A persistente da memória

A persistente da memória
Nita Freire em seu apartamento, na região central de São Paulo (Foto: Marcus Steinmayer)

 

 

Quando a filha mais nova fez sete anos, Ana Maria Araújo disse ao marido que queria prestar vestibular. Tinha se cansado da rotina de casa, cozinha, feira, roupa suja. Perto dos 40, mãe de quatro filhos, passou em segundo lugar no curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências e Letras de Moema, em São Paulo, dando início a uma trajetória acadêmica que ela mesma encerraria quase duas décadas mais tarde, por causa do segundo marido.

“Eu não abriria mão da minha carreira por qualquer pessoa, mas eu não me casei com um homem qualquer”, afirma à reportagem da CULT a mulher de 83 anos que hoje atende por Nita Freire. “Me casei com um dos homens mais importantes do mundo.”

Doutora em Educação pela PUC-SP, Nita foi mulher de Paulo Freire durante quase dez anos. Pouco antes de oficializarem a união no dia 28 de março de 1988 em uma cerimônia religiosa no Recife – ele aos 66, ela aos 54 –, a então professora universitária decidiu abandonar a profissão para seguir o companheiro em seus compromissos pelo mundo. Esteve com ele “em todos os minutos”, diz, e mesmo vinte anos após a morte de Freire fica claro que ele ainda é seu principal ofício.

Dos manuscritos deixados pelo educador, Nita organizou quatro títulos: Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000), Pedagogia dos sonhos possíveis (2001), Pedagogia do compromisso: América Latina e educação popular (2008) e Pedagogia da solidariedade (2014).

Participou de congressos, homenagens, audiências públicas e inaugurações de escolas com o nome do marido – até 2012 havia 361 delas espalhadas pelo país. Fundou uma editora, a Villa das Letras, dedicada principalmente à publicação da obra freiriana. Encontrou-se com o Papa Francisco no Vaticano há dois anos para pedir que ele a auxiliasse na tarefa de obter cartas que o marido enviou a outros sacerdotes discorrendo sobre a Teologia da Libertação.

Hoje, Nita reúne fichas e anotações inéditas do filósofo para o livro Meus registros de educador, com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2018; e prepara o relançamento, no final de agosto, da biografia Paulo Freire: uma história de vida (originalmente publicada em 2006), pela editora Paz & Terra.

Com Paulo Freire, em Nova York, 1988 (Acervo pessoal)
Com Paulo Freire, em Nova York, 1988 (Acervo pessoal)

“É uma tarefa muito alegre, lisonjeira e honrosa para mim”, diz, sobre a incumbência de disseminar e preservar o pensamento do marido como sucessora legal de sua obra.

Pertencem a ela os direitos de tudo o que Paulo produziu a partir do casamento dos dois, uma decisão deixada em testamento pelo educador. Nita fala repetidamente sobre o tamanho da admiração que sempre sentiu por Freire, já que a relação de amizade entre os dois veio ao menos três décadas antes do relacionamento amoroso que se deu depois de ambos ficarem viúvos. Ela tinha pouco mais de três anos de idade quando viu Paulo – então um estudante aos 16 – pela primeira vez, circulando pelos corredores do Colégio Oswaldo Cruz, no Recife, onde ele estudou entre 1937 e 1942 e deu aulas de português até 1947. Conceituada no Nordeste, a escola pertencia a Aluizio Araújo, pai de Nita, que atendeu aos pedidos de dona Tudinha, mãe de Paulo, e deu uma vaga ao menino para que pudesse completar os estudos secundários.

Como professor, Paulo Freire deu aulas à própria Nita, na primeira e segunda série do que hoje é o ensino fundamental. Foi também seu orientador na pós-graduação e no mestrado na PUC-SP. “No colégio já era um cara que atraía muito os alunos, muito vibrante, uma pessoa que prestava atenção na relação dele com os estudantes. Essa característica, que ele trabalha melhor depois, já era nata”, lembra.

Freire, que acreditava na educação como ferramenta de libertação, procurou partir do próprio cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras para aproximá-los das palavras, método com o qual alfabetizou 300 cortadores de cana em 45 dias em 1963, lançando as bases para o Plano Nacional de Educação – encerrado pela ditadura militar. “Paulo foi um filósofo da educação, um dos maiores pensadores do século passado e o maior pensador do Brasil, não há como não dizer isso”, afirma Nita.

Patrono da educação no Brasil, Paulo Freire está hoje entre os três pensadores mais citados em trabalhos acadêmicos na área de humanas no mundo todo, à frente de nomes como Karl Marx e Michel Foucault. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa em mais de quarenta universidades no Brasil e no exterior, e também foi o único brasileiro cuja obra esteve entre as cem mais solicitadas pelas universidades norte-americanas.

