O inferno é aqui

O inferno é aqui

Cena de “Por acaso, Navalha” (Foto: Ronaldo Dimer)

Welington Andrade

O pioneirismo de um autor

A atmosfera de verdade e violência que exala da obra de Plínio Marcos (1935-1999) embaralhou as fronteiras das experiências realistas realizadas no Brasil até os anos sessenta, quando o dramaturgo surgiu com Dois perdidos numa noite suja. A peça, escrita em 1966, causou um profundo impacto ao desnudar o comportamento de dois indivíduos marginalizados que se confrontam até a destruição, levando a crítica a registrar que surgia uma contribuição nova à dramaturgia nacional. O autor inscrevia os párias, os excluídos e os marginais no grupo dos personagens teatrais brasileiros, explorando uma contundência nos diálogos desconhecida até então.

Tendo por inspiração um conto de Alberto Moravia (O terror de Roma), Dois perdidos numa noite suja trata da vida de dois sujeitos sem eira nem beira que dividem um “quarto de hospedagem de última categoria”. A fim de que a vida seja menos absurda, cada um deles elege um objeto de adoração do qual parece depender o sentido de suas existências: para Tonho, a dignidade pessoal está projetada em um par de sapatos novos com os quais ele pretende arranjar um emprego; já Paco, de posse de uma flauta, poderia ganhar algum dinheiro e, quem sabe, ser alguém na vida. O texto impressiona pelo jorro de autenticidade nascido de duas figuras que se estraçalham mutuamente em uma luta sem tréguas. Paco e Tonho são dois indivíduos surpreendidos em uma situação-limite que os obriga a ir às últimas consequências, rumo à aniquilação total.

Se as conquistas estilísticas e formais do texto serviram de matriz estética para os dramaturgos brasileiros da chamada geração de 1969 (cujos principais representantes são Antonio Bivar, José Vicente, Leilah Assunção e Consuelo de Castro), a própria peça apresenta traços que nos permitem aproximá-la de alguns autores estrangeiros cuja ideias circulavam por aqui na década de sessenta. O embate entre Paco e Tonho se dá como uma strindberguiana “batalha cerebral”; ambos os personagens mantêm um quê da atmosfera trágica vivida pateticamente pela dupla de vagabundos Vladimir e Estragon, em Esperando Godot, de Samuel Beckett; por fim, Plínio usou recursos semelhantes àqueles de que Edward Albee lançou mão em A história do zoológico. Transitando por um único cenário, dois indivíduos se enfrentam, vivendo um clima igualmente sufocante e amargurado. Em meio a um mundo sem horizontes, eles se movem às cegas, abandonados, partilhando uma única certeza: a de que a vida não tem solução.

Paralelamente a isso, deve-se destacar também a ascendência da obra de Nelson Rodrigues – que introduziu na cena brasileira a linguagem de rua, do falar cotidiano, da gíria – sobre a dramaturgia de Plínio Marcos. Convém ressaltar que a expressiva coloquialidade dos diálogos criados pelo autor de Vestido de noiva (1943) preparou o caminho para a transformação sofrida nas duas décadas posteriores, “ao instaurar de vez no palco a temática e o modo de falar brasileiros, que tiveram como corolário uma maneira nativa de interpretar”, segundo aponta Ilka Marinho Zanotto em “Descida aos infernos”, o precioso prefácio que ela escreveu para o Melhor Teatro de Plínio Marcos, publicado pela Global Editora em 2003.

Em Navalha na carne, de 1967, Plínio Marcos retoma basicamente os mesmos procedimentos usados no texto anterior. A peça reúne apenas três personagens: a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, que, ligados pela violência e pela melancolia, descem aos infernos em uma noite vivida num “sórdido quarto de hotel de quinta classe”, cuja atmosfera claustrofóbica muito se assemelha à de Entre quanto paredes, de Jean-Paul Sartre, como bem observou Décio de Almeida Prado.

A principal linha de força da peça reside em sua economia de recursos. As ações concentradas em único ato e a síntese verbal (os personagens hesitam diante das palavras e vomitam o mínimo delas) intensificam a relação dramática explorada em um ritmo de crescente tensão. Marginalizados no submundo em que vivem, esses três indivíduos se dilaceram e se expõem às maiores humilhações, ora por um cigarro de maconha, ora por um punhado de dinheiro. Neusa, Vado e Veludo são sujeitos-sujeitados que rastejam no mesmo plano abjeto no qual exercitam seus sentimentos.

A dramaturgia de Plínio Marcos trouxe para os palcos brasileiros um ineditismo de personagens (cafetões, assassinos, loucos, policiais, prostitutas, homossexuais, prisioneiros, meninos de rua) e de temas (a brutalidade, a solidão, a crueldade e a decadência humanas) também presente no ponto de vista adotado, no caso, o de alguém que conhece internamente os guetos sobre os quais está falando.

