O simbolismo de Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil
Exu: o rei do corpo é o dono do desejo da palavra (Foto: Célia Sodré/Reprodução)
Baraperspectivismo: conceito que crio a partir do simbolismo dos mitos de Exu, configura uma visão trágica da existência, caracterizada pela afirmação irrepreensível do corpo na vida da realidade empírica. A noção de perspectivismo, que vem da filosofia de Nietzsche, relaciona-se à ideia do conhecimento que não tem por pretensão enunciar a verdade última das coisas, pois não crê na verdade absoluta; que não se arvora no princípio da universalidade; que enxerga precisamente um fundamento moral nos discursos tradicionais da metafísica no Ocidente; e que se constrói eminentemente como apenas uma interpretação da realidade. Daí, uma interpretação que parte de um lugar, de um ponto de vista, uma perspectiva. Acrescentar a um conceito a noção de perspectivismo enuncia que a ideia de conhecimento ali proposta não se instaura como um centro ao redor do qual gira o mundo, mas sim como um olhar que está ao redor da coisa, admitindo a complementaridade do maior número possível de ângulos de visão. Pois não se trata de desvelar o sentido oculto da realidade, mas de adorná-la com o maior número possível de véus. Já o prefixo bara remete diretamente ao simbolismo de Exu, pois é um dos nomes pelo qual é conhecido. Daí, a cosmovisão da cultura yorubá, principalmente a que apreendemos através de seus mitos, se encontra no cerne da elaboração desse conceito.
Seria sua criação, portanto, um modo de submeter a experiência cultural da sociedade tradicional yorubá às categorias do pensamento ocidental? Será que se apropriar das representações simbólicas produzidas no seio dessa cultura, para criar uma filosofia do trágico, constitui um trabalho de dominação e usurpação, reproduzindo e reinventando os tentáculos do imperialismo ocidental sobre os saberes africanos? Minha resposta é: talvez. Porém, no caso do baraperspectivismo, a interpretação serve muito mais ao propósito da criação de um conceito e de uma filosofia que denunciem os prejuízos do logocentrismo, ou seja, os prejuízos de um racionalismo exacerbado e eminente em relação à vida que foi suprimida; um conceito e uma filosofia que sirvam de alternativa aos valores científicos e morais que caracterizam a hegemonia da cultura ocidental, a partir do estabelecimento da “situação colonial” no século 19. O baraperspectivismo, assim, quer se impor como arma de guerra contra o “complexo de inferioridade” assinalado por Frantz Fanon como a doença que tem suprimido as forças de africanos, africanas e seus descendentes – assim como as das populações nativas dos territórios colonizados nas Américas há quinhentos anos.
A palavra bara, de acordo com Juana Elbein dos Santos, significa “rei do corpo”: “bara = Oba (rei) + ara (corpo)”, potente modo de se pensar uma oposição à hegemonia do lógos, ou da razão, que, na história da filosofia ocidental, implica o alijamento dos sentidos e do corpo dos processos de legitimação do conhecimento e da verdade; o que Nietzsche caracterizou muito bem em um de seus textos sobre a razão na filosofia com a expressão, “fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real”.
Na filosofia, Exu, rei do corpo, é capaz de fundamentar uma ética, uma estética, uma teoria do conhecimento e uma filosofia da cultura alternativas às que já foram criadas no Ocidente; e, ainda, contar, ou melhor, cantar uma história da filosofia, do seu próprio ponto de vista. E precipuamente brasileira, talvez, posto que o berço do conceito é a própria experiência da diáspora africana. Daí, o diálogo, o jogo, a relação, a troca com pensadores ocidentais, como Nietzsche, que por si já fizeram a crítica do lógos. Não se trata de submeter Exu a Dioniso, portanto, mas de elaborar o discurso que eles poderiam enunciar juntos.
Mas não nos atemos apenas a Nietzsche: acompanham-nos aqui pensadores e filósofos negros como Wole Soyinka, Paulin Hountondji, Molefi Asante, Kabengele Munanga, Frantz Fanon e Aimé Césaire. Nesse percurso que busca enfatizar, enaltecer e defender a potência criativa dos povos pretos, que se mede inclusive pelo interesse de cientistas e missionários europeus que se lançaram sobre suas experiências culturais estimulados, basicamente, pela “força misteriosa”, senão pela “grandeza”, como diria Jacob Burckhardt, que emana das fontes de nossas culturas negras, ora gerando atração, ora repulsa. A atribuição de animalidade e da falta de história aos povos pretos, desde pelo menos Kant e Hegel, gerou consequências irreversíveis para os pretos de agora e do porvir. Entretanto, diante da falência das instituições modernas, estou convicto de que o apelo à animalidade do ser humano, a releitura do que Nietzsche denominou como “texto básico homo natura”, encontra um modesto aliado no baraperspectivismo. Exu e sua ligação com o corpo, com os instintos e com a palavra, é capaz de restituir ao ser humano uma experiência análoga àquilo que o autor de O nascimento da tragédia definiria como a Erlebnis par excellence, a vida a partir de uma perspectiva trágica.
As chagas do século 19 continuam abertas. O projeto colonial da Europa e dos Estados Unidos segue imperialista, racista e sexista. Além da violência perpetrada pelas guerras, pela fome, pela sede e pelas epidemias, a violência da tecnologia atinge coletividades inteiras preparadas para servir como animais de corte. Se os animais de rebanho de Nietzsche sustentaram uma civilização socrática no século 19, agora são os animais de corte que sustentam a civilização contemporânea. Para impor um “basta!” aos desmandos do matadouro, a modesta contribuição do baraperspectivismo procura reavivar o desejo, a alegria, o ímpeto, a festa e o instinto. Diante de uma coletividade constituída por indivíduos tão ludibriados em sua capacidade de querer, tão vilipendiados no âmago de seus desejos, a tal ponto que se tornaram incapazes de criar, incapazes de pensar, o baraperspectivismo quer que não se deixe esquecer o simbolismo de Exu, posto que o rei do corpo é o dono do desejo da palavra, que desperte e que anime as forças sempre renovadas de uma vida.
Rodrigo dos Santos é ator, mestre e doutorando em Filosofia pela UFRJ e membro do Laboratório KHORA de Filosofia da Alteridade.