Apesar do reconhecimento inegável, Nita acredita que a obra do marido não é suficientemente estudada em seu próprio país, o que atribui à “cabeça colonial” dos brasileiros, que celebram o que vem de fora, mas têm dificuldade em reconhecer o valor do pensamento produzido por aqui. “É um homem que não pode ficar esquecido, e nem ter seu pensamento distorcido. Por isso quando vejo pessoas que deturpam seu pensamento, tenho que mostrar a elas a presença autêntica de Paulo”, diz a viúva.

Nita Freire, 2017 (Foto Marcus Steinmeyer)
Nita Freire, 2017 (Foto Marcus Steinmeyer)

Foi o que fez, por exemplo, ao chegar a uma região pobre do Recife para a inauguração de uma escola e encontrar uma frase falsamente atribuída a Freire pintada em uma das paredes: “Escola é o lugar que se faz amigos”. “Paulo não escreveria semelhante coisa. Acho até ridículo esse poema [do qual o trecho foi retirado]. Nesses momentos eu não tenho compaixão, não boto panos quentes, não penso se a pessoa vai se ofender. Eu logo digo: Isso não é de Paulo.”

Por motivo semelhante, enviou uma carta ao presidente Michel Temer em julho do ano passado depois de receber a notícia de que trechos da biografia do marido tinham sido alterados na Wikipedia, e que as mudanças teriam inclusive partido de uma rede do próprio governo federal – o que mais tarde foi confirmado pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

“É claro que Paulo Freire não é unanimidade, ninguém o é. Ele pode ser lido, analisado e contestado, isso faz parte da liberdade de expressão necessária e desejável à construção da cultura letrada de alto nível de qualquer país. Entretanto, o local dos contraditórios deve ser aberto, responsável, no seio da sociedade civil, e nunca acobertado pelo anonimato ou por qualquer órgão da sociedade política”, escreveu.

Na Wikipedia, os trechos adicionados à página do educador informavam que o pensamento de Paulo Freire estava nas bases da “doutrinação marxista” encontrada em escolas e universidades do país, e que o filósofo contribuiu para a formação de uma educação “atrasada, doutrinária e fraca”. Os excertos, como se descobriu depois, pertenciam a um texto chamado “Paulo Freire e o assassinato do conhecimento”, originalmente publicado no site do Instituto Liberal – que tem Rodrigo Constantino, ex-colunista da revista Veja, como presidente do conselho deliberativo.

A viúva não hesita em responsabilizar membros do movimento Escola Sem Partido pelas modificações, já que o grupo, formado por pais e estudantes que se dizem “preocupados com a contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”, vê no educador a figura de um doutrinador ideológico autoritário e dogmático.

“Eles [membros do Escola Sem Partido] querem uma sociedade em que só se pense na reprodução do capitalismo dentro dos moldes de exploração do operariado. Marx, Lenin, Mao Tsé-Tung se tornaram nomes pervertidos, que fazem mal à sociedade. Não se pode ter o mínimo de consciência crítica. É um projeto de ditadura de direita”, critica. “Paulo pregava sempre que cada um se liberta sozinho. Não havia doutrinação.”

A polêmica não é nem um pouco recente: já nos anos 1960, o jornal O Estado de S. Paulo publicava artigo que classificava o método de alfabetização criado por Paulo Freire como uma tentativa de “bolchevização” do Brasil. Além disso, setores menos progressistas da Igreja Católica também condenavam o pensamento freiriano por estar “afastado da filosofia social da Igreja” e por “pender para princípios marxistas”.

O que une os dois períodos, segundo ela, é o autoritarismo posto em prática pelo governo em exercício. Nita acredita que, hoje, o Brasil vive uma “quase ditadura” de um presidente que tomou o poder por meio de um golpe, com o apoio de um corpo legislativo corrupto e comprado.

“Paulo pensou uma sociedade mais justa, democrática, sem esses conflitos de classe tão pavorosos que estão repercutindo hoje na política nacional. Ele estaria muito triste com esse ódio disseminado no Brasil, que teve início com um senador que perdeu as eleições para Presidência, fato comprado pela imprensa de direita que alimentou uma guerra na sociedade brasileira.”

Ela diz que, quando sente o peso dos acontecimentos, “conversa” com os retratos de Paulo Freire que estão espalhados pelo seu apartamento, localizado em uma região nobre da capital paulista. Em uma das paredes da sala há uma grande pintura do educador, feita por um artista português durante uma das dezenas de viagens do casal.

“É uma pessoa a quem eu ainda peço algum amparo neste mundo que está cada dia mais cruel”, conta. “Continuo acreditando na verdade de Paulo, esse homem que já se foi há vinte anos, mas que continua uma presença viva em minha vida todos os dias.”  

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