O futuro no sorriso de Marielle
Marielle Franco no Complexo da Maré (Foto: Mídia Ninja)
O noticiário tem nos bombardeado com tantos absurdos que corremos o risco de nos tornarmos insensíveis ou indiferentes à gravidade do que tem acontecido e, pior ainda, do que – tudo indica – pode vir a acontecer neste país. A sucessão terrível de atentados à democracia que enfrentamos nos últimos anos, culminando na eleição de um presidente que se orgulha dos crimes da ditadura e promete mais violência, além da destruição de direitos e instituições, conseguiu desorientar e, assim, desarticular grupos que poderiam/deveriam resistir às medidas destrutivas do governo. E, se bobearmos, pode anestesiar nossa capacidade de indignação mesmo diante da notícia de que o nome do presidente da República apareceu numa investigação de homicídio.
Desde a noite de 14 de março de 2018, quando soubemos do assassinato da vereadora Marielle Franco, percebíamos que aquela não era uma morte como qualquer outra. Não era mais uma morte entre tantas neste país em que tantos cidadãos – ainda mais quando são negro(a)s, pobres, mulheres, homossexuais – são mortos sem grande comoção ou quaisquer esclarecimentos e consequências. Num país em que dezenas de militantes de direitos humanos são mortos todo ano, quatro tiros na cabeça de uma vereadora e outros três nas costas de seu motorista, Anderson Gomes, poderiam cair no esquecimento: a família e amigos sucumbem à tristeza, a imprensa perde o interesse, a investigação se desenrola lentamente. E os assassinos ficam impunes.
Quem matou Marielle e Anderson contando com isso, no entanto, pode ter se enganado. Marielle era grande demais: não cabe em qualquer cova da história. Já se passaram quase 600 dias desde seu assassinato – e o rosto, o nome, a alma de Marielle Franco continuam em evidência: no coração e na conversa de muitas pessoas, nas redes sociais, em capas de livros e revistas, nos muros em várias cidades do país, nas paredes das escolas e universidades, em manifestações pelo mundo, lá está o sorriso solar dela. Todos os seus eleitores sabem que, em Marielle, deram o melhor voto de suas vidas e lamentam não poder votar novamente nela, não poder tê-la como representante; a eles, sem dúvida, soma-se uma multidão de outros brasileiros. Eu, por exemplo.
Para desespero de seus algozes, Marielle não está viva apenas na memória de quem a admira e lamenta sua morte, mas segue vivíssima dentro de um inquérito policial que pode chegar ao Supremo Tribunal Federal, colocando o presidente da República nas cordas numa luta para a qual ele certamente não estava preparado, como deixou muito claro no vídeo que gravou ao saber da revelação do depoimento do porteiro de seu condomínio, em que tem como vizinho o homem que apertou o gatilho contra Marielle. O presidente estava nervoso, se atrapalhando com os óculos, os papéis e, claro, as palavras (e os palavrões), enquanto tentava ser “sutil” na ameaça a quem considera inimigo: a Globo, Witzel, o PSOL e seu próprio partido, o PSL.
E Jair Bolsonaro tinha razões de sobra para estar nervoso. Não bastasse essa vizinhança incômoda com o atirador, ontem soubemos que o comparsa que dirigia o carro na hora do assassinato de Marielle esteve no condomínio algumas horas antes do crime e, segundo o porteiro, foi autorizado a entrar por alguém que estava na casa 58 do Vivendas da Barra – a casa do presidente. Já havia muitas conexões entre o presidente, seus filhos e os suspeitos (policiais acusados de corrupção e violência que receberam condecorações e indicaram parentes para trabalhar nos gabinetes da família Bolsonaro, e até mesmo o namoro entre seu filho Jair Jr. e a filha do vizinho atirador), mas esse depoimento eleva a temperatura da suspeita: se a família Bolsonaro antes andava por perto dos acusados, agora foi lançada nos atos preparatórios do crime.
É claro que a investigação vai longe ainda, o presidente vai se defender e esse depoimento pode ser derrubado (aliás, Seu Jair já determinou a seus homens, entre eles o ministro Moro, que cuidem disso), mas o estrago político já está feito: o presidente já declarou guerra à Rede Globo, ameaçando a renovação da concessão pública à emissora em 2022, e ao governador Witzel. Certamente, Globo e Witzel não entraram nessa guerra desavisados: eles sabem quem estão enfrentando e devem saber de que armas dispõem para enfrentá-lo. De outro lado, mesmo alguém limitado e arrogante como Bolsonaro sabe que demolir a Rede Globo exige mais do que um chilique e alguma canetada. É briga de cachorro grande, sem dúvida. E nenhum deles defende senão seus próprios e tortos interesses. O povo vai pagar, não importa o vencedor.
Justamente por isso é tão relevante ver o assassinato de Marielle Franco no centro desse combate que pode ser decisivo entre grupos políticos que atacam tudo que ela representava. Porque Marielle sempre esteve e continua na posição radicalmente oposta a de Bolsonaro, Witzel e Globo. Oposta, sim, e lamentavelmente mais frágil. Ela jamais se juntaria a eles em vida, talvez nunca conseguisse derrubá-los com as armas políticas a seu alcance, mas, numa espécie improvável de vingança póstuma, sua morte vai fazendo com que seus inimigos usem seus poderes destrutivos agora uns contra os outros. Sei que não há motivo para grandes esperanças populares nisso, a não ser torcer para que caiam as máscaras desses heróis, mitos, “empresários” e “jornalistas isentos”, para que, em seu lugar, possam ganhar força outras Marielles.
Se a covardia deles chegou ao assassinato para deixar Marielle no passado, nossa luta passa por mantê-la viva, atormentando o presente autoritário que tentam nos impor, bem como seguir o exemplo de Marielle até um futuro mais justo. Continuar ao lado de Marielle Franco é o único lado certo nesse momento. E sempre.
TARSO DE MELO é escritor e advogado, autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.