O Papai Noel no ano da Peste
O significado do Papai Noel nas dinâmicas psicopolíticas contemporâneas é no mínimo curioso e desvela um papel central no Natal moderno. Os adultos tratam tal ícone como uma figura desatrelada de qualquer raiz religiosa e ritualística, e esvaziam a diacronia e seus fundos históricos para aludir a uma “brincadeira” sem grandes extensões e intenções. Tal alusão propicia um alcance social inimaginável em sociedades plurais e desta forma, ortodoxos, heterodoxos, ateus ou sincréticos reúnem a família para celebrar um encontro que encerra o ano.
Há uma relação entre a fantasia dos adultos e a das crianças envelopada sob um pacto subjacente que paira sob todos: os adultos fingem que acreditam no Papai Noel para que as crianças finjam que creem no fingimento dos adultos sobre a crença no ícone. Nessa “brincadeira” do fingir há um duplo ganho. Do lado dos adultos há certo apaziguamento que reside no ato de presentear as crianças, sem saber exatamente a razão, e do lado das crianças há o recebimento de um presente que os inscreve no rito iniciático social.
Mas há desdobramentos importantes do rito. A fronteira estabelecida entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças não é parte de uma brincadeira asséptica sem consequências simbólicas, mas a garantia de que o mundo dos mortos e o dos vivos se difira a partir de uma marcação. Essa é a hipótese de Lévi-Strauss em um pequeno e precioso ensaio chamado “O suplicio do Papai Noel”.
Na ocasião de sua escrita, um acontecimento tinha percorrido a França: o Papai Noel fora executado no átrio da Catedral da cidade de Dijon. A Igreja realizou tal enforcamento publico para lidar com a “paganização” do dia do Natal e o ato polêmico fez com que o antropólogo escrevesse uma reflexão sobre o significado do Papai Noel no Natal contemporâneo. Entre continuidades e descontinuidades, vestígios e reaparições, o Papai Noel e a arvore de Natal surgem como uma “solução sincrética” que reúne elementos de diversas celebrações, da Saturnália romana, festivais medievais e renascentistas até a modernidade. Portanto, não há nada exatamente novo no renascimento do Natal, embora a figura do Papai Noel evoque paixões ferrenhas.
Do ponto de vista tipológico, Lévi-Strauss esclarece que Papai Noel não é nem um ser mítico (não contém mito original) nem lendário (tampouco narrativa). Ele é propriamente uma espécie de divindade caracterizada por uma relação etária: os adultos incentivam – apesar de descrerem – que as crianças creiam nele. Esse é o ponto, Papai Noel é aquele que diferencia as crianças dos adultos e recompensa aqueles que se comportaram bem, além de privar os que se comportaram mal. O ritual, então, realiza uma função de negociação bastante potente entre duas gerações, entre os não-iniciados (crianças) e os iniciados (adultos). A questão fundamental é que a relação entre os não-iniciados e os iniciados é uma relação complementar entre os grupos, que inclusive se invertem durante o ritual. Mas tal relação, para além de uma oposição entre crianças e adultos, revela e representa uma oposição entre os vivos e os mortos.
Em uma análise diacrônica, Lévis-Strauss trás o fio-condutor que culmina no Papai Noel contemporâneo: As Saturnais, que celebravam os sem sepultura e o velho Saturno, que literalmente comia crianças; o Julebok escandinavo, demônio que as presenteava; São Nicolau, que também lhes dá presente; e as katchina, crianças mortas que ressuscitam para castigar ou presentear as outras. Além do Abade de Liesse.
Bem, o ponto é que das Saturnais ao Natal moderno, essa festa dos mortos também reflete um apaziguamento, um pacto a partir de uma relação de troca na qual esses outros – os mortos, representados pelas crianças, que em outras culturas são representados pelas mulheres ou pelos estrangeiros – são presenteados. Eis que Lévi-Strauss termina o ensaio apontando uma bela coincidência ocorrida no Natal de 1951: acontece que a Igreja não estava incorreta sobre o Natal representar os vestígios do paganismo no homem moderno. Afinal, o rei das Saturnais, aquele que personificava Saturno, era sacrificado no altar de Deus no fim dessas festas repletas de excessos, assim como o Papai Noel fora executado na cidade de Dijon.
Os já clássicos filmes de terror de Natal também evocam uma causalidade entre a infância e a morte trágica: Black Christmas (1974-2006), de Glen Morgan, por exemplo, conta a história de Billy, a criança encarcerada no sótão que se transforma em um assassino na noite de Natal. Ou então Silent Night (1984-2012), de Steven C. Miller, que narra um assassino que mata apenas no dia de Natal por ter testemunhado o assassinato de seus pais pelas mãos de um homem vestido de Papai Noel. As duas refilmagens ilustram bem o conjunto de longas dedicados às vinganças de uma morte selvagem – para fazer referência a expressão forjada por Ariès de uma morte deslocalizada – e sua relação com o Natal.
Sem a figura do Papai Noel, São Carlos Borromeu, então Arcebispo de Milão, diante da Peste Negra que matava os cidadãos milaneses, decretou uma quarentena geral em 1576. Provavelmente fora um dos primeiros natais remotos da História: afinal, Carlos espalhou grandes cruzes pela cidade, em altares nas esquinas e nas janelas, para que a população pudesse sentir-se participando da Missa.
Há algo de litúrgico nessa marcação entre o mundo dos vivos e o dos mortos que é preciso resguardar. O colapso intencional, no Brasil bastante entoado por discursos negacionistas, revela o rito regional em sua ineficiência. Teremos muito tempo para compreender os efeitos sociais, históricos e culturais, dados pela indignidade destinada aos mortos pela Covid-19. Mas não há presente natalino que dará conta de refrear essas “assombrações”. O rito fúnebre depende de uma dignidade bastante especifica que não foi relegada a milhares de brasileiros nesses anos de Peste. Pelo contrário, o flagelo foi negado e pormenorizado, o tratamento conduzido de maneira atroz, através, por exemplo, de cloroquina, e os mortos “desacreditados” por milhares de desinformações espalhadas de maneira cruel.
Assim, não é nada hiperbólico pensarmos que o Natal passado tenha sido um filme de terror, versão brasileira, como estes que encenam o colapso da fronteira entre o mundo dos vivos e o dos mortos de maneira brutal. Terror este possível apenas por uma necropolítica largamente assumida por parte do governo e seus seguidores. Que o Natal de 2021 marque o fim de diversos ciclos, do vírus da doença e do vírus da ignorância.
Leonardo Goldberg é psicanalista. Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de diversos livros, incluindo O sujeito na era digital: ensaios sobre psicanálise, pandemia e história (Almedina, 2021).
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