O aleph de Drummond

O aleph de Drummond
O poeta Carlos Drummond de Andrade (Reprodução)

 

A cidade natal de Carlos Drummond de Andrade emerge em sua obra como o território explícito das inquietações do poeta moderno, simultaneamente morada e exílio, espaço de afirmação e sofrimento diante da própria identidade em crise e da incomunicabilidade de seus semelhantes. Itabira, Nova Friburgo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro – não foram numerosos os endereços do poeta e é particularmente relevante o destaque que a cidade mineira merece na criação do autor, de poemas a crônicas.

Itabira é o aleph borgiano de Drummond: a partir dela se vislumbram todos os pontos do universo. Esse foco múltiplo, doloroso, possibilita a reflexão do autor sobre seu “estar no mundo” como itabirano, filho de fazendeiros e, a partir da transferência para o Rio de Janeiro, em 1934, como mineiro, brasileiro e simplesmente cidadão do mundo. O poeta é portador de todas as angústias inerentes a um artista inconformado, em diálogo constante com o mito de origem.

Já em seu livro de estreia, Alguma poesia (1930), Drummond indicava seu interesse pela memória, com a família e Itabira emergindo do baú de referências. O poema “Lanterna Mágica” subdivide-se em várias seções, entre elas “Caeté” (nome da tribo que povoou a região) e “Itabira”, iniciada pelo verso “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”. O pico transformou-se em cratera graças à exploração de minério de ferro na região, súbita metáfora de uma municipalidade usurpada e adequada ao poeta, que não raramente se propôs a nomear a inquietação da falta.

“No meio do caminho”, à parte seu caráter de experimentação formal, mantém a semântica intrigante provocada pelos versos permutacionais e pode ser lido como um enfrentamento do poeta diante da tradição e de sua própria origem (Itabira, em sua acepção mais usada, quer dizer pedra reluzente). Transpor o obstáculo que se interpõe diante do poeta virou referência de tarefa elaborada em um “tempo presente”, contaminado pela memória, da qual as “retinas fatigadas” se ressentem.

Ao serem observadas as transições da obra de Drummond entre o lírico, o engajado e o filosófico, é identificável que a relação com a memória, isolando-se aí a construção/desconstrução de Itabira em sua obra, vincula-se ao princípio corrosão formulado por Luiz Costa Lima em Lira & Antilira – explicitada como a “maneira de assumir a História, de se pôr com ela em relação aberta”. Ainda que o crítico ressalve que há nessa hipótese uma possível unilateralidade para definir todas as fases de Drummond, essa atitude de “escavação ou cega destinação para um fim ignorado”, além da preocupação social que se prenuncia em Rosa do povo (1945), também pode se verificar quanto à Itabira da poética drummondiana. Na prosa, a cidade natal se presta às vezes ao Drummond informativo, que, em 1947, relata a história da cidade fundada em 1720 por exploradores paulistas, destaca a visão do naturalista Saint-Hilaire sobre o local e insurge-se contra o ridículo de terem mudado o nome local para Presidente Vargas entre 1942 e 1947, observação surpreendente diante da postura discreta que o poeta assumira diante da chefia de gabinete do ministro da Educação Gustavo Capanema, de 1934 a 1945, durante o Estado Novo.

Se a temática mineira é elíptica em Brejos das Almas (1934), Sentimento do mundo (1940) traz um poema-chave da relação do poeta com sua origem: “Confissão do itabirano”. Na Itabira de 2002, o poema aparece transcrito em placa de concreto em frente do Memorial Carlos Drummond de Andrade, com projeto de Oscar Niemeyer, no Pico do Amor, mesmo local de onde se avista a cidade, praticamente subtraída dos casarões aludidos por Drummond em seus poemas, de onde também se constata a melancólica cratera do Cauê. O poema mais famoso de Drummond referente à terra natal, finalizado com o célebre verso “Itabira é um quadro na parede/ Mas como dói”, define um caráter local com traço de ironia semelhante à do romantismo alemão, unindo “o hábito de sofrer” ao divertimento, mapeando um “alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”, constatando a incompletude de um sujeito fragmentado. Quando diz que Itabira “dói” como quadro na parede, o poeta promove a transferência da cidade do espaço para a memória, conferindo-lhe contornos expressionistas.

O também mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, no livro Carlos Drummond de Andrade: Análise da obra, analisa a crônica “Antigo”, ressaltando que “Itabira é ele mesmo, o passado de Itabira é seu passado, o futuro de Itabira, por conseguinte, é a projeção de si mesmo no futuro. (…) Itabira é, principalmente, a polis do poeta. Ela é a soma da cidade e da região, uma verdadeira cidade-estado construída no tempo”. Isso faz pensar justamente no não-lugar para o qual é relegado o poeta na sociedade a partir do alvorecer da modernidade, não-lugar tão bem expresso pela perda da aura baudelairiana analisada por Walter Benjamin. Talvez como nenhum outro poeta brasileiro moderno, Drummond se apossa dessa precariedade filosófica para erguer essa polis à maneira da sociedade grega, quando o espaço do poeta não estava cindido da vida social e sua função de re-ligare poderia ser interpretada como um bem do grupo.

