O dilema de Ciro Gomes e o conflito como método
(Foto: Adriano Machado/Crusoé)
Diz o ditado que quando um não quer, dois não brigam. Por outro lado, quando todos os lados querem brigar, tentar impedir a contenda pega muito mal. É como desligar a música quando todos querem dançar. Atitude de desmancha-prazeres, de gente esquisita e desconsiderada ou de pessoa incapaz de reconhecer e validar as paixões dos outros. Se as pessoas sentem que “precisam” brigar, os irenistas, os de estômago fraco e os que simplesmente consideram um desperdício de energia e um desatino moral sair na porrada por motivações políticas façam o favor de respeitar isso. Ou de desocupar a arena.
A esquerda é o lobo da esquerda
Como é de conhecimento comum, há uma guerra declarada entre as duas únicas candidaturas presidenciais de esquerda até o momento, a de Lula e a de Ciro. Na qual, aliás, já aconteceu de tudo um pouco. Já teve acusações e insinuações desconcertantes, já teve fake news, já teve Ciro Gomes fugindo de garrafadas e pedradas em manifestação. Houve até troca pública de insultos entre Dilma Rousseff e Ciro Gomes coroada pela declaração de “não sou mais sua amiga”, na última quarta-feira (13/10). Por último, tivemos o vídeo de Ciro para contar supostos podres da relação entre Lula e o impeachment de Dilma, nesta quinta-feira (14/10).
Vídeo, aliás, bem ao estilo consagrado por Malafaia: com antecipação, depois um juízo autocomplacente de que a partir do que se diz o jogo virou e, por fim, a sensação gerada em quem assistiu a tudo de “era só isso?”.
Para quem não gosta de rusgas públicas, principalmente em um ambiente político já tão conflagrado e em uma situação política em que Bolsonaro mantém chances reais de ir ao segundo turno, a coisa toda é lamentável. Já vem de muito tempo, porém, e em um crescendo que parece não ter limites. Além disso, nos episódios que relatei acima, e noutros do mesmo nível não mencionados, não houve combustão espontânea nem se deram colisões por acidentes. Não, tudo foi construído com muita premeditação, da parte de Ciro, e com muita fúria e energia, da parte dos apoiadores da candidatura petista, que agora conta com um exército de fãs prontos para atacar os considerados inimigos, e que são de fazer inveja aos “fandoms tóxicos” da cultura pop, como o Army (BTS) ou o Beliebers (Justin Bieber). Quem entende da subcultura dos fandoms sabe do que estou falando.
O teatro do conflito funciona agora assim: Ciro provoca e bate, Lula não bate e pontifica. Para que bater se há milhares de influenciadores digitais, de militantes e a fanbase para provocar, insultar, assediar e satanizar os adversários em seu lugar? A espiral de agressividade é ascendente e incentivada por todos, acreditem, com base em motivações morais. As mãos estão inchadas de tanto bater, mas o coração, puro e reto, justifica: foi preciso, para defender valores, a verdade ou a Revelação. E se você é contra, o imoral é você.
A campanha de Ciro está seguindo um padrão, isso é claro. Muitos desejavam, quando a sua candidatura foi assumida publicamente, que ele, um dos quadros da esquerda mais inteligentes e capazes com alguma viabilidade eleitoral, moderasse o seu comportamento belicoso e a sua verve agressiva. Não apenas porque ninguém aguenta mais o perfil do político afrontoso, grosseiro, maligno, pronto para atacar ao menor sinal de contraposição, principalmente depois que o campeão do “falo mesmo, doa a quem doer” teve a agressividade maldosa confundida como autenticidade e assumiu a presidência da República. É que, com o joelho do bolsonarismo no nosso pescoço e a probabilidade de Bolsonaro passar ao segundo turno das eleições presidenciais vindouras, esperava-se que as duas candidaturas de esquerda deixassem ao menos uma porta entreaberta para aquele momento em que iremos precisar de todo mundo.
Isso tudo no tempo em que ainda se falava em Frente Ampla pela democracia, vocês ainda lembram?
A roda da fortuna
Não sei se chegou a cogitar essa possibilidade, o fato, porém, é que Ciro, por desfortuna, assumiu-se candidato justamente no momento em que as chances de Lula davam uma guinada para cima. Depois de muito tempo em baixa, durante os anos da via crucis de Dilma e do PT, e do próprio Calvário, quando padeceu sob Sérgio Moro na condição de seu prisioneiro e troféu de guerra, Lula ressurgia.
De fato, quando Ciro fez os primeiros ensaios como candidato, a restauração dos direitos políticos de Lula e a questão sobre se a Lava Jato voltaria a ter poder sobre ele ainda eram incertas. De lá para cá, os astros se alinharam para o petista: o STF considerou que a parcialidade de Moro usurpou dele, Lula, o direito a um julgamento justo, os seus direitos políticos foram restaurados, a Lava Jato sofreu inúmeros revezes, e ficou claro para quase todo mundo que Bolsonaro foi o mais brutal erro político da nossa curta história republicana. E tudo se encaminha desde então para um voto de desagravo a Lula por tanta injustiça sofrida.
Certamente não deve ser fácil ver que o seu caminho para a presidência da República impõe que você vença um mártir no qual boa parte da população começa a ver fumos de santidade. Em mártir e santo não se bate, mas ele está no caminho. E agora?
É uma péssima conjunção astral para quem, na impossibilidade de ser o candidato apoiado por Lula, imaginou ser uma alternativa de centro e centro-esquerda ao petista na disputa presidencial, desde que o antipetismo, que foi decisivo nas eleições de 2016, 18 e 20, se mostrasse mais uma vez uma barreira intransponível para o PT no segundo turno. Com efeito, o que a campanha de Ciro não contava era com a diminuição acelerada do antipetismo como fator eleitoral, justamente na esteira do crescimento do antibolsonarismo. Tampouco contava com o crescimento da rejeição a todas as outras candidaturas que se ofereciam como alternativas às duas principais forças até agora, o que, de algum modo, anulava a importância da rejeição no cálculo eleitoral. Antes, viu-se em uma situação em que Lula aparecia como um dos candidatos com menor rejeição.
Enfim, no momento em que nos encontramos, parece claro que a maioria dos eleitores que, a este ponto, já pensa concretamente em eleições, está dispensando alternativas a Lula e a Bolsonaro. Sim, eu sei que é muito cedo para decidir que será assim até outubro de 2022, mas do lado desta perspectiva há, além de tudo, a tradição: os eleitores brasileiros não gostam de mais de duas alternativas e vêm votando assim há três décadas.
Em compasso de espera
Azar da campanha de Ciro, que precisou tomar decisões sérias para manter as suas chances eleitorais, ao tempo em que espera alguma coisa acontecer no plano da realidade que torne inviável ou Bolsonaro ou, quem sabe, Lula. A tática adotada parece ter sido manter-se visível, quer dizer, capturar e manter uma cota importante de atenção pública, marcar uma posição entre as duas principais candidaturas e fazer com esta posição seja reconhecida como o seu território, atirar, sempre que a oportunidade se apresentar, à esquerda e à direita, na esperança de atrair aquela franja de bolsonaristas e de lulistas que sempre respondem nas pesquisas que poderiam mudar a sua intenção de voto.
Os problemas com essa tática são três.
Primeiro, há uma diferença tão grande entre a esquerda e os progressistas que gostariam de uma alternativa a Lula, de um lado, e o ex-eleitor de Bolsonaro que decidiu não cometer de novo o mesmo erro, do outro, que é muito pouco provável que a mesma imagem, o mesmo personagem e o mesmo discurso possam agradar ao mesmo tempo aos dois lados do rio. Os dois eleitores se repelem mutuamente. Ciro teria em algum momento que escolher para quem, afinal, dança.
Segundo: Ciro não parece estar fazendo amigos do lado dos ex-bolsonaristas, embora esteja fazendo muitos inimigos na esquerda. O fato é que a direita não bolsonarista não confia em Ciro. Aliás, quando mais se está à direita no espectro político menos se confia em qualquer outra alternativa, a não ser no próprio Bolsonaro. A direita não bolsonarista, como se vê com tantas “candidaturas próprias” sendo prometidas, não confia de verdade nem nos direitistas puro-sangue dos partidos fisiológicos, em gente que apertou 17 em 2018, quanto mais em Ciro Gomes.
E os petistas estão à flor da pele, sensíveis como um nervo exposto, “um poço até aqui de mágoa”. Depois de 7 anos de tormenta, não suportam sequer quem se atreve a não acender incenso para Lula e Dilma, já elevados à glória dos altares, quanto mais críticas. Ao seu redor, o fandom lulista não dorme em horário de trabalho e não volta para casa sem ter derramado sangue nas rixas e assédios digitais. Junte-se a esse ingrediente a doce personalidade de Ciro, que se não for para fazer 5 insultos, 10 provações, dar 15 caneladas e entrar em 20 tretas nem levanta da cama. Temos, assim, tudo o que é preciso para a tempestade perfeita.
Esta quarta-feira deu-nos um exemplo disso. Dilma Rousseff e Ciro Gomes trocando porradas enquanto rolam no pátio da escola na hora do recreio do 4º ano no Twitter, insuflados pelos respectivos fandoms que gritam “maceta, mamis, você não tem sangue de barata” e “ vai Cirão, enfia-lhe umas verdades goela adentro”, enquanto os bolsonaristas esfregam a mão, como o guaxinim do meme, enquanto repetem “briguem, desgraçados, formem times e se matem”. Muita gente achou lindo e justo. Quem tem estômago fraco ou acha que política é outra coisa, ficou repugnado.
Em terceiro lugar, o mercado eleitoral que Ciro cobiça, a direita não bolsonarista, ainda não está comprometida, é certo, mas está lotada de candidatos. Nanocandidatos, candidatos para si mesmos, candidatos prometidos como “candidatura própria” por partidos que nunca se atreveram a tanto, candidatos desejados pela mídia ou por específicos grupos de interesse. Até Moro anda ciscando por lá, embora, como se saiba, esse moço negocia mal com realidade.
Um esquerdista independente em que o antipetista pode confiar
O que pode Ciro fazer neste cenário? Tentar se viabilizar como uma alternativa para o ex-eleitor de Bolsonaro ou apostar no cada vez mais diminuto grupo de eleitores de esquerda que não querem votar no petista?
Os últimos passos dessa semana parecem indicar que a candidatura de Ciro apostou todas as suas fichas na primeira alternativa. O vídeo da quinta foi a derradeira declaração de guerra. Até na quarta, considerei a hipótese de que Ciro se teria perdido no personagem, mas o acontecido na quinta nos diz que foi um movimento calculado.
Foi a coroação de um movimento deliberado de política de imagem para se distanciar de Lula e do PT. Um movimento até aqui construído à base de brigas evitáveis, de provocações, desaforos e denúncias, inclusive vazias. Até que nessa quinta-feira entramos no capítulo “revelações”, cujo propósito é mostrar como apostar de novo em Lula seria um erro. Com este vídeo, Ciro sopra as brasas do antilulismo e joga gasolina no fogo, insistindo que a corrupção do governo Lula e a incompetência do governo Dilma são podres que ele conhece muito bem. Ao mesmo tempo em que, naturalmente, se oferece aos relutantes da direita não (mais) bolsonarista como “um candidato independente”, no sentido que vem da esquerda, sim, mas de uma esquerda independente em que os antipetistas podem confiar.
Ciro, como os petistas, está trabalhando sistematicamente para exagerar as diferenças com a esquerda lulista, transformar diferenças em ressentimentos, em cavoucar ressentimentos para mais provocações e mais agressões. Há pessoas que não podem fazer política sem inimigos, mas há também circunstâncias em que se precisa parecer inimigo do inimigo de alguém para fazer novos amigos. É nisso que, agora, investe a campanha de Ciro Gomes.
Dará certo? Não sei. Ciro Gomes tinha outra escolha, dadas as circunstâncias? Também não sei. Só sei que é assim.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes