Stefania Bril e o mundo repleto de imagens
Bienal Latino-Americana de São Paulo, São Paulo, novembro de 1978 (Acervo Instituto Moreira Salles / Arquivo Stefania Bril)
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A exposição Stefania Bril: A desobediência pelo afeto, em cartaz no IMS Paulista até 26 de janeiro de 2025, lança um olhar sobre a obra da fotógrafa, curadora e crítica de fotografia de origem polonesa.
É digna de nota a curiosa história de como a botânica foi um dos primeiros pontos de entrada das mulheres no campo da fotografia. Em 1843, apenas 17 anos após a primeira fotografia de Nicéphore Niépce, a botânica inglesa Anna Atkins já empregava os métodos de captura da luz em cianotipia para ilustrar o livro Fotografias de algas britânicas, considerado o primeiro livro impresso com fotografias da história.
O fato relaciona-se a um episódio ocorrido mais de cem anos depois. Em 1962, a química de origem polonesa Stefania Bril deixava a área da pesquisa nuclear para cultivar tulipas em Campos do Jordão após o nascimento de sua segunda filha. Logo depois, Stefania voltava aos laboratórios, só que dessa vez os laboratórios fotográficos, pois ela passou a utilizar a fotografia como uma ferramenta de registro do cultivo das tulipas.
Stefania nasceu em 1922, em uma família judia na cidade de Gdansk, no norte da polônia, mas teve sua educação primária e secundária em Varsóvia em um momento de intensa ebulição cultural, ao mesmo tempo em que testemunhava a ascensão do antissemitismo. Nesse período, ela passa a viver clandestinamente fora dos guetos da cidade com passaportes e identidades falsas para sobreviver ao Holocausto.
Ao final da guerra, com Varsóvia destruída, Stefania se muda para a cidade de Lodz, no norte do país, onde inicia uma formação em psicologia e conhece Kazimierz Bril, que se tornaria seu marido. Como aponta Ileana Pradilla Ceron, curadora da exposição, “ela era uma menina com inquietações políticas, uma militante estudantil de esquerda”. Pouco tempo depois, os dois têm de deixar a Polônia. “Primeiro porque o país está destruído, em segundo lugar porque o antissemitismo polonês é anterior ao nazismo e continua depois dele.”
Da Polônia, Stefania e Kazimierz seguem para a Bélgica, onde ingressam juntos na Universidade Livre de Bruxelas, para estudar química. Ileana explica essa curiosa mudança de rumo pelo desejo do marido: “o sonho dele era formar um casal de químicos, como Marie e Pierre Currie”. “Ele convenceu Estefania de duas coisas. Uma, de ser química como ele, e outra, de abandonar a ideologia política de esquerda”, explica.
Já formada, Stefania e o marido seguem para o Brasil, onde já haviam se instalado alguns de seus familiares. Seu ingresso na fotografia se deu pelo incentivo de Alice Brill, artista alemã de origem judia que chegou ao Brasil fugindo do nazismo trazendo a fotografia desde o velho continente.
Stefania ingressa na escola de fotografia Enfoco tardiamente, aos 47 anos. Segundo conta Ileana, foi um modo de se reconectar com a Stefania das ciências humanas que havia deixado para trás com o exílio e o casamento, “integrando o segmento de mulheres já não tão jovens que, após terem cumprido os rituais atribuídos socialmente a elas, como o casamento, buscavam dar resposta a suas inquietações culturais e intelectuais”.
A partir daí, Stefania dá início a um período de prolífica, porém curta produção fotográfica entre os anos de 1970 e 1977. Mesmo tendo vivido as experiências do nazismo na Europa, e dos anos mais repressivos da ditadura militar brasileira, sua fotografia não se filiou plenamente às correntes fotográficas de caráter militante em ascensão na época, como a de Evandro Teixeira. Seu olhar, que não deixa de ser crítico, valoriza um humor ácido e sutil voltado contra a sociedade moderna através do tensionamento das contradições da vida na cidade.
Como afirma Miguel Del Castillo, que também assina a curadoria da exposição, “o olhar de Stefania para a cidade moderna é um olhar crítico a uma modernidade que não comporta diferenças. Isso é visto em pequenos detalhes, como naquela foto do ‘não passe pela direita’, ou quando ela fotografa uma família em vulnerabilidade ao lado de um outdoor dizendo que é moleza aplicar seu dinheiro em um fundo de investimento. Stefania fotografa uma política do cotidiano, do doméstico, que era algo muito importante e foi central para a nossa abordagem curatorial: pensar o cotidiano e o doméstico como espaços de resistência”, ressoando com o título da exposição: Desobediência pelo afeto.
Ileana aponta que Stefania nutria um interesse pela fotografia como força de transformação: o movimento chamado de fotografia social, no qual se destacam nomes como Jacob A. Riis, autor do fotolivro Como vive a outra metade, e Lewis Hine. Apostando na ideia de simplicidade, ela acreditava que a fotografia atinge o público de maneira direta. “Ela acreditava na força e na capacidade da fotografia em transformar alguma coisa”, diz Miguel.
Essa mesma ideia da simplicidade do seu trabalho e do alcance que ele logra junto ao grande público é o que permeia a sua atuação como crítica de fotografia no jornal O Estado de S. Paulo, que iniciou em 1978. Segundo conta Miguel, ela atuou pela formação de uma cultura visual ampla. O projeto da fotógrafa é sobretudo pedagógico: “em todos os seus textos, seja na imprensa especializada, seja na imprensa diária, ela tinha a preocupação de atingir o que ela chama de ‘leitor comum’. Ela entendia que vivemos em um mundo repleto de imagens e que precisamos ter ferramentas para interpretá-las”.