A produção de si como mercadoria nas redes sociais

A produção de si como mercadoria nas redes sociais
Nas redes, cada um é uma espécie de “consumidor consumido”, para lembrar Vilém Flusser (Arte Revista CULT)

 

Estudar a história do trabalho, das indústrias e das corporações nos ajudaria a entender a história do poder econômico e, por conseguinte, a história de nossas vidas submetidas àqueles que controlam a possibilidade de nossa sobrevivência.

As formas de organização da produção industrial a que se deu o nome de fordismo, taylorismo e toyotismo, definiram não apenas o modo de fazer, mas o modo de ser da vida em geral submetida ao controle pela produção. Aqueles modos de organização sempre visaram baixar custos enquanto promoviam altos índices de produtividade. Todos, certamente, sempre se preocuparam pouco com as pessoas que trabalhavam nas fábricas ou nas empresas. Eram sistemas bastante frustrantes para pessoas que não queriam ser tratadas como robôs.

No taylorismo e no fordismo, as pessoas faziam uma única atividade no processo produtivo, eram remuneradas por produtividade e individualmente. A super produção levava a estoques gigantes e lucros enormes. Foi Ford que acrescentou a esteira rolante que economizava tempo dentro da fábrica para incrementar o processo de produção em grande escala. Tempos modernos de Chaplin fez a sátira disso tudo.

O toyotismo, que surgiu na fábrica do carro japonês, tem algumas diferenças: o trabalho antes individual, agora é em equipe. Uma pessoa não tem mais uma única atividade repetitiva, ela deve saber fazer tudo. Deve-se evitar todo tipo de desperdício. Retira-se o estoque e se entrega às demandas. Em épocas de crise se produz conforme o consumo.

Em qualquer desses casos, as pessoas sempre são bens bastante descartáveis. Um produtor vale tanto quanto sua produtividade. Ou menos do que ela, já que pode ser substituído. Não há nenhuma novidade nisso. Só não se submete a isso quem, em vez de ser operário comandado por meios de produção, é o dono dos meios de produção. Essa lógica das fábricas é espelho da lógica da vida e atinge todas as instituições.

A produção de coisas, sejam carros ou telefones celulares, panelas ou cosméticos, dependem de operadores de produção, ora humanos, ora robôs.
Do mesmo modo quando se trata de “meios de produção da linguagem”. Pensemos no conteúdo da internet, lotada de produção de material comunicacional ou anticomunicacional por pessoas que participam do meio apenas porque desejam. Mas será que é desejo mesmo o que nos faz participar de redes sociais?

Coloco essas questões porque gostaria de pensar no tipo de trabalho que temos nas redes sociais. É inegável que as redes sociais oferecem algum tipo de diversão às pessoas, então, parece que não estamos trabalhando. Trata-se, nesse caso, de uma indústria do entretenimento. E é evidente que elas também se oferecem como meios de comunicação.

Mas é a dimensão do trabalho que me interessa entender. Quanto tempo gastamos diariamente nesses meios? O que somos obrigados a fazer para sobreviver neles? Somos submetidos aos parâmetros taylor-fordistas nas redes sociais? Ou aos toyotistas? Que esforços, que tensões enfrentamos quando deles queremos participar? Podemos viver fora deles sem culpa? Há espertos que se aproveitam dele para jogos de poder? Há pessoas neles capazes de cometer violência? Para que são usadas as redes? Qual o papel da comunicação violenta nas redes?

Há pessoas que trabalham para as redes e são remuneradas por seu trabalho. Há mercado negro nas redes, há trabalho ilegal e dinheiro sujo, há milícias midiáticas ocupadas em enganar, mentir, destruir reputações, há pessoas cometendo crimes, aliciando pessoas mentalmente precárias, roubando e assaltando virtualmente. Não estou mencionando esses aspectos para dizer que as redes são más, não é isso. Temos que entender que as redes são “medialidades”, são meios sobre os quais fazemos escolhas. Meios que nós movimentamos? Ou eles nos movimentam? Dançamos conforme a música nas redes?

O conteúdo das redes sociais produzido por pessoas as mais diversas nos obriga a pensar. Mesmo quem não acha que está produzindo “conteúdo”, produz conteúdo. Mas conteúdo é uma alta mercadoria em nossa cultura, apesar do ódio cultivado pelos anti-intelectualistas fascistas. É que o conteúdo das redes são as próprias pessoas. E isso tem uma dimensão curiosa.

Pensando no taylorismo-fordismo, e no toyotismo, vemos que há, nas redes sociais, continuidade e mudança em relação a esses meios de organização da produção. Uma rede social é uma empresa que tem muito lucro, como um banco, como uma marca de celulares, cigarros, carros ou armas de fogo. São empresas que tem consumidores para seus produtos. O consumidor é o usuário. O produto parece ser o computador, o aplicativo, e até mesmo a própria plataforma. E tudo isso é, de fato, produto, do mesmo modo que o conteúdo das redes. Mas uma das características das redes é justamente ter apagado o fato de que são empresas que tem altos lucros em cima de um arranjo fantástico que cria um novo modo de produção. O modo de produção em que a vida de cada um é o produto. O tempo, a privacidade, a vida íntima, familiar, o que estiver a mão, é transformado em mercadoria. É o triunfo da lógica da mercadoria.

Há ainda o aspecto da produção da subjetividade por meio da transformação da subjetividade em mercadoria. Um dos pontos altos dessa produção passa pela imagem de si nas redes, imagens como selfies, imagens como paisagens, imagens como frases feitas e formulações instantâneas com alto teor de impacto ou “lacrações”.

Em termos simples quer dizer que cada um está produzindo e vendendo a si mesmo. Ao mesmo tempo, em não sendo dono dos meios de produção de si, cada um se produz a partir de uma fórmula pronta dada pelo funcionamento do aparelho. Cada um é uma espécie de “consumidor consumido”, para lembrar Vilém Flusser.

O engraçado é que o capitalismo, que é uma máquina de esvaziar subjetividades e humilhar e submeter corpos, conseguiu chegar ao seu ápice deixando a todos contentes por acreditarem que são donos de si mesmos.

Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

(4) Comentários

  1. marcia, já leste “você não é um aplicativo” de jaron lanier? parabéns pela coluna: pilar de sabedoria.

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