Nietzsche, um pensador misógino?
O eixo central da crítica que Nietzsche faz ao movimento de emancipação feminina reside precisamente na ideia de igualdade (Foto: Domínio Público)
“Todas elas me amam”, escreve Nietzsche no Ecce Homo. E, logo, acrescenta: “com exceção das mulherzinhas vitimadas, as ‘emancipadas’, as incapazes de terem filhos”. Entendendo que as mulheres que buscam a própria independência são vítimas por não poderem procriar, ele revela nessa passagem seu conservadorismo. Na verdade, são vários os momentos de sua obra em que deixa claro o lugar que as mulheres deveriam ocupar na ordem social e os papéis que teriam de desempenhar. O lar seria o seu domínio de atividades; acompanhar o marido e cuidar dos filhos, as suas tarefas. Enquanto as mulheres são feitas para servir, dependendo daqueles a quem servem, os homens julgam fundamental manter a autonomia. Eles revelam assim uma condição superior, que lhes permite se dedicarem a grandes tarefas. Por isso mesmo, é com precaução que devem considerar o matrimônio. Na medida em que se trata de um contrato que lhes impõe obrigações, só poderiam aceitá-lo se contribuísse para o próprio desenvolvimento intelectual.
Em Humano, demasiado Humano, Nietzsche esclarece as condições que lhe parecem necessárias para que um casamento seja bem-sucedido. Em primeiro lugar, ele teria de se fazer sempre por conveniência, jamais por amor, mesmo porque são as mulheres que idealizam esse sentimento. Depois, seria mais conveniente que os cônjuges não morassem juntos, pois o excesso de intimidade poderia prejudicar a união matrimonial. Além disso, para que essa união fosse duradoura, deveria ser entendida como uma boa conversa, de sorte que a sexualidade nela entraria para realizar “fins mais elevados” como “um meio raro” com vistas à procriação. Daí, a importância do papel que o concubinato desempenharia na sociedade. Nietzsche chega até mesmo a avançar a ideia de que, menos honestas que as cortesãs, as esposas sempre recorreram a subterfúgios para se manterem; por isso, valorizaram as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos como pretexto para se subtraírem ao trabalho. Numa sociedade ideal, a elas deveria caber a responsabilidade pelo sustento da família.
É reveladora a maneira pela qual o filósofo discorre sobre as peculiaridades e características femininas. Atribuindo às mulheres “astuciosa agilidade ferina”, dá a entender que, ágeis, elas muito rápido fazem operar a astúcia que, igual à de uma fera, corre o risco de mostrar-se perversa e cruel. Entendendo que têm “ineducabilidade e selvageria interior”, deixa entrever que, egoístas, são incapazes de uma relação inter pares e, selvagens, sequer podem ser adestradas nesse sentido. Imputando-lhes “caráter inapreensível, vasto, errante” no que se refere a “seus desejos e virtudes”, leva a crer que, imprevisíveis, não são dignas de confiança e, volúveis, não se deixam capturar. Em vez de apreciarem uma existência calma e harmoniosa, elas não hesitam em se deixar levar por sentimentos hostis aos homens. Desconsiderando o princípio de equidade, empenham-se em encontrar os seus pontos fracos para atacá-los. Enquanto os homens conseguem conter a expressão dos próprios sentimentos, as mulheres não se limitam a exprimi-los, mas deles se servem para apunhalar sem dó seus adversários.
Em suma, no entender de Nietzsche, a mulher é como um pássaro raro, que deve ser tratado “como algo que se prende, para que não fuja voando”. Ela é como “um animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e frequentemente agradável”. Contudo, é preciso que os homens não se esqueçam de que esse belo animal tem sempre uma “garra de tigre por baixo da luva”.
Mas Nietzsche vai além. Examinando as imagens que se apresentam na relação entre homens e mulheres, critica o excesso de zelo das mães no trato com os filhos. Encerrando-os num quadro limitado e restrito, elas aprisionam os seus espíritos e, em vez de contribuírem para o seu desenvolvimento, acabam por sufocá-los. Daí se segue que o que poderia de início ser tomado por um gesto de atenção rapidamente se converte numa atitude egoísta; o cuidado das mães em relação aos filhos nada mais é do que a necessidade que elas têm de mostrar bondade, exibindo assim a imagem idealizada que construíram de si mesmas.
Quanto aos homens, Nietzsche começa por assinalar que eles têm uma imagem da mulher que lhes vem da mãe; acrescenta que, em toda espécie de amor feminino, há algo do amor materno; prossegue afirmando que, ao comportarem-se como mães em relação aos seus amados, as mulheres nada mais fazem do que reforçar a imagem da mulher que eles já têm. Portanto, elas não têm motivo de queixa nem de reclamação. São as responsáveis pelo comportamento, atitudes e expectativas, que os homens têm em relação ao dito “sexo frágil”.
