O jornalismo não deve ser um amplificador de Bolsonaro
(Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ AB)
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Na última terça-feira (28), a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista do repórter Thiago Amâncio com Steve Bannon, o ideólogo e estrategista político de Trump e da extrema direita mundial. O propósito, pelo que se depreende das perguntas, era entender a sua avaliação do futuro da direita, uma vez que nomes como Trump e Bolsonaro foram demitidos pelos eleitores nas respectivas eleições nacionais.
Entretanto, não por acaso a entrevista é publicada na semana em que se confirma o anúncio do retorno do líder da extrema direita brasileira ao país. Uma forma não demasiado discreta de aquecer a pauta e fornecer um abre-alas para a volta de Bolsonaro ao palco da notícia.
Na entrevista, Bannon continua negando o revés eleitoral recente, faz propaganda da força mundial da extrema direita, dispara prognósticos sem base empírica sobre o breve retorno ao poder dos presidentes derrotados nas últimas eleições e aproveita para promover Eduardo Bolsonaro a candidato a presidente do Brasil.
A rigor, não tem um centavo de informação nessa entrevista. Bannon usou a Folha para fazer o que faz de melhor, propaganda, e a Folha deixou que o fizesse. O ideólogo ganhou, assim, uma página inteira e destacada de anúncio grátis. Foi um daqueles momentos em que o mestre da propaganda põe o jornalismo no bolso, no Bolsonaro – com perdão do trocadilho infame.
A cobertura do retorno de Bolsonaro, nesta quinta-feira (30), véspera do aniversário do Golpe de 1964, confirma a pulga que a entrevista da Folha me deixou atrás da orelha. Jornais transmitiram ao vivo um evento para o qual compareceu apenas uma centena de pessoas, conferindo-lhe uma elevada importância jornalística que, no mínimo, é discutível.
“Importância jornalística” é coisa para se levar a sério no contrato fundamental que garante o vínculo entre os jornais e os seus consumidores. Há quem ache que o jornalismo, como um espelho, reflete o mundo. Se algo é relevante na realidade, teria que se refletir, com o mesmo destaque, nos jornais do dia. E quanto mais significativo fosse o assunto, mais extensa e detalhada seria a cobertura.
Na verdade, só um realismo muito ingênuo para sustentar uma ideia dessas, mas é desta convicção e deste combinado que sobrevive a atenção que as pessoas ainda conferem aos produtos jornalísticos. No fundo, os leitores, espectadores e ouvintes dizem às redações “Nós confiamos que, quando vocês destacam, é porque é importante e nós prestamos atenção, façam a sua parte no acordo que nós fazemos a nossa”. Assim, quando o jornalismo diz para a população que algo é tão importante que merece uma cobertura direta, a coisa se torna importante para todo mundo.
O jornalismo honrou a sua parte no pacto?
A volta do ex-presidente que saiu do país em desabalada carreira no último dia de seu mandato, sem ter a mínima decência republicana de entregar a faixa que lhe foi confiada; do sujeito que de longe instigou uma sedição e golpe de Estado; do cidadão que deixou atrás de si um rastro monstruoso de escombros e escândalos cujo inventário nem acaba nem cessa de nos assombrar; seu retorno é realmente tão importante para a vida pública nacional?
Que o retorno de Bolsonaro seja significativo para as suas viúvas políticas, parece-me compreensível, mas é realmente relevante para os cidadãos brasileiros, tem impacto real na vida pública nacional ou se trata de nada mais do que um balão inflado por tanta atenção que injetam nele, balançando ao vento da cobertura da mídia? Bolsonaro despido do poder presidencial é uma importante figura pública merecedora de cobertura ou uma triste figura de igualmente triste memória que só se sustenta em pé porque ainda recebe cobertura? O jornalismo que corre atrás de Bolsonaro deveria primeiramente responder isso aos seus leitores.
Perdoem-me a alegoria rural, mas Bolsonaro passou anos como quem joga pedras no telhado de zinco do galinheiro. A cada punhado de pedras, um alvoroço. Depois, pouco a pouco, o alarido vai diminuindo até que o silêncio se reestabeleça, e então é a hora certa para uma nova saraivada de seixos e uma nova algazarra.
Bolsonaro viveu basicamente disso durante o seu reinado. O escarcéu histérico e constante, de alto a baixo da vida pública, mas vindo diretamente da presidência e do governo, produzia e acumulava atenção pública em enorme proporção. E atenção pública, não se enganem, é uma das commodities mais importantes do mundo contemporâneo. Os meios de comunicação, os novos e os velhos, assim como as plataformas digitais e os que montam nelas suas barraquinhas de informação e discussão política, vivem do ramo de capturar audiência para vendê-la aos anunciantes. Ou seja, atenção pública paga as contas. É inegável que Bolsonaro foi um grande acumulador de audiência, e para quem vive de “monetizar” a atenção pública, era praticamente como pescar num barril.
O fato é que os jornais e revistas, os canais do YouTube, os podcasts e tudo o mais que vive de informação, análise e comentário político há de ter perdido atenção pública e, por conseguinte, audiência e, portanto, receitas, com a saída de Bolsonaro do jogo. A enxurrada diária de provocações, ofensas e insultos, as condutas feitas tão somente para aviltar e serem objeto da indignada conversa pública, os eventos encenados apenas para manter a alta temperatura da briga de foice que se tornou o debate político, tudo isso foi pouco a pouco minguando depois que Bolsonaro deixou de ser o protagonista do Grande Cabaré Nacional. E quando mingua Bolsonaro, declina o bolsonarismo e escasseia o rebuliço político a que estamos viciados desde 2013. A atenção pública que estava aqui à disposição de quem quer que falasse de política, o gato comeu.
De forma que entendo a falta que o alvoroço proporcionado por Bolsonaro deve estar causando em quem ganha honestamente o pão com engajamento, audiência e atenção públicas, inclusive as empresas de jornalismo sério.
Por outro lado, o jornalismo não é apenas isso. Tem responsabilidades republicanas, uma deontologia centrada na ideia de que serve aos cidadãos de sociedades democráticas. Não pode conceder palco e voz ao bolsonarismo apenas porque o frenesi que ele provoca e de que ele precisa concentra grandes públicos e garante audiência.
Bolsonaro precisa ser mostrado do tamanho que realmente tem, sem ter o seu volume aumentado pela intensidade da cobertura nem o seu valor inflacionado pela amplificação da sua voz. Sei que os boletos vencem, que o ramo da informação de qualidade padece como nunca e precisa sobreviver para o bem da democracia, mas se o jornalismo de referência me entregar o mesmo que fornecem os tantos canais e perfis da ecologia midiática de extrema direita, estará apenas acelerando o processo da sua perda de sentido social.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)