Nós e o vazio: sobre o pensamento, a emoção e ação

Nós e o vazio: sobre o pensamento, a emoção e ação
(Foto: Reprodução)

 

Há algum tempo, escrevi sobre três formas de vazio. O texto foi publicado em Filosofia prática, um livro de 2014. Mas venho pensando muito nessa formulação e gostaria de reapresentar o texto com algumas variações. Podemos caracterizar a nossa época a partir de três grandes vazios.

O primeiro deles é o vazio do pensamento. Hannah Arendt foi a pensadora responsável por sua formulação em um livro chamado Eichmann em Jerusalém, de 1962, no qual ela faz um relato filosófico sobre o julgamento de um alto funcionário do regime nazista alemão que, no entanto, não chegava a ser um dos seus principais mentores. Adolf Eichmann que foi capturado na Argentina e julgado em Jerusalém por seus crimes contra a humanidade, estarreceu o mundo ao se apresentar como um cidadão de bem que pretendia apenas subir na carreira alegando cumprir ordens. No livro ela afirma que Eichmann não demostrava refletir sobre o que havia feito como funcionário. É como se sua capacidade de pensar estivesse interrompida. Questionado ele respondia por clichês e, ao mesmo tempo, não era um sujeito perverso que estivesse utilizando algum tipo de inteligência para fazer o mal conscientemente.

Foi por analisar a figura de Eichman que Arendt lançou a questão do vazio do pensamento. A característica dessa forma de vazio é a ausência de reflexão, de crítica, de questionamento e até mesmo de discernimento. Podemos dizer que, em nossa época, isso se torna cada vez mais comum. O número de pessoas que abdicam da capacidade de pensar é cada vez maior.

No entanto, parece absurdo que possamos viver sem pensamento e é justamente por isso que o uso de ideias prontas se torna a cada dia mais funcional como já acontecia com Eichmann. Hoje, as redes sociais sobrevivem principalmente pelo fluxo das ideias prontas. Pessoas se tornam a cada dia transmissoras de ideias não questionadas. Ideias que são como mercadorias compradas para viagem sem perguntar que sentido podem ter na vida de quem as leva consigo.

No campo da publicidade e propaganda, os profissionais especializam-se em apresentar as ideias rarefeitas, não apenas como coisas superficiais, mas como algo que está ao alcance da mão, algo cuja complexidade não importa. As próprias ideias são consumidas. Há um consumismo das coisas, mas há também um consumismo das ideias e, nesse sentido, também da linguagem por meio da qual as ideias circulam. Ora, o estatuto das coisas em um mundo voltado ao hiper-consumo é o do descarte. Seriam as ideias descartáveis como as coisas junto as quais elas são vendidas? Ou as ideias que seriam primeiramente abstratas serviriam apenas para dar uma “aura” às coisas que, em si mesmas, as coisas não têm?

A partir disso, podemos falar de uma segunda forma de vazio que caracteriza o nosso mundo cada vez mais carente de reflexão. Ele diz respeito ao que sentimos. Vivemos em um mundo cada vez mais anestesiado, no qual as pessoas se tornam incapazes de sentir e cada vez mais insensíveis. A sociedade na qual vivemos parece cada vez mais excitada, angustiada e fadada ao desespero. Podemos falar de um vazio da emoção justamente no contexto em que as pessoas buscam, de modo ensandecido, uma emoção qualquer. Paga-se caro pela falta de sentimentos que podemos definir em um sentido genérico como uma frieza generalizada. A incapacidade de sentir torna o campo da sensibilidade em nós, um lugar de desespero. Da alegria à tristeza, queremos que a religião, o sexo, os filmes, as drogas, os esportes radicais e até mesmo a alimentação provoque mais do que sentimentos. Deseja-se o êxtase. A emoção também virou uma mercadoria e o que não emociona radicalmente parece não valer o esforço de se viver. O ódio é uma emoção fundamental em nossa época. Para quem não consegue sentir nada, a sua radicalidade é uma estranha redenção.

Nesse contexto, as mercadorias surgem com a promessa de garantir êxtase. Espera-se hoje que as experiências humanas sejam sempre e cada vez mais intensas, cinematográficas, impressionantes e espetaculares mesmo que se trate apenas de uma roupa nova, um telefone celular, um brinquedo ou um lugar para comer, tudo é vendido como se não fosse apenas o que de fato é. É o império da emoção contra a chateação, da excitação contra o tédio, da rapidez contra o tempo natural das coisas, da festividade contra a tranquilidade, da ebriedade contra a sobriedade.

Ora, quando falamos de emoções tendemos a considerar que elas são espontâneas. Mas nada é realmente espontâneo no mundo da sociedade publicitária. Tudo isso é contrabalançado por programações do pensar e do sentir. As emoções também são programadas. E a questão que está em jogo é a do esvaziamento afetivo em um cenário de frieza humana e expressão histérica. Mas se as pessoas estão cada vez mais frias, isso quer dizer também que elas estão necessariamente cada vez mais “robotizadas” por pensamentos e sentimentos programados.

É nesse ponto que podemos falar de um terceiro vazio. O vazio da ação que resulta dos esvaziamentos anteriormente expostos. A perda de sentido da ética e da política nos quais floresciam as ações humanas como atividades carregadas de sentido é evidente hoje. A ascensão das posturas preconceituosas no campo do senso comum, onde a ética deveria vicejar, e das posturas tirânicas e fascistoides em política tal como vemos nos estados autoritários, que voltam a existir em escala global, é um dos seus resultados.

O vazio da ação se configura como uma extirpação do senso moral que nos levaria a agir tendo em vista o bem comum e o respeito aos direitos fundamentais dos seres humanos para uma vida justa em sociedade.

Ao mesmo tempo, seres humanos são aqueles que buscam preencher seus vazios. O vazio da ação dá lugar ao consumismo no qual a produção tem um sentido servil e puramente utilitário. Mas a ação humana pede sempre para ser invenção da vida. E é essa invenção da vida que é esvaziada pelo capitalismo.

Pensamentos e emoções dependem de exercícios em ambientes de linguagem. Aprendemos a pensar e a sentir na família, na escola, no trabalho e no mundo da vida em geral. A esse plano é preciso acrescentar as redes sociais que tendem a mudar padrões de pensamento, de emoção e de ação.

É nesses espaços que aprendemos também a valorizar o que fazemos quando podemos ser reconhecidos pelos outros porque agimos também para eles. E isso inclui a ação linguística que hoje em dia padece do mesmo mal que a ação em geral. Infelizmente, o esvaziamento da ação linguística se vê, sobretudo, nas redes sociais, lugares onde muita gente fala sem ter nada a dizer ajudando a aprofundar o vazio da vida que é substituída constantemente pela vida virtual que nos ilude de que não estamos em um deserto sem saber o que isso possa significar.

 


Leia a coluna de Marcia Tiburi às quartas, quinzenalmente, no site da CULT

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