O novo espaço público

O novo espaço público
Foto Funarte / Divulgação

 

Desde junho de 2013, a sociedade brasileira apresentou uma transformação. Recusando sistematicamente sua autoimagem cordial e as práticas dela consequentes, bem como criticando com dureza as instituições que as resguardam – tanto do Estado, quanto privadas –, fez emergir um novo espaço público, de maior intensidade democrática, e onde o conjunto múltiplo, complexo e interseccional de seus conflitos passou a ser permanentemente explicitado.

É evidente que movimentos de explicitação de conflitos no Brasil – seja de classe, mais tradicionais, como relativos a lutas identitárias, mais recentes – não começaram em 2013. A história do Brasil, como se sabe, é atravessada por revoltas de trabalhadores, rurais e urbanos, por quilombolas, por militantes, por ondas feministas, por movimentos LGBT (esses mais próximos no tempo), por movimentos negros etc. Mas alguns traços tornam possível afirmar que houve uma transformação na natureza desses conflitos. Eles se tornaram permanentes e mais abrangentes. A sociedade brasileira, ou uma boa parte dela, não permite que a tensão arrefeça.

Pelo menos dois fatores podem ter propiciado essa mudança. Um deles teria sido a formação de uma nova cultura política, gestada ao longo do governo Lula. É o que se pode desdobrar da leitura de Marcos Nobre: “À medida que foi se firmando um novo modelo de sociedade, social-desenvolvimentista, também foi se firmando na base da sociedade uma nova cultura política que lhe corresponde, enquanto o sistema político permaneceu dominado pelo peemedebismo. O resultado desse movimento de mais de três décadas trouxe com ele uma normalização do peemedebismo, com sua blindagem característica do sistema político contra a sociedade. Mas trouxe igualmente a incompatibilidade entre a nova cultura política correspondente ao social-desenvolvimentismo e a cultura política peemedebista.”

O choque entre a blindagem das instituições (não apenas do Estado), sua defesa sistemática dos interesses das elites político-financeiras, e a nova cultura política, clamando por uma democracia de maior intensidade, produziu uma panela de pressão social que não tem como se resolver, na medida em que as instituições não absorvem suas demandas (ao contrário, a partir do golpe, têm apertado progressivamente o garrote sobre quaisquer aspirações igualitárias).

Essa panela de pressão, por sua vez, só foi possível devido a outro fator, que, no meu entender, é inequívoco: o surgimento das redes sociais. De novo, a web 2.0 não nasceu em 2013, mas só a partir daí juntou-se às outras condições necessárias para que pudesse se tornar um novo espaço público brasileiro, com características de maior intensidade democrática do que o espaço público tradicional. Este, formado em larga medida pela grande imprensa, foi percebido como um correlato do sistema político, com sua lógica conservadora, manipulando a realidade de acordo com os interesses da elite político-financeira. Ao contrário, as redes sociais são, como afirma Manuel Castells, um sistema de autocomunicação, constitutivamente mais democrático. Tem sido ali que se desenrola um espaço público permanentemente tensionado, que, entre seus atores à esquerda, se recusa a aceitar a manutenção e produção contínua de desigualdades, tanto econômicas como identitárias.

Sobre estas últimas, as questões identitárias, elas não surgiram, do mesmo modo, em 2013, e sim em 1968 (de forma mais sistemática e conjunta, claro), mas tanto encontraram nas redes sociais um espaço produtivo de organização e manifestação, quanto se desenvolveram enormemente devido aos bloqueios quase intransponíveis a lutas estruturais num sentido mais universal. Como já observava Foucault, no início dos anos 1980 (o comentário se aplica à nossa realidade presente): “São lutas ‘imediatas’ por duas razões. Em tais lutas, criticam-se as instâncias de poder que lhe são mais próximas, aquelas que exercem sua ação sobre os indivíduos. Elas não objetivam o ‘inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solução para seus problemas no futuro (isto é, liberações, revoluções, fim da luta de classe)”.

Mas não é apenas devido a uma maior possibilidade estratégica de efetivar-se que as lutas identitárias cresceram. É também porque: a) mesmo as lutas mais gerais de classe não garantem o fim dos mecanismos de poder exercidos contra essas minorias (basta evocar a opressão brutal contra homossexuais em regimes socialistas); e b)  o domínio do reconhecimento não se reduz ao âmbito jurídico-institucional. Reconhecimento também envolve a dimensão social. Num país como o Brasil, onde há um descompasso entre a existência de leis e seu efetivo cumprimento, isso me parece especialmente importante. A existência das leis Maria da Penha e Caó, necessárias em si mesmas, não impede a reprodução do machismo e do racismo, em seus níveis de biopoder. A disputa por corações e mentes no plano social é, portanto, decisiva.

