Fascismo ontem e hoje: o Moisés de Freud e Werner Jaeger
Se para Jaeger era importante cravar no presente alemão as marcas do mundo clássico, Freud vê desabarem os ideais de Belo, Bom e Verdadeiro (Arte Revista CULT)
O homem Moisés e a religião monoteísta talvez seja o texto mais engajado de Freud. Tanto sua forma, como seu conteúdo compõem um gesto político de resistência contra a avassaladora ascensão nazifascista na Europa Ocidental. Escrito no calor da hora, encarna uma reviravolta formal da própria psicanálise. Com ele, opera-se uma paralaxe, cujas consequências são extremamente intensas: ao invés de sua habitual tarefa de levar luz às sombras da civilização ou conceder aos seus restos um lugar legítimo ao sol, Freud agora implode os contornos da cultura ocidental fundados na tradição judaico-cristã e greco-romana. Convertendo a figura de Moisés em uma imagem egípcia, dissolve demarcações convencionais – Oriente/Ocidente, Negros/Brancos, África/Europa, Civilização/Barbárie. Emerge, então, uma miscigenação, cujo estatuto é ontológico.
Pensar o Moisés hoje conduz à pergunta: nossos tempos exigem um gesto demolidor análogo ao de Freud? Infelizmente a resposta é um retumbante sim. Não será preciso listar todas as últimas séries de catástrofes para notar que o fascismo se espalha vertiginosamente. Só nos últimos tempos, escutamos que o ministro do Interior da Itália quer fazer um recenseamento para expulsar todos os ciganos estrangeiros, acrescentando: “Infelizmente teremos que ficar com os ciganos italianos porque não podemos expulsá-los”. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, diz que “nenhum compromisso europeu será possível em matéria de imigração e asilo” porque “a Hungria é contra a mistura” com os povos estrangeiros. Segundo ele, são “invasores” e não “refugiados”. Acrescenta a isso: “para nós, a imigração não é uma solução, mas problema … não remédio, mas veneno”. Nos Estados Unidos, crianças são separadas de seus pais imigrantes e colocadas em campos de detenção. Lá também é possível ver ideólogos americanos, como Jared Taylor, espalharem seus ideais racistas e nacionalistas diariamente com o ar da legitimidade institucional e apoio do atual governo de Donald Trump. No Brasil, não precisamos repetir a sanha fascista que se expande e agora se expressa mais claramente na candidatura à presidência de Jair Bolsonaro.
Diante dessa situação, não surpreende que Franco Bifo Berardi tenha chegado a um diagnóstico tão contundente: “O racismo é o único ponto de concordância entre os europeus. Nada mais e nada menos que isso: racismo”. De sua perspectiva, o racismo não está relacionado ao “medo do outro, da diferença”. É, ele diz, uma “incapacidade de lidar com o passado colonial”. Na Europa ainda prevalece, acrescenta, a imagem de que se “ganha quando se é mais racista que o outro”. Não importa que “isso signifique a morte de milhares de pessoas e o aprisionamento de milhões na Líbia, Níger, Camarões, Nigéria e assim por diante”. Lógica semelhante vale para o Brasil – aqui a barbárie é aplicada às classes pobres.
O anseio de pureza em Jaeger
Em meio à vasta coleção que compõe a biblioteca de Freud em Londres, encontra-se um conjunto quase completo da revista Die Antike, criada em 1925 pelo filólogo clássico Werner Jaeger, autor da famosa obra Paideia. Estão lá todos os volumes que saíram de 1929 a 1938. A revista é organizada por expoentes dos estudos clássicos durante a República de Weimar. Freud e Jaeger: dois nomes de peso, com olhos voltados para a Antiguidade na mais tenebrosa hora. O que eles viam?
Enquanto Jaeger recupera o estilo dos panegíricos para tornar vivaz e familiar o espírito da antiguidade na República de Weimar, Freud escava, nas escrituras sagradas, uma estrutura revolucionária e emancipatória, na qual espaço, tempo e linguagem assumem feições precárias. Se para Jaeger era importante cravar no presente alemão as marcas inapagáveis do mundo clássico, Freud vê desabarem os ideais de Belo, Bom e Verdadeiro. Desenham-se imprecisas as linhas de um povo – o judeu – que traça seu destino cheio de coragem, lutando pela liberdade.
