O fetichismo como dispositivo de crítica

O fetichismo como dispositivo de crítica

 
 
Julieta Benoit
 
Pela psicanálise e o marxismo, a análise do fetiche expõe os móbiles da alienação tanto no campo do trabalho como no campo do desejo
 
 
 
 

Vladimir Safatle

Poucos são os termos tão ligados à constituição da consciência da modernidade ocidental quanto “fetichismo”. Enunciado pela primeira vez em 1756 pelo escritor francês Charles de Brosses, membro da Académie des Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia de Diderot e D’Alambert, o fetichismo aparecia como peça maior de uma operação que visava estabelecer os limites precisos entre nossas sociedades esclarecidas e sociedades primitivas, pretensamente vítimas de um sistema encantado de crenças supersticiosas. Já o título da obra de De Brosses dedicada à apresentação sistemática do fetichismo era ilustrativo: Do Culto dos Deuses Fetiches ou Paralelo da Antiga Religião do Egito com a Religião Atual da Nigritia (1760). Ou seja, tratava-se de criar um paralelo entre um limite à racionalidade moderna ao mesmo tempo histórico (no passado) e geográfico (no presente), e determinar as coordenadas histórico-geográficas do pensamento primitivo, isso por meio da identificação de uma forma de encantamento cuja ilustração perfeita seria o culto aos ditos deuses fetiches.

Da África no sujeito
O fetichismo aparecia definido, fundamentalmente, como culto de objetos inanimados e, em outros casos, como divinização de animais e de fenômenos irregulares da natureza. Baseando-se no relato de navegadores portugueses a respeito do modo de culto de tribos africanas da Guiné e da África Ocidental, De Brosses criava um termo derivado do português antigo fetisso (que dará no atual feitiço), a fim de colocar em marcha uma generalização extensa que englobava esses espaços infinitos nos quais o Ocidente não via sua própria imagem.

Tal caracterização do pretenso pensamento primitivo por meio do fetichismo atravessará os séculos 18 e 19. Ela pode ser encontrada, entre outros, em escritos de ideólogos como Destutt de Tracy, de filósofos como Kant, Hegel, Benjamin Constant, mas será com Augusto Comte que o fetichismo, definido como estágio inicial da vida social e das formas do pensar, alcançará sua enunciação canônica. Assim, quando o termo aparece pela primeira vez na psicologia e nos estudos das perversões, em dois artigos, publicados em 1887 pelo psicólogo francês Alfred Binet, intitulados “O Fetichismo no Amor”, ele já tinha atrás de si uma longa história. Constituído por derivação, o fetichismo como nosografia da perversão visava dar conta dos modos de investimento libidinal em objetos inanimados e partes do corpo, investimentos estes que podiam chegar à condição de determinações exclusivas do interesse sexual.

De fato, contrariamente a termos como “sadismo”, “masoquismo”, “exibicionismo”, todos constituídos ou transformados em perversões sexuais nesta época, “fetichismo” é a única categoria nosográfica que nasce da apropriação conceitual de um termo então em franca utilização em outra área do saber. Tal peculiaridade não deve ser negligenciada. Da mesma forma que o fetichismo aparecia no interior das teorias sobre a vida social como dispositivo de crítica a formas de vida que teriam permanecido em uma “infância perpétua” marcada pela ignorância e pela barbárie, o fetichismo relacionado à vida amorosa aparecia como modo de fixação do comportamento a uma fase regressiva em relação à maturidade sexual ligada aos imperativos de reprodução. Nesse sentido, talvez nenhum outro termo tenha exposto tão claramente essa estratégia de legitimação de práticas clínicas baseada na aproximação entre “pensamento primitivo”, comportamento infantil e patologia mental, como se estivéssemos diante de três figuras maiores da minoridade. Uma minoridade contra a qual o esclarecimento, anunciado por este Iluminismo cujo impulso alimentou a constituição do termo “fetichismo”, prometeu combater, seja na clínica, seja na crítica social. Minoridade esta assentada sobre o mito da identidade entre o doente, o primitivo e a criança. Como dirá Hartmut Böhme, tudo se passa como se o fetichismo fosse “a África no sujeito” e os perversos, “selvagens entre europeus”.