Com Novos poemas (1948) e Claro enigma (1951), ele exprime seu desnorteamento diante da metrópole: a poesia de Drummond ambientada na cidade grande revela a experiência do choque provocado pela perda da aura de que nos fala Benjamin a partir de Baudelaire; é uma experiência que transforma o olhar sobre o passado. Nessa perspectiva, a pequena cidade mineira e a vida familiar se convertem em poesia com traços de tragédia, do qual o melhor exemplo é “Os bens e o sangue”: “E virá companhia inglesa e por sua vez comprará tudo/ e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada/ e secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferro/ taparão o vale sinistro onde não haverá privilégios”.

Com Fazendeiro do ar (1954), há uma busca de síntese entre o poeta da terra e do pensamento e um recuo nos questionamentos sociais. O passado é uma assombração como as muitas de que se fala em Itabira e, ao mesmo tempo, um espectro pessoal: “Sempre no meu amor a noite rompe./ Sempre dentro de mim meu inimigo./ E sempre no meu sempre a mesma ausência.” (“Enterrado Vivo”). E Lição de coisas (1962), que o próprio Drummond informa trazer quase que completamente “o abandono à forma fixa que cultivou durante certo período”, inclui em suas seções os ecos itabiranos, mas dessa vez o sujeito poético parece imiscuir-se no mundo de maneira indiferenciada, passado e presente fundem-se em uma ambígua – mas menos problematizada – descoberta.

A ruminação sobre a origem adquire contundência poética nos três volumes de Boitempo (1968/1973/1979), na qual Itabira (e a família nela) ganha contornos menos idealizados e há uma aceitação, ainda que em negativo, do seu lugar no clã dos Andrades. Drummond, que abdicou de chamar seu primeiro livro de Minha terra tem palmeiras, por sugestão de Mário de Andrade, que lhe indicava ultrapassar o nacionalismo de 22, retoma magistralmente o traço etnográfico para inventariar uma Minas colonial: “Minha terra tem palmeiras?/ Não. Minha terra tem engenhocas de rapadura e cachaça/ e açúcar marrom, tiquinho, para o gasto”, escreve em “Fazendeiros de cana”. A elaboração criativa vai além do traumático âmbito familiar para fazer atuar personagens,  aparentados ou não,  no entorno rural e seu vigor de vida irrefreada: “Entardece na roça/ de modo diferente./ A sombra vem nos cascos,/ no mugido da vaca/ separada da cria”, dizem os versos introdutórios de “Boitempo”, o poema. Em “Documentário”, que abre o livro de 1968, o eu poético propõe um documentarismo póstumo, mediúnico: “(…) Está filmando/ seu depois./ O perfil da pedra/ sem eco./ Os sobrados sem linguagem. O pensamento descarnado. A nova humanidade deslizando/ isenta de raízes (…)”. Não é à toa que Drummond evitava Belo Horizonte e Itabira em seus últimos anos de vida: tinha forjado um lugar menos doloroso para Minas em sua memória.

Em As impurezas do branco (1973), o poeta percorre os pretextos subterrâneos do Estado: “Minas não é palavra montanhosa./ É palavra abissal. Minas é dentro/ e fundo”, escreve em “A palavra Minas”. A ambivalência do sujeito poético, atraído pela máquina e carente do humano que se esvai com ela, acuado diante dos impasses do mundo, aparece em Drummond magistralmente desde “Explicação”, de Alguma poesia: “No elevador penso na roça, na roça penso no elevador”.

Cenário da exploração do ouro no século 18, em seguida base de exploração do ferro por ingleses e, a partir de 1942, com jazidas sob a administração da Companhia Vale do Rio Doce, Itabira não reverteu a riqueza mineral para a opulência ao modo capitalista. A poesia de Drummond é, com a efeméride de seu centenário e várias homenagens oficiais e familiares, o paradoxo que perscruta seu passado enquanto a propaga para o mundo, à maneira do trem que levava o minério de ferro para o porto de Vitória e serviu de pretexto para o poema “O maior trem do mundo”, até pouco tempo exposto (a placa desapareceu) na entrada da cidade, junto a uma locomotiva. Os versos finais do poema parecem premonitórios: “Lá vai o maior trem do mundo/ vai serpenteando vai sumindo/ e um dia, eu sei, não voltará/ pois nem terra nem coração existem mais”. As palavras de Drummond soam como indicação de que a consciência é a maior riqueza a ser procurada pelos itabiranos e que isso passa necessariamente pela linguagem.

A falta de condescendência do poeta fornece senhas para o autoconhecimento logo adiante, na mesma Itabira real, ao lado de uma estátua do poeta, onde se lê no chão de concreto “A ilusão do migrante”, de Farewell (1996), último livro do poeta, publicado postumamente. O início da última estrofe situa: “Quando vim da minha terra,/ não vim, perdi-me no espaço, na ilusão de ter saído./ Ai de mim, nunca saí./ Lá estou eu, enterrado/ por baixo de falas mansas,/ por baixo de negras sombras,/ por baixo de lavras de ouro,/ por baixo de gerações,/ por baixo, eu sei, de mim mesmo,/ este vivente, enganado, enganoso.” Com seu “eu todo retorcido” à maneira expressionista, Drummond não nega que principalmente nasceu em Itabira e, sempre paradoxal, que “uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra”.


CESAR GARCIA LIMA é jornalista, escritor, autor de Águas necessárias (poemas, Nankin Editorial) e mestrando em Literatura Brasileira pela UFRJ

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