Jaeger assume que o presente espiritual não está confinado em seu próprio tempo – o presente apela por sua história, “rio eterno, no qual nada dura mais do que o próprio movimento” que “não retorna”. Trata-se de uma busca do perfectum no praesens historicum. Esse esforço, salienta, não teria ocorrido cem anos atrás. Pois, naquela época, lembra-se, a antiguidade ainda estava viva no mundo intelectual de poetas e pensadores alemães – Winckelmann teria sido o primeiro a polir o chão greco-romano. Eis que a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Alemã estremeceram o pavimento – é com a intenção de cimentar as fissuras dessa base que nasce, então, a Sociedade de Cultura Antiga e a revista Die Antike em plena República de Weimar. Para ele, “em todas as mudanças, apesar da constante entrada de novas forças formais religiosas, raciais e espirituais, a forma básica [ocidental] é constantemente mantida.”. Nela está cravada a “cultura clássica”. Sem ela, “a história do Ocidente torna-se um caos sem sentido”. Até mesmo grandes transformações históricas, acrescenta, como o cristianismo, se viram compelidas a absorver essa estrutura clássica greco-romana.
Para evitar os riscos de desagregação, a via proibida era precisa: o Oriente. Imbuído de um espírito missionário, cuja tarefa era alastrar uma terceira onda humanista, Jaeger visava conceder unidade ao Volkgeist alemão, impedindo que a Alemanha assumisse, como nação, uma versão pluralística e cada vez mais distante de uma “comunidade orgânica de valores”. O que se nota nos argumentos de Jaeger é a total ausência de perspectivas civilizatórias fora da Europa. Não há também qualquer nota sobre ações bárbaras oriundas dali. Terrores concernentes aos atos colonizadores ou à escravidão ganham tons civilizatórios se moldados ao perfil da “nobre simplicidade e grandeza serena” (Winckelmann). Por isso, ao tentar identificar as camadas que compõem a cultura, Jaeger observa uma distensão da aliança milenar entre cristianismo e antiguidade por volta de 1500, mas nem mesmo consegue enxergar que tal abalo tivesse alguma relação com a “descoberta” – melhores termos seriam invasão e pilhagem – das Américas.
Na visão de Jaeger, “as ideias culturais não são comida para as massas” e voltar o olhar para a antiguidade não é “mero interesse estético, que encontra objetos mais atraentes [reizvoll], desconhecidos [unbekannt] e mais estranhos [fremdartig] […] na arte da China e da Índia, ou entre os primitivos”. Considerando “demasiadamente relativizante à consciência […] europeia” a ampliação do espectro cultural para horizontes estrangeiros anteriormente pouco conhecidos – Índia, China, Egito etc. –, Jaeger estava empenhado em estabelecer uma forte fronteira entre o Geist helênico e aquilo que era Oriental. Esse horizonte “bárbaro” ou “primitivo”, certamente estranho para os olhos de Jaeger, deveria ser afastado com o revigoramento do classicismo, conquistado com os olhos firmes na Alemanha de Winckelmann, Goethe, Hölderlin e Nietzsche.
Oriundos do berço renascentista, o iluminismo franco-inglês do século 18, o idealismo alemão clássico e o neohumanismo moderno teriam sido depositados sobre sólidas bases da antiguidade clássica. É curioso, mais uma vez, que não façam parte de suas observações as relações com aquilo que é extra-europeu – pelas linhas que escreve, o leitor tem a nítida impressão de que as alterações históricas da cultura europeia são endógenas e de que ela deveria se fechar ainda mais para manter suas metamorfoses próprias, sem influências maléficas daquilo que está destituído da perfeição formal clássica.
Levando-se em conta outras afirmações de Jaeger, não há como deixar de notar a incômoda coincidência: dentre as várias posições que disputavam discursivamente lugares políticos na República de Weimar, a voz de Jaeger surge profundamente alinhada ao verniz nazista. Mais claramente: em sua visão, seria necessário retirar qualquer “mácula” capaz de deturpar a “bela pureza” das raízes que sustentam a arquitetura cultural alemã – algo claramente compartilhado pelos ideais arianos, para os quais “máculas” a serem eliminadas eram certas vidas humanas, tidas como indignas. Deduz-se, sem grandes dificuldades, que do lado clássico-teutônico estão a razão, a forma apolínea e platônica, onde prevalece o reino inteligível das belas formas essenciais.