Freud e as solicitações da clínica à cultura e à teoria social
Este talvez seja o melhor contexto para abordar o problema do fetichismo no interior da psicanálise freudiana. Os textos que Freud dedicou ao problema, em especial o pequeno texto de 1927 intitulado Fetichismo, não são apenas peças importantes na constituição de uma teoria psicanalítica das perversões. Eles apresentam uma elaboração maior referente às formas de encantamento e alienação próprias a modos hegemônicos de relação dos sujeitos ao trauma da sexualidade e da diferença sexual. No entanto, tal forma trará consequências para além do campo da sexualidade. Vários foram os psicanalistas que perceberam como Freud tendia, no final de sua vida, a desdobrar suas reflexões desenvolvidas no interior da teoria restrita do fetichismo para repensar sua teoria da formação do eu. Nesse deslocamento de uma economia restrita a uma economia geral, tudo se passa como se uma categoria nosográfica, construída para dar conta da impossibilidade de sujeitos alcançarem maturidade sexual, fosse aos poucos mudando de função para expor processos e mecanismos próprios a uma teoria geral da mente; processos que diriam respeito a regimes cada vez mais hegemônicos de constituição de “sujeitos maduros” e de “resolução” de conflitos psíquicos.

Nesse sentido, uma das características mais interessantes de Freud consiste em trabalhar com um conceito clínico que traz em seu corpo as marcas de uma teoria do esclarecimento e do progresso histórico. Como se fosse o caso de problematizar a forma como uma teoria do progresso histórico fundamentava noções de psicologia do desenvolvimento. Freud sempre soube que a clínica não era um campo isolado de toda e qualquer elaboração de processos sociais de valoração, pois noções clínicas reguladoras, como normalidade, maturação, desenvolvimento, estão longe de ter sua gênese relacionada ao campo exclusivo da clínica. Elas nascem, muitas vezes, do apoio que a clínica pede silenciosamente às esferas da reflexão sobre a cultura e sobre a teoria social. O que nos leva a colocar questões epistemológicas fundamentais como: o que a clínica deve a uma produção de valores que tem sua fonte fora da clínica? Como tais valores conseguem estabelecer relações de ressonância com problemas eminentemente clínicos?

Essas questões derivam de uma problemática geral, referente à maneira como um discurso que pleiteia objetividade científica (e esse era o caso da psicanálise para Freud) depende do que não é imediatamente ciência. Problemática esta que deve ser aplicada ao campo geral da clínica das doenças mentais. Lembremos, a esse respeito, que o termo “fetichismo” não é apanágio exclusivo da psicanálise. A psiquiatria contemporânea continua utilizando-o, embora, no seu caso, pareça mero empréstimo da tradição. No entanto, empréstimos conceituais têm uma grande diferença em relação a empréstimos bancários: quem toma emprestado um conceito sempre leva mais do que pede.

Freud, Marx e os móbiles da alienação
Voltando à elaboração freudiana, veremos que ela é funcionalmente solidária de outra elaboração maior, a discussão marxista sobre o fetichismo da mercadoria. Tanto Marx como Freud acabaram por dar forma conceitual a um momento histórico de deslocamento do sistema de partilha entre modernidade e pré-modernidade, pois mostraram como o encantamento e a alienação que o Ocidente identificou em seu outro operam, na verdade, no interior de nossas sociedades desencantadas e no cerne de nossas próprias formas de vida. Eles se servem de um conceito (fetichismo) até então usado para descrever o que seria exterior às sociedades modernas ou fixação que impedia o desenvolvimento de processos de maturação da vida sexual. Agora eles o utilizam para descrever o interior do processo de determinação do valor em nossas sociedades (Marx), ou ainda o modo com que a maturação sexual e a formação do eu podem admitir a regressão e a dissociação subjetiva (Freud).

Por meio dos dois autores, o fetichismo transforma-se em dispositivo de crítica da modernidade e de seus processos de socialização, expondo os móbiles de alienação, seja no interior do campo do trabalho, seja no interior do campo do desejo. Nesse sentido, não deixa de ser sintomático que, no momento em que a antropologia abandonará o conceito de fetichismo como um “imenso mal-entendido” entre a civilização europeia e a africana – isso principalmente por meio de uma crítica decisiva feita pelo antropólogo Marcel Mauss, em 1907 –, ele continuará em operação nestes dois regimes de crítica que têm em comum a exigência de levar a cabo a exposição das alienações no interior das formas hegemônicas de vida no Ocidente: a psicanálise e o marxismo. Dessa forma, o fetichismo aparece como um termo que tem a força de unificar a crítica do trabalho e a do desejo nas sociedades modernas capitalistas. Essa força peculiar vem talvez do fato de o fetichismo demonstrar como “nenhuma teoria da modernidade poderia ser mais falsa do que esta que identifica modernização e incremento linear da racionalidade”.

(1) Comentário

  1. Acredito que esta seja uma das melhores matérias publidas este ano. Fazer uma conotação do fetichismo freudiano com o marxiano, transcende a crítica da teoria moderna (Teoria Crítica), oriunda da escola frankfurtiana, para explicar de forma coerente o estado de reificação atual.

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