Paulo Freire faz 100 anos

Paulo Freire faz 100 anos
(Foto: Divulgação)

 

 

Para quem conhece a trajetória e a obra de Paulo Freire, livros, artigos e intervenções públicas das e dos seus intérpretes e defensores do seu legado, ao encontrar mais um texto sobre ele, corre o risco de se deparar com aspectos já suficientemente enfatizados. Para os iniciantes nesse percurso, a gama de ofertas é imensa e inesgotável. Apresentamos algumas veredas que, esperamos, possam contribuir com iniciados e iniciantes.

I

 

O documentário Paulo Freire, um homem do mundo de Cristiano Burlan é amplo, original e adequado para os mais diversos públicos. Os testemunhos de estudantes de graduação de diferentes cursos e de uma nova geração de pesquisadoras e de pesquisadores, após assistirem esse documentário, são contundentes e emocionantes. De forma geral, elas e eles enfatizam que Paulo Freire alicerça alternativas políticas, artísticas e pedagógicas no enfrentamento dos negacionismos, revisionismos e totalitarismos, não só em sociedades carentes de democracia como a brasileira e a de outros países latino-americanos, mas também em países cambaleantes nos seus discursos de guardiões dos direitos humanos universais, da civilização e da liberdade. Nesse contexto político, social e cultural contemporâneo, algumas questões pairam no ar: 1. O que propõe Paulo Freire que o faz ser estudado nas mais prestigiosas universidades do mundo, assim como nos cursos mais modestos das mais carentes faculdades privadas do Brasil profundo? 2. O que torna Paulo Freire uma referência de escolas privadas situadas em sofisticados bairros de São Paulo ? 3. O que faz que professoras e professores nas escolas das periferias encontrem em Paulo Freire um alento para continuar o seu trabalho cotidiano?

II

 

Uma tentativa de responder às questões acima nos leva a argumentar que Paulo Freire, com a sua práxis contundente, insistente e incansável pela justiça, pela cidadania, pelo respeito aos diversos conhecimentos (incluindo os conhecimentos excluídos dos conteúdos escolares) e pela extensão dos direitos mais elementares aos deles completamente desprovidos, conseguiu aglutinar pessoas, grupos e profissionais que não se silenciam, nem são indiferentes ao que se encontra diante de seus olhos e de suas mãos. Entre esses direitos amplamente reivindicados se encontra o acesso à educação: o direito a uma educação que não marginalize as e os já marginalizados nos seus direitos sociais, econômicos, culturais e políticos. Portanto, reduzir Paulo Freire a um método de alfabetização elaborado nos anos 1960, como tantos fizeram e ainda o fazem, é ignorar a sua contribuição e empenho na construção de uma teoria política e pedagógica, impregnada das experiências e mazelas da vida cotidiana nas “quebradas do mundaréu”, como diria Plínio Marcos.

III

 

Por essas e muitas outras contribuições comemora-se, pelo mundo afora, os seus 100 anos com diferentes protagonistas, discursos e linguagens: inúmeros dossiês em revistas acadêmicas publicadas no Brasil e no exterior, lives e conferências em diversos idiomas, novas traduções e edições de seus livros e uma infinidade de publicações sobre e ou com ele. Essa série de homenagens teve início no segundo semestre de 2019 e a programação pelo menos, até o final de 2021, passou e passará por: Angicos, Berlim, Bogotá, Caiacó, Cidade do México, Evanston (Chicago), Fortaleza, Genebra, Hamburgo, Havana, Macau, Paris, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Santiago do Chile, Salzburgo, Teresina, Toulouse, Uberaba, Veneza, Vitória, etc. Esses eventos trazem ao espaço público uma nova geração de ativistas, professoras e professores, pesquisadoras e pesquisadores, que ressignificam e revitalizam a pedagogia freireana. Nessa série de homenagens uma iconografia se evidencia, na qual Paulo Freire é apresentado distante da imagem padrão (do homem de barba branca e gestos atenciosos) e em cenários pouco convencionais. Nela se encontra interpretações e releituras pictóricas de Paulo Freire, menos previsíveis, em desenhos, pinturas, grafites, lambe-lambes, caricaturas, cartazes, camisetas, muros, transporte público (em Helsinque ou em Lins, interior de São Paulo) e nas redes sociais. Paulo Freire é (re)apresentado andando de bicicleta; fumando seu cigarro (da marca Minister); alegre e em cenários tropicais; saboreando suas frutas preferidas em feiras agroecológicas; falando japonês em Kagoshima; ou ainda provocando os mais recentes clones de sanguinários ditadores. Surgem também no espaço público: fotos dele com Abdias do Nascimento, Antonia Darder, Aldo Vannucchi, Darcy Ribeiro, Davi Kopenawa, Heinz Peter Gerhardt, Ivan Illich, José Lutzenberger, Luiza Erundina, Márcio D’Olne Campos, Patativa do Assaré, Valdeck de Garanhuns e com pessoas não tão conhecidas como as citadas que evidenciam algumas das andanças de Paulo Freire pela Austrália, Belém do Pará, Campinas, Cuernavaca, Guiné-Bissau, Hiroshima, Piracicaba, Ponta Grossa, Sorocaba e nos assentamentos do MST.