Se, sob uma perspectiva exclusivamente formal, as peças de Plínio Marcos proporcionaram o surgimento de numerosas obras de dois ou três personagens nos últimos anos da década de 1960, sob o aspecto ideológico tais peças privilegiavam o protesto e a contestação por meio da “explosão individual em lugar da análise esquemática dos jogos de força políticos”, conforme constatou Sábato Magaldi. Plínio Marcos não militou em nenhum partido ou facção política, embora sua obra, para Sábato, Ilka e outros críticos do período, tenha sido a mais revolucionária dos anos 1960 justamente por operar a transferência do problema social para o existencial (as situações-limite exploradas pelo autor constituem, assim, uma alegoria de um quadro social assustador) – o que fez a questão política assumir uma nova dimensão.

As potencialidades de um experimento cênico

Dirigido por Fernando Aveiro, o experimento Por acaso, Navalha, da Cia Caxote, toma o texto original de Plínio Marcos, Navalha na carne, como base para a criação de uma experiência íntima de teatro-instalação: somente vinte espectadores assistem a cada sessão, realizada em um pequeno quarto do velho sobrado que abriga a sede do grupo – o Espaço Mínimo – no bairro da Pompeia.

Espelhos e bonecos estão espalhados pelos aposentos da casa por onde o espectador transita antes de chegar ao quarto em que mora Neusa Sueli. É no exíguo e escuro aposento, então, que o público – cercado pela mobília desigual, mesquinha, decadente da prostituta – irá conviver muito proximamente, durante cerca de sessenta minutos, com três personagens lançados na voragem de uma situação extrema, de cuja imprevisibilidade não poderão sair outras coisas que não brutalidade e incerteza.

Navalha na carne tem a estrutura fechada de um drama – o que faz com que a peça esteja à margem de qualquer ousadia formal. Porém, os diálogos – ferramenta essencial à forma dramática – são agudos, encrespados, proferidos no limite da irrupção da violência física, convertendo, muitas vezes, assim, a vivência do drama naturalista em uma experiência expressionista, que podemos exemplificar por meio de três situações básicas. Inicialmente, as falas dos personagens não estabelecem interações legítimas entre eles; antes, comunicam somente suas obsessões expressivas. Em segundo lugar, a pressão emocional a que estão submetidos os protagonistas, por exemplo, os leva a embaralhar os níveis ontológicos, fazendo com que Neusa Sueli, por exemplo, chegue mesmo a duvidar do fato de ser gente. Por fim, a vivência interior desses três seres brutos e brutalizados é posta como absoluta: Neusa, Vado e Veludo não agem como se estivessem no inferno. Aprisionados entre as quatro paredes daquele asilo da desgraça, ínfero e macabro, eles, de fato, estão no inferno – disfarçado de um velho quarto de pensão.

A inquietante atmosfera de expressionismo confessional criada, então, no Espaço Mínimo é garantida não somente pela segura direção de Fernando Aveiro como também pelo firme trabalho do trio de atores, cada um indo buscar a seu modo um estilo próprio de interpretação. Murilo Inforsato confere ao violento e repulsivo Vado as tintas de um naturalismo muito convincente. Humberto Caligari explora outra vertente. Seu Veludo é um tipo essencialmente teatral, calcado na assunção de uma máscara facial estilizada, algo hierática. Já Bárbara Salomé compensa a pouca idade para viver uma prostituta beirando os 50 anos com uma energia e um domínio técnico de corpo e voz muito expressivos.

Entretanto, essa atmosfera íntima, confessional, de drama naturalista com fumos de expressionismo de Por acaso, Navalha, por mais sedutora que seja na esfera da realização de um bom espetáculo, como é o caso aqui, parece evidenciar uma questão muito espinhosa, lançada a partir de quando a experiência cênica termina. A proximidade natural que a montagem estabelece entre o público e os personagens soa mais como uma segunda derrota do naturalismo do que como a afirmação da evidência do seu poder de comunicação. (Utópico mesmo seria pensar no estado catártico a que seria submetido o público por meio do despertar de um sentimento de angústia solidária que ele teria por esses anti-heróis).

Se há cinquenta anos, os tipos marginais de Plínio Marcos ousaram pisar nos palcos dos teatros brasileiros, reivindicando para si o estatuto de personagens dramáticos, hoje, uma galeria infinitamente maior de marginalizados ousa pisar nas ruas em que passamos todos os dias somente a fim de reivindicar um punhado de moedas para o consumo de mais uma pedra de crack. Os sem-nada atuais se desdramatizaram. Assim como se desdramatizou a consciência do homem contemporâneo.

Saber que Neusa Sueli não é gente nos é indiferente, nos dias atuais, porque há toda uma massa de não-gente circulando a nossa volta a quem dedicamos a mesma indiferença. Essa, sim, é uma grande violência, cujo conteúdo manifesto o discurso do drama naturalista procura cercar, mas cuja estrutura profunda ele se mostra incapaz de atingir.

welingtonandrade@revistacult.com.br

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