. Os deuses são constituídos para serem sempre

  

Zeus, no começo da Odisséia, faz uma definitiva crítica contra os seres humanos. “Os homens”, dizia então o pai do Olimpo, “dizem que seus males vêm de nós – os deuses – quando em verdade são eles que penam por seus próprios desatinos.” Exime-se, portanto, Zeus, e, além do mais, relembra o que ocorrera com Egisto. Do que morrera Egisto? Este matara Agamêmnon, de cuja mulher se apoderara, sem dar trela para a advertência dos divinos: que não fizesse aquilo, pois que Orestes – filho do assassinado – iria chegar para a vingança. E assim de fato foi.

No entanto, que papel teria o divino aviso, já que, enfim, de nada adiantaria? Inútil não fora – diga-se –, pelo menos para Homero e sua poesia: o “caso” Egisto prepara, pelo avesso, as virtudes de Ulisses, assim como do filho seu, Telêmaco, também antecipado na menção a Orestes. As informações narrativas não podem surgir bruscamente. A narrativa tem de dar avisos.

E quanto àquela visita meio à toa? Não soaria algo infamante aos imortais? Talvez não, pois os deuses poderiam querer de Egisto que ele, em vez de morrer como vivera, compreendesse a ironia de sua própria morte e apaziguasse por fim os seus sentidos carregados de loucura e poderio.

Quanto a avisar, os deuses sempre avisam. Pois não suportam o mundo ingovernável. Em geral avisam por migalhas, indícios indecisos. No entanto, avisam, e no caso de Egisto o fizeram claramente. Os homens é que não conseguem perceber, têm seus sentidos embotados. Por isso a tarefa divina é fazê-los compreender a tempo ou, sobretudo, quando é tarde. Isto constituiu a antinomia grega: os homens estão ou muito na frente ou muito atrás desses recados. Estão perdidos no sentido. Os homens são exagerados. São projetados, atirados. Reparem que Zeus não se alongou, e esta isenção metafísica não é rara na mitologia. Os deuses podem até reclamar um com outro, mas justificarem-se, eles não se justificam, porque tal seria banal e perigoso. Sua própria imortalidade, por exemplo, como é que eles a explicariam?

É um imperativo prático que os deuses vivam para sempre. Esse imperativo antecipa-se ao que se possa pensar sobre ele. Deuses não falam sobre sua imortalidade. Se os homens falam da morte, esse é problema deles, homens.

O que é real nos deuses é a ordem transcendental que têm para viverem como vivem. Os deuses são constituídos para serem sempre. Ressalvada essa ordem incondicional, eles são o que mais próximo existe de uma liberdade assegurada. Preferem comentar em vez de analisar, e mostrar em vez de comentar. Grandes deuses como Atena e Apolo raramente analisavam, e menos raramente comentavam (como fizera Zeus há pouco). Tinham, sem embargo, todo saber e toda filosofia em si mesmos, mais ou menos como, para alguns românticos, a natureza tinha em si toda a verdade. Sua filosofia desdobrava-se por recados problemáticos: tinham de se haver com os sentidos infinitos desse mundo, sobretudo os adversos, que são loucos, destrambelhados.

Era pelo modo de esses deuses se mostrarem que os mortais os consagravam como sábios, e os consultavam. Mostrar-se aí quer dizer: pôr-se em uma situação em que os mortais adivinhassem (ou não) o futuro próximo da vida. Esse mostrar-se, que nas artes era icônico, suntuoso –, na vida prática era digital, sutil. Fácil, portanto, era adivinhar a região de um deus, o seu poder, a sua ambiência, merecedores de votos e cultos, danças e competições. Difícil era saber suas decisões ou atitudes próximas. Saber era de certa forma adivinhar, tal como ainda pensa hoje a ciência.

Os deuses erravam? Que algum mortal, vez por outra, desancasse os divinais – tal, quando não desse em desgraça, era coisa de somenos, ninharia acadêmica. Havia quem culpasse os poetas, por perverterem a mitologia. Mas isto era parte do jogo de recados problemáticos.

Pois o mito é antinômico e vive (como vivemos) de seu desdobrar-se para fora de si mesmo. Uns e outros, tanto defensores como detratores dos deuses, assinalavam, sem ver ou perceber, o começo de uma discursiva ética, paralela, mas um pouco irônica também, em relação ao mito e seus imperativos, e foi esta que em parte patrocinaria o movimento iluminista da era clássica em Atenas (século 5 a.C.), de que surgiram a Ciência e a Filosofia, setores que, a rigor – e para surpresa de muitos –, prefeririam tratar de seus problemas, e não da essência da mitologia. Por quê? Porque, a rigor, o mito era imbatível, era o interpretante final de toda a história grega. Tal como as sementes, em que vão contidas todas árvores e talvez toda botânica.

Hegel, em um passo de sua Fenomenologia, diz – em prol do Iluminismo – que o advento da tragédia clássica abriria um espaço bem difícil para a penetração dos deuses, que estariam, por causa disso, com os dias contados.  Mas Hegel nessa hora explica a história humana pela estética na história, como se a segunda determinasse a primeira. Ora, sabemos que a história da arte não detém a história inteira. “A lírica não tem história”, dizia Dámaso Alonso, e Hesíodo é sempre mais moderno na visão dos deuses. Os deuses em Hesíodo não precisam de palco. Estão no cântico das musas, estritamente no cântico – e este é o elo entre mortais e divinais. Daí é que vinham, pois, todos os recados, inclusive os que se problematizavam.

Problematizavam? Não há de parte dos divinos um Decálogo. Há sim uma regra, uma instrução intuitiva, esquecida por Egisto e tantas outras figuras: não exagerar nem perverter qualquer relíquia da sabedoria prática mas, ao contrário, procurar a phrónesis (“sensatez”), e evitar o acaso puro ou puramente especular. Tal foi o grande pensamento negativo dos helenos.  Egisto exagerara. Seria punido, pois, e não pelos divinos, mas por “aquilo” que fizera, a perversão vindicando o perversor. Fora deste sentimento da hýbris (“desmedida”), o resto era týkhe, incerteza. O homem era o agente de seus males. Isto, se não evitava as coisas trágicas, uma esperança sempre dava. Era a tese de Zeus.

A sabedoria, portanto, era antinômica, e desde -Homero buscaram os helenos conviver com a fortuna e suas reviravoltas. Não eram contra o risco, mas contra a falta de virtude, embora não raro atropelassem suas virtudes. As musas tinham advertido a Hesíodo: que não se enganasse, pois tanto diziam verdades quanto falsidades. Mas o cantar em si mesmo, em sua musicalidade absoluta, e bem acima de qualquer outra divisão – era a voz apodíctica de todas as divindades.

Antonio Medina Rodrigues
é professor titular de Língua e Literatura grega da Universidade de São Paulo (USP), poeta, tradutor e ensaísta, autor de Utopias gregas (São Paulo, Brasiliense), Lírica de Camões (São Paulo, Ática), e da edição comentada da Odisséia de Homero, na tradução de Odorico Mendes, São Paulo: Edusp)

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