IV

 

O nomadismo, os debates, os seminários, as entrevistas, as intervenções públicas, a experiência de Paulo Freire como secretário da educação no governo de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo e a vida que ele e Nita Freire decidiram levar juntos (amplamente documentada no livro dela, Nós dois: crônicas, fotografias e cartas de amor) terão impacto decisivo na construção da pedagogia freireana que se evidencia em Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Este é o último livro publicado em vida de Paulo Freire, direcionado às professoras e aos professores, questionadores das injustiças, conscientes da pertinência política do seu trabalho e de suas práticas sociais cotidianas nas quais o afeto (“amorosidade”) é um elemento fundamental das relações sociais voltadas para a consolidação da democracia, dos direitos, do respeito à alteridade e às diferenças (étnicas, de raça, de gênero e de orientação sexual) e da responsabilidade ecológica, coletiva, frente à indiferença com a destruição e aniquilamento da vida. A interlocução de Paulo Freire com Nita Freire, nos últimos 10 anos da vida dele, resultará em uma elaboração teórica de ampla acolhida e recepção no crescente movimento “dos afetos” nas artes, nas humanidades, nos movimentos sociais e na política.

V

 

A arqueologia em torno dos 100 anos de Paulo Freire possibilita evidenciar os documentos e registros de seus estudos realizados na Faculdade de Direito do Recife trazidos pela pesquisadora Tania Aversi na sua tese de doutorado ou a carta que Paulo Freire escreveu ao diretor do Centro de Educação de Adultos da Tanzânia, apresentando o cantor e compositor Taiguara quando ele decidiu morar naquele país. Outros preciosos documentos sãos as inúmeras cartas que Paulo Freire recebeu e que se encontram nos arquivos do Conselho Mundial da Igrejas em Genebra, sem falar das cartas que ele trocou com alguns dos mais conhecidos teólogos (da Libertação). Quando Nita Freire foi recebida em audiência no Vaticano pelo Papa Francisco, ela solicitou-lhe que intermediasse o acesso dela às cartas em mãos de dominicanos, salesianos e beneditinos, para que pudesse ter acesso a essas cartas.

VI

 

O que pode ter sido apenas um encontro casual de exilados brasileiros no exterior, mas que é mais do que isso, foi a presença de Geraldo Vandré e de alguns músicos brasileiros na virada do ano de 1970 para 1971 na casa de Paulo Freire em Genebra. Cantaram? Se sabe que Paulo Freire adorava cantar. Sobre o que conversaram? Ficaram em silêncio se oferecendo um cigarro, uma bebida, um petisco, sem precisar trocar palavras, pois estava tudo no olhar e nos gestos?

VII

 

Um grafite num dos muros da PUC-SP mostra Paulo Freire, uma imagem da tortura (pau-de-arara), um tanque do exército e uma cena do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, em que um intelectual coloca a mão na boca de um representante do povo na hora que este ia falar, impedindo-o de fazer tal coisa. No Pedagogia do oprimido, um livro escrito para os intelectuais e militantes, Paulo Freire chama a atenção da necessidade de não se falar em nome do povo, mas com ele. Ele observa a necessária atenção (política e pedagógica) de se ouvir mais. O que Marta Catunda, décadas depois, chamaria de “escuta sensível”. O grafite expõe e explora possibilidades de conexões entre linguagens e argumentos que marcaram a oposição à ditadura civil-militar e os riscos físicos e morais que o regime autoritário colocava em ação contra as pessoas e grupos que lutavam contra ele. Paulo Freire dedicou esse livro “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”. A tradução em francês dessa dedicatória destaca a solidariedade com os oprimidos. Solidariedade é “palavra-asa” (Marta Catunda) na obra freireana e integra o título de um dos seus livros póstumos, em parceria com Nita Freire e Walter Ferreira de Oliveira.

VIII

 

Quando Ai Weiwei esteve no Brasil e aqui realizou trabalhos em conexão com o contexto brasileiro, o pernambucano foi uma de suas interlocuções. Trata-se de uma série de 12 obras que Weiwei “criou utilizando couro de vaca marcado por ferro em brasa. Frases, letras de músicas e poemas de pensadores brasileiros, como Paulo Freire, foram gravados no couro. A tipografia é o alfabeto armorial de Ariano Suassuna”, como registrado em Pedagogia da solidariedade. A frase de Paulo Freire , escolhida por Ai Weiwei foi: The opressor consciousness tends to transform everything surronding it into an object of its domination (Raiz Weiwei, 2018).

IX

 

A capacidade e a legitimidade de indignar-se diante do inadmissível atravessam um dos últimos textos de Paulo Freire. Em abril de 1997, um assassinato escandalizou o país: jovens atearam fogo num homem que se encontrava num ponto de ônibus após uma manifestação dos povos originários em Brasília. Seu nome: Galdino Jesus dos Santos. Ficou conhecido como Galdino Pataxó. A contundente indignação de Freire frente a esse crime foi publicada no livro póstumo, organizado por Nita Freire, Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Décadas após o assassinato de Galdino Pataxó, os povos originários continuam enfrentando todo tipo de violência, inclusive a praticada e ou apoiada por governos eleitos. A pedagogia da indignação vai se transformando em “pedagogia da raiva” (Rodrigo Barchi). Os povos originários resistem como sempre resistiram. Denunciam e reivindicam, com inúmeras vozes e linguagens, seus direitos. Ampliam suas redes de solidariedade. Estão presentes nas universidades, centros culturais, museus e galerias de arte contemporânea, nas ruas, esquinas e avenidas. O cacique Raoni foi recebido em audiência no Vaticano. O papa Francisco quebrou o protocolo e o abraçou. As novas gerações dos povos originários enfrentam, com arte e astúcia, a maquinaria da produção de ausência de sentidos dos poderes coloniais, colonizados e colonizadores. Oferecem banquetes anticoloniais. Um nome entre tantos possíveis: Arisanna Pataxó.

 

Marcos Reigota é professor do Programa de Pós-graduação em Educação e do Colegiado de Filosofia da Universidade de Sorocaba. Pesquisador do CNPq. Doutor pela Universidade Católica de Louvain.


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