É consensual hoje a afinidade de Werner Jaeger com o nacional-socialismo. William M. Calder definiu-a como a de um “companheiro de viagem relutante”. Sua ida aos Estados Unidos em 1936 o incluiu, durante muito tempo, no grupo de intelectuais alemães que teriam “resistido vigorosamente ao advento do nacional-socialismo” (Hübscher, 2017); entretanto, está claro entre estudiosos de sua obra que Jaeger havia buscado estabelecer um diálogo e uma aproximação com o novo regime, logo nos primeiros meses de 1933. Dois textos provam a adesão aos ideais do nacional-socialismo: Die Erziehung des politischen Menschen und die Antike, publicado na revista alinhada ao NSDAP Volk im Werden, editada por Ernst Krieck, bem como sua “Introdução” à Paideia publicada em 1934.
Essa volta às origens com pés fincados no presente bem poderia confundir teses de Freud com as de Jaeger. Nada, porém, seria mais equivocado. Em Jaeger, o passado está à serviço da normatividade excludente de tudo aquilo que não condiz com ideais de pureza, identificados sobretudo no Geist alemão e no modelo ocidental numa versão imaculada, isto é, sem que sejam considerados mestiçagens, influências, choques, traumas, em suma, relações constitutivas e inarredáveis da Europa ocidental com os outros lugares do globo, tidos como periféricos. Luz e sombra, eis a diferença – enquanto a psicanálise persegue o apagado, visando criar formas que permitam a ele adquirir um lugar, visões como as de Jaeger jogam violentamente na vala escura tudo aquilo que não cabe em seus brilhantes moldes pré-fabricados.
Aqui o Moisés de Freud emerge como uma estaca cravada no coração de perspectivas normativas, cuja orientação dava respaldo aos valores difundidos pelo nacional-socialismo. Diferente da noção de Jaeger, para a psicanálise origem relaciona-se ao atemporal próprio ao infantil, que se mantém vivo apesar da passagem do tempo. Inapreensível pelos sinais convencionais da representação imagética ou verbal, tal origem não pode ser capturada, apenas tocada em suas bordas. Vibrantes na vida adulta, os traços quase apagados da origem encarnam novas cenas e imagens do agora. Pela Nachträglichkeit sabe-se que o tempo em psicanálise acontece em dois momentos, nos quais o trauma é repetido na atualidade e pode – ou não – ser elaborado por uma narrativa que enreda só-depois eventos aparentemente desconexos que se chocam.
O Moisés de Freud e a precariedade
Pelas mãos de Freud, Moisés torna-se uma figura não-identitária. Alcançar a origem histórica do Pentateuco pela imagem de Moisés é quase como querer capturar o umbigo de um sonho – tarefa impossível. Na Bíblia, o que se encontra são histórias sobrepostas e reescritas em diferentes tempos, cujas densas camadas ganham uma forma mítica com pretensões históricas, numa sequência irregular de acontecimentos que ora intensificam as imagens, ora alastram o tempo pelo correr aparentemente infinito dos dias. Formada por várias traduções, dificilmente se alcança sua versão original definitiva – ao massoretico hebraico se somam partes em grego só existentes na Septuaginta e ambas as versões se confundem naquelas passadas para o latim, que, por sua vez, formam as traduções vernáculas –, a Bíblia pode ser definida mais pelo amálgama das palavras e idiomas do que pela clareza formal e semântica daquilo que está nela escrito. Nunca se fisga a coisa. Não há texto original, história verdadeira, por mais que os especialistas não se cansem de buscá-la. Assim, a escolha dos caminhos hermenêuticos é uma escolha de ordem ética e estética. Daí ser possível dizer que não se trata nem mesmo de uma hermenêutica, mas antes de efetivamente conceder palavras ao que trepida indecifrável das escrituras.
A língua titubeante de Moisés talvez seja a mais próxima de uma origem imprecisa. Ele esbraveja, engasga, gagueja. Como profeta, seu esforço é o de traduzir a palavra divina em palavra humana e murmúrios humanos em expressão divina. Traduzir é, então, movimento de despossessão de campos epistêmicos e abertura para habitar um vácuo no qual apaga-se a unidade identitária. O ritmo distancia-se do logos e da dialética. Moisés é a própria imagem do exílio. Sua figura abriga uma ontologia do instável, que já está muito longe da ideia de pureza. O caminho desértico do êxodo força sua confrontação contínua com a impermanência.
Não raro, a adesão ao fascismo é vista como resultado da estupidez. Exemplos como os de Werner Jaeger ou Martin Heidegger concedem a exata dimensão do problema – ele é mais profundo do que gostaríamos de acreditar. Contra formas estéticas e intelectuais dessa natureza é que o Moisés de Freud mostra toda sua potência – recuperar sua força hoje é antídoto extremo e necessário contra o fascismo que se tornou banal.
Alessandra Parente é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP