O Brasil é uma semidemocracia?
Francisco Goya, da série ‘Os provérbios’, 1815 a 1823 (Reprodução)
Há uma ideia comumente aceita, da qual discordo, de que a democracia brasileira está consolidada. O termo consolidação deve ser usado com cautela. Trata-se de um conceito ex post facto. Convém lembrar que a literatura definia a democracia chilena, até as vésperas do golpe pinochetista, como consolidada. Idem para o Uruguai até antes do golpe de Bordaberry. A Venezuela pré-1992, data da primeira tentativa de golpe de Estado liderada por Hugo Chávez, era tida como a Suíça da América do Sul.
De fato, existem várias definições de democracia. Escolher uma delas não é problemático. Inclusive há a tentação de achar que democracia consiste na confluência de todas as coisas boas, tal como se fez, analogamente, com o conceito de socialismo nos anos 1960 e 1970.
O grande desafio atual é criar uma democracia que consiga conciliar o aspecto formal (procedimento) com o seu conteúdo (substância). Transformar uma democracia de direito em democracia de fato, ou seja, uma democracia que funcione para as pessoas comuns. A democracia não pode estar desligada do contexto socioeconômico em que vivem os indivíduos. Do contrário, torna-se, para muitos, irrelevante.
A igualdade formal (procedural) da democracia liberal pode servir de fachada para a manutenção de níveis substantivos de desigualdade e de violação de direitos civis. As desigualdades de riqueza e de poder impedem o alcance da igualdade nas oportunidades substantivas. Por sua vez, igualdade social sem liberdade política desemboca em ditaduras populares por falta de competição eleitoral e de respeito aos direitos políticos. Há ainda outro óbice, de natureza metodológica. Trata-se da dificuldade de encontrar um padrão de medição que possa ser considerado a essência da democracia “substantiva”. E mais, como decidir qual das “substâncias” será escolhida sem voltar a cair no proceduralismo?
Déficit democrático
Será que procedimentos e substância devem ser vistos como entidades apartadas que não se influenciam reciprocamente? Democracia deve apenas assegurar os direitos daqueles que querem lutar politicamente por suas demandas, pouco se importando com as desigualdades sociais e jurídicas? É possível obter procedimentos com substância evitando que a democracia fique “oca”? E, simultaneamente, substância com procedimentos impedindo que a democracia seja inócua? Como conseguir um meio-termo entre democracia como mera lista de procedimentos e democracia que se identifique com a concepção substantiva das necessidades da população?
A democracia nos países subdesenvolvidos, via de regra, funciona para uma minoria. Vai contra a lição de Tocqueville segundo a qual a democracia se justifica quando favorece o bem-estar do maior número de pessoas. Já há nos Estados Unidos quem se preocupe com os efeitos políticos da crescente concentração de renda. Há o receio de que isso cimentará o surgimento de um déficit democrático. Ou seja, uma plutocracia com outro nome.
Há um vazio conceitual. As teorias sobre democracias e sobre democratização não são persuasivas. Em especial quando aplicadas a países com fraca tradição democrática, como é o caso do Brasil. Prefiro observar os fatos, interpretá-los, tendo como referência o horizonte metapolítico-eleitoral que lhes dá sentido e valor.
Semidemocracia
Há uma corrente que analisa os países em democratização sob o critério de mudança política. A classificação é dicotômica: democracia ou autoritarismo. Outra enfatiza as características do sistema político ressaltando as ambiguidades do mesmo. A classificação pode ser quadricotômica: democracia, semidemocracia, semiautoritarismo e autoritarismo. A semidemocracia aponta para a existência de um regime híbrido, ou seja, aquele onde coexistem traços democráticos e autoritários (especialmente nas instituições coercitivas)
Por definição, a semidemocracia é um processo temporário rumo a uma democracia, enquanto o semiautoritarismo é um projeto deliberado de manutenção do autoritarismo sob uma forma mais atenuada. Como o Egito de Mubarak. O caso brasileiro aproximar-se-ia mais de uma semidemocracia, pois não encontro um projeto deliberado das elites políticas de manter esse hibridismo indefinidamente. O hibridismo existente seria muito mais fruto das circunstâncias políticas existentes.
Contudo, reconheço o fato de essa situação já perdurar no Brasil por quase 25 anos, e não haver indícios de mudança. Embora tenha havido rotação partidária no poder político, o ponto de equilíbrio é a manutenção de uma democracia meramente eleitoral. Ou seja, o aparelho coercitivo estatal se mantém em boa parte autoritário, mesmo com a existência de uma democracia de procedimentos. Isso, todavia, depõe contra a circunstancialidade do argumento. É tênue, portanto, a perspectiva de uma democracia imperfeita com seus enclaves autoritários tornar-se uma democracia com sólidas e responsivas instituições. Na incapacidade de estipular o tempo necessário para que isso ocorra, o argumento torna-se teleológico.
Forças Armadas: garantir o funcionamento da democracia?
Dificuldades conceituais e metodológicas à parte, o artigo 142 da Constituição Federal mantém-se intacto. De acordo com ele, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Mas, logicamente, como é possível às Forças Armadas se submeter e garantir algo simultaneamente? Esse artigo é muito similar ao existente na Constituição pinochetista. Com a diferença de que, recentemente, o Senado chileno aboliu tal cláusula constitucional sob o argumento de que a condição histórica que avalizou tal dispositivo não existe mais.
De fato, são os militares que têm o poder constitucional de garantir o funcionamento do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, a lei e a ordem, quando deveria ser o reverso. Ou seja, as Forças Armadas são baluartes da lei e da ordem definidas por elas mesmas, não importando a opinião do presidente da República ou do Congresso Nacional. Portanto, cabe às Forças Armadas o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei.
Em uma democracia, o poder não é deferido a quem tem força, mas, ao contrário, a força é colocada a serviço do poder. No Brasil, estabeleceu-se uma Constituição e foi entregue, precisamente aos que são mais tentados a violá-la, a tarefa de manter sua supremacia. Ora, se os militares são garantes, terminam sendo, também, organizadores da vida política. As Forças Armadas deixam de ser meio para se transformar, quando necessário, em fim do Estado.
Ordem não é um conceito neutro e sua definição operacional em todos os níveis do processo de tomada de decisão política envolve escolhas que refletem as estruturas política e ideológica dominantes. Portanto, a noção de (des)ordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in)desejada de determinados indivíduos. Além do mais, tal artigo não especifica se a lei é constitucional ou ordinária.
Um golpe de Estado constitucional
A Constituição não define quem violou e quando é que a lei e a ordem foram violadas. Na prática termina cabendo às Forças Armadas decidir quando houve violação da lei e da ordem. E quem as violou. E o que é mais grave: basta determinada ordem do Executivo ser considerada ofensiva à lei e à ordem para que os militares possam constitucionalmente não respeitá-la. Mesmo sendo o presidente da República o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Ou seja, a Constituição de 1988, tal como a anterior, tornou constitucional o golpe de Estado desde que liderado pelas Forças Armadas. Isso, sim, é falta de lei e ordem.
Há, desse modo, uma espada de Dâmocles fardada pairando sobre a cabeça dos poderes constitucionais. Tais poderes estão sendo constitucionalmente lembrados de que podem ir até onde as Forças Armadas acharem conveniente. Por conseguinte, repito, em vez de tais poderem garantirem o funcionamento das Forças Armadas, são elas, em última instância, que garantem o funcionamento dos referidos poderes. Afinal, elas são as guardiãs da pátria e dos poderes constitucionais. Algo incompatível com uma democracia que faça jus a esse nome.
Jorge Zaverucha é doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago e autor de Frágil democracia: Collor, Itamar, FHC e os militares, 1990-1998 (2000)