O empreendedor cordial

O empreendedor cordial

Os Azeredo mais os Benevides

Welington Andrade

“Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.”
Carlos Drummond de Andrade.

Em “A politização do teatro: do Arena ao CPC”, capítulo que integra a História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas, (projeto editorial dirigido por João Roberto Faria para a Editora Perspectiva e as Edições Sesc-SP), a professora, pesquisadora e tradutora Maria Silvia Betti, ao tratar das propostas teatrais desenvolvidas entre os anos de 1960 e 1964, declara: “… foi dentro do CPC que o épico encontrou suas condições mais amadurecidas tanto no campo político da luta coletiva como na seara artística dos expedientes épicos. Não é mera coincidência, assim, que uma peça como Os Azeredo mais os Benevides se coloque como um dos mais avançados trabalhos de dramaturgia épica praticados no Brasil até esse momento”.

Cinquenta anos após ter sido impedida de estrear no Teatro da UNE do Rio de Janeiro, localizado na Praia do Flamengo, em virtude do golpe militar deflagrado em 31 de março de 1964 (o prédio da entidade estudantil, como se sabe, foi incendiado já na madrugada do dia 1º de abril), a peça que Oduvaldo Vianna Filho escreveu para o Centro Popular de Cultura ganha uma montagem – dirigida por João das Neves – à altura de seu poder de interlocução com a realidade política e sociocultural do país.

Se muitas são as razões para que grande parte das boas criações que integram o repertório dramatúrgico brasileiro constituído desde o século XIX permaneça longe dos palcos, adormecida em seu “estado de estante” (dentre essas razões, podemos destacar, de um lado, a falta de interesse das novas gerações de diretores e atores pelo exercício de mediação histórica que uma peça de teatro escrita em um tempo não tão imediato como o presente pode praticar sem soar anacrônica, e, de outro, a postura anti-intelectualista que cada vez mais ganha corpo nos círculos bem-pensantes do país), maiores ainda são os motivos que levam inúmeras obras brasileiras de clara vocação política a permanecerem escondidas na última gaveta dos arquivos da memória nacional. (O maior dos motivos provavelmente reside na insidiosa ojeriza que se está criando em torno da palavra “política” no país).

O processo de politização do teatro e da dramaturgia no Brasil, iniciado em meados da década de 1950, revelou as contradições implícitas na relação de intelectuais e artistas com a realidade socioeconômica brasileira, pautada pelo avanço irrefreável de um capitalismo industrial insensível às demandas legítimas das classes operária e camponesa. Num primeiro momento, os palcos tornaram-se tribunas nas quais era preciso debater questões urgentes como o imperialismo norte-americano, a reforma agrária e o movimento estudantil. Após o recrudescimento do regime, o foco se voltou para a resistência à opressão e ao arbítrio. Em ambos os casos, artistas e intelectuais se dividiram em relação a como lutar. Ou se deveriam mesmo ingressar na batalha.

A referência para Vianinha escrever Os Azeredo mais os Benevides é a forma do teatro épico de Bertolt Brecht, cujas ideias começaram a chegar por aqui em fins da década de 1950. Entretanto a peça rapidamente se descola de seu modelo original, passando a experimentar as possibilidades expressivas de uma teatralidade genuinamente brasileira, que naquela ocasião estabelecia grande empatia com o público. A história trata da relação do jovem empreendedor rural Esperidião com o camponês Alvimar, mediada por uma velha conhecida nossa, a “cordialidade”. No nível da fábula, tudo leva a crer que essa amizade será preservada custe o que custar graças ao empenho pessoal de ambos os amigos. No entanto, a enunciação épica da peça vai pouco a pouco desmontando tal crença, ao evidenciar que a dinâmica histórica da sociedade de classes irá falar mais alto e fazer, por conseguinte, com que a afetividade entre aqueles homens migre para o cínico terreno do discurso das boas intenções e permaneça somente por lá.

Entrar hoje no Teatro Denoy de Oliveira (batizado pelo CPC-Umes, que o administra, em homenagem ao ex-integrante da “fase heroica” do Centro Popular de Cultura) e assistir ao trabalho de um elenco composto por vinte atores muito seguros, dirigidos pelo mesmo João das Neves da montagem original, tem algo de fascinante. Mas poderia constituir mero exercício de nostalgia, não fosse a força expressiva que emana da realização do espetáculo. Força esta que resiste, intacta, aos dois dos maiores riscos oferecidos pela empreitada. O primeiro deles diz respeito mesmo àquela visão nostálgica, que pode – pela via da idealização romântica – embotar um pouco a percepção crítica que o espectador precisa ter da peça no aqui-agora, e não no lá-então. O outro risco está ligado ao efeito contrário, isto é, à negação absoluta que o espectador pode devotar à experiência, baseada em um discurso redutor que trata tal tipo de dramaturgia como “obsoleto”, “ultrapassado”, “fruto de uma visão de esquerda cujo projeto político assumidamente fracassou”. Isolados ambos os riscos, a montagem de “Os Azeredo mais os Benevides” certamente terá ainda muito o que comunicar às plateias contemporâneas, em razão da vibrante mistura que o texto e a montagem propõem entre três níveis de expressão: o ethos, o pathos e o logos.