Entretanto o que tem acontecido no espaço público das redes sociais é, muitas vezes, assustador. Há pessoas atuando no debate com arrogância, autoritarismo, violência desnecessária e até covardia. Como disse, é claro que há a necessidade de explicitar os conflitos; e é claro que isso é o campo da política, onde a lógica é a do antagonismo. Mas arrogância, autoritarismo e violência quase sempre são equivocados em relação ao mérito das questões (geralmente complexas, com argumentos de diversos lados tendo a sua pertinência) e são equivocados, no meu entender, também da perspectiva estratégica (tacam fogo em qualquer possibilidade de construção de consensos mais amplos, renunciam a fazer distinções entre alianças maiores e dissensos de ordem menor e tendem a produzir reatividade imaginária).

Finalmente, há que se refletir sobre a dimensão moral de promover linchamentos nesse espaço público, convocando pessoas do mesmo grupo político-identitário para surrar um “inimigo” comum. Isso geralmente alimenta o princípio dogmático que move alguns grupos, pois seus membros unem-se estrategicamente contra o adversário, renunciando a criticar eventuais erros de argumentação e outros erros de seus aliados, bem como a aceitar argumentos e posturas corretas de seus oponentes. Chamo de princípio dogmático a atitude de taxar qualquer crítica pontual como oriunda de um adversário absoluto: discordar, por exemplo, de uma feminista em algum argumento específico pode transformar o discordante, imediatamente, em “esquerdo-macho” ou coisas do tipo.

Não estou aqui defendendo uma dissolução dos conflitos. Num artigo com que concordo fundamentalmente, o sociólogo Aldo Fornazieri comentou: “Exigir, neste momento, a despolarização, o debate polido, as maneiras finas e educadas, significa exigir que o povo permaneça bestializado. No Brasil, o povo sempre foi tratado como serviçal, como escravo, como ignorante, como grosseiro, cujo único atributo seria trabalhar e servir. As elites sempre se reservaram o monopólio do luxo, do dinheiro, dos vícios e da corrupção. Pois bem. Nos momentos críticos, de incerteza acentuada acerca do amanhã, essas elites mal-educadas, incluindo a intelectualidade que as serve, exigem boas maneiras daqueles que nunca foram bem tratados. O povo e os ativistas cívicos precisam aprender a tratar com grosseria as elites violentas, luxuriosas, vaidosas, corruptas, expropriadoras, sonegadoras, pois esta é a forma polida que merecem ser tratadas por terem construído uma sociedade injusta e brutalmente desigual.”

De acordo, mas é preciso fazer uma série de distinções. Há polarizações que são desejáveis, uma vez que demarcam nitidamente dois campos (por exemplo, nesse momento a reforma da Previdência, ou, de forma mais geral, a mobilização contra um governo ilegítimo). Mas há outras questões em que elas são equivocadas e contraproducentes, pois anulam categoricamente qualquer denominador comum onde eles certamente existem. Como afirma o cientista político Wilson Gomes, professor da UFBA: “Toda causa legal precisa tanto criar identidade entre os aderentes como criar pontes com os ‘de fora’. Grupo de interesses sociais que não cria pontes acaba virando uma seitinha radical, cercada de suspeita e agressividade por todos os lados”.

Em suma, a recusa a verificar distinções, a violência excessiva, as posturas dogmáticas, tudo isso pode acabar tendo como consequência um esvaziamento desse espaço público tão importante que é o das redes sociais (a violência desencoraja a participação), bem como dificulta a construção de alianças para avanços institucionais, e finalmente antipatiza com a causa de setores mais abrangentes da sociedade, que são geralmente aqueles que mais se deve disputar. franciscobosco@terra.com.br

 

(1) Comentário

  1. Para que não ocorra um “apagão” nas redes sociais, se faz necessário discernimento de postagens pelos aderentes a essa tecnologia, as interações nesses espaços devem ser postuladas por construção de saberes e ajuntamento de grupos com ideais simbióticos, ao contrário, continuamos apartados e na senzala da iá iá.
    []s

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