O ethos trata do caráter assumido pelo discurso da peça com o fim de angariar a simpatia do espectador para a causa que ela debate, demonstrando sua credibilidade por meio da crença em um projeto comum. Assim, o teatro de matriz épica procura converter a experiência cênica em experiência cívica, irmanando atores e plateia em um ato de comunhão política. Se, na década de 1960, grande parte da arte concebida no Brasil utilizou-se desse convite feito à “participação cívica” da plateia (categoria estudada com muita propriedade por Roland Barthes, no cenário internacional, e por Heloisa Buarque de Holanda, no âmbito brasileiro), cinquenta anos depois, a prontidão ética de “Os Azeredo mais os Benevides” parece inteiramente preservada. O país de que fala a peça mudou, mas muitas coisas permaneceram intactas. (As formas de dominação e opressão ganharam contornos muito menos visíveis e até se confundem hoje com entretenimento e consumo, no entanto, os conteúdos de manipulação e domínio continuam os mesmos). Independentemente, então, das convicções político-partidárias de cada um, o espetáculo mostra a grande dívida interna que não consegue ser sanada. E isso – somente os privilegiados poderiam negar – diz respeito a cada um de nós.

O pathos está ligado às emoções e aos sentimentos que a peça deve suscitar no espectador com seu discurso. A afetividade que emana do texto de Vianinha é do tipo comedido e está vazada sobretudo no uso expressivo que a encenação faz da música, elemento mediador da apresentação da fábula. Ótimo exemplo disso é a canção Chegança (único tema que Edu Lobo criou para a montagem original). Impossível deixarmos de nos emocionar não somente com a letra, que trata de modo mais dramático do que épico do deslocamento desordenado do trabalhador rural pelo campo, mas também com a melodia, que vai contagiando o ouvinte com sua atmosfera de sofisticado lirismo (Recomenda-se a audição do belíssimo registro que Elis Regina fez da canção, acompanhada pelo Zimbo Trio, em O fino do fino). Vale destacar que os demais temas apresentados na atual montagem foram compostos com muita competência por Marcus Vinicius de Andrade, resultando em um trabalho musical em plena sintonia com a perspectiva estilística da criação original de Vianinha.

Por fim, o logos está voltado às condições da argumentação proposta pelo discurso da peça em seus aspectos teórico e reflexivo. Para além dos efeitos estéticos, o teatro político se propõe a registrar e debater uma série de circunstâncias e acontecimentos históricos, sociais e econômicos que levem o espectador ao bem-vindo exercício da consciência crítica. Reside aqui a grande qualidade do texto de Vianinha, muito bem ressaltada pela direção de João das Neves. O modo ambivalente como a narrativa vai se desenrolando aos olhos do espectador não deixa dúvida: o mecanismo de exploração econômica que sustenta o capitalismo contemporâneo (muitas das atendentes dos cafés instalados hoje nos suntuosos shopping centers do País provavelmente nunca ouviram falar de Alvimar, mas sentem na pele cada uma a seu modo o mesmo processo de submissão e humilhação sofrido por ele) está assentado, ambiguamente, na prática da violência e no discurso da cordialidade. Somente os néscios – anestesiados por reativas doses de indignação, seja contra a corrupção, seja contra qualquer tema-espetacular da vez – não são capazes de testemunhar, diariamente, tal realidade.

Alguns espectadores talvez saiam do Teatro Denoy de Oliveira com um incômodo sentimento de vergonha por terem simplesmente gostado da montagem. Mas esse comportamento certamente não faz bem para a cultura brasileira. Vergonha de soarem anacrônicos e ainda acreditarem nas premissas do trabalho artístico e cultural que orientou outrora o CPC e ainda orienta o CPC-Umes. Vergonha de terem sido convidados ao exercício da emoção cidadã, hoje travestida de histeria nos grandes eventos promovidos pela mídia. Vergonha, por fim, por reconhecerem que o país continua a fracassar no ajuste de contas com todos aqueles desassistidos por ele. Porque, como o texto de Vianinha ironicamente advertiu há cinco décadas, no republicanismo à brasileira, muitos continuarão azarados, poucos os bem de vida.

welingtonandrade@revistacult.com.br

Os Azeredo mais os Benevides
Onde: Cine-teatro Denoy de Oliveira – Rua Rui Barbosa, 323, Bela Vista. Tel: 3289-7475
Quando: Sextas e Sábados 20h; Domingos 19h
Quanto: R$ 30,00 (meia-entrada R$ 15,00)
Info: (11) 3289-7475

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