Chama a atenção que um pensador tido por ousado e irreverente expresse ideias desse teor. Causa surpresa que um filósofo que se propõe subverter os valores estabelecidos partilhe posições tão tradicionais em relação à mulher. Por um lado, Nietzsche se apresenta como “médico da cultura”, pondo em questão nossa maneira de pensar, agir e sentir: desestabiliza nossa lógica, implodindo os dualismos; critica a religião cristã e a moral do ressentimento; combate continuamente nossos preconceitos, crenças e convicções. Por outro, quando trata das mulheres, parece partilhar convicções, crenças e preconceitos dos homens de sua época. Mas, o que o difere de seus congêneres é que suas reflexões sobre as mulheres não poderiam ser reduzidas unicamente a preferências pessoais e menos ainda a digressões eventuais. Elas tampouco ocupam um lugar marginal em sua obra. Ao contrário, inscrevem-se em seu projeto filosófico que consiste precisamente em tomar as rédeas do futuro da humanidade, de sorte a contribuir para o aparecimento do ser humano sadio e bem logrado.
Examinemos mais de perto as posições do filósofo em relação às mulheres emancipadas. Não se pode negar que elas constituem um de seus principais alvos de ataque. Mas, ao contrário do que ele declara no Ecce Homo, quando afirma ser amado por todas com exceção das emancipadas, estabeleceu fortes laços de amizade com várias mulheres que participaram do movimento feminista então crescente. Malwida von Meysenbug, Meta von Salis, Resa von Schirnhofer, Helene von Druskowitz e Lou Salomé foram algumas delas.
Nietzsche conhece Malwida von Meysenbug em maio de 1872, por ocasião das festividades de lançamento da pedra fundamental do que viria a ser o Festspielhaus, o teatro tão almejado por Wagner, em Bayreuth. Desde então, uma forte amizade surge entre eles. Malwida admirava o compositor da Tetralogia e interessava-se pela filosofia de Schopenhauer. Sua participação nos eventos revolucionários de 1848 valera-lhe o exílio. Em Hamburgo, feminista e militante, fundou uma “comunidade livre”; em Londres, entrou em contato com refugiados políticos de vários países. Era colaboradora de diversos jornais importantes: a Gazeta de Frankfurt e o Novo Jornal de Zurique, entre outros. Em 1876, publicou uma autobiografia em três volumes: Memórias de uma idealista, em que relatava suas atividades políticas.
Foi a leitura dessa obra, aliás, que levou Meta von Salis a estudar e trabalhar pela emancipação feminina. Embora pertencesse a uma nobre família suíça, cujos filhos habitualmente se alistavam nos regimentos austríacos e franceses, a ela se opôs ao decidir prosseguir os estudos; tendo cursado filosofia e direito, doutorou-se na Universidade de Zurique. Para ter acesso ao mundo dos livros, não hesitou em empregar-se como governanta. Com cabelos curtos e ar marcial, pôs-se a serviço da causa feminista. Ainda estudante, encontrou Nietzsche em 1884; nos verões de 1886, 1887 e 1888, com ele se entreteve em Sils Maria.
Também Resa von Schirnhofer e Helene von Druskowitz estudaram na Universidade de Zurique e lá concluíram o doutorado. Também elas advogaram em favor do feminismo que então surgia e conheceram Nietzsche nos anos de 1884-1885. Ao lado de Meta von Salis, elas constituem exemplos das “novas mulheres”, que, com frequência, eram rotuladas “mannish” pela simples razão de terem aspirações intelectuais. Na sociedade em que viviam, o fato de uma mulher exigir o direito à educação universitária implicava que quisesse abraçar uma carreira; isso bastava para fazer dela uma defensora da igualdade entre os sexos aos olhos dos homens e uma radical feminista aos olhos das mulheres.
Como Meta von Salis, Resa von Schirnhofer e Helene von Druskowitz, Lou Salomé tinha o desejo de aprimorar-se; como elas, desafiava normas e convenções sociais. De origem russa, gozava de uma independência de espírito e liberdade de comportamento, que, embora usuais na Rússia, eram desconcertantes para a época. Em abril de 1882, Nietzsche conheceu-a em Roma; então, ela começava a frequentar os meios intelectuais e decidira dedicar-se à literatura. Mas, ao que parece, não era enquanto mulher emancipada que o filósofo a considerava. Quando desta curta e estreita convivência, ele se sentiu atraído pela sua presença de espírito e capacidade de escuta; foi seduzido pelo seu ardor intelectual e desejo de vida. Em Nietzsche, a “jovem russa” julgava encontrar um homem brilhante que poderia auxiliá-la a aprimorar a sua formação; em Lou, ele esperava ter “uma discípula”, “uma herdeira” que continue seu pensamento.
Se na infância, em Naumburgo, Nietzsche conviveu sobretudo com mulheres zelosas que se desdobraram em cuidados, aquelas com quem ele escolherá vincular-se no decorrer da vida serão mulheres independentes, fortes e determinadas. Cartas, depoimentos e relatos parecem indicar que tanto em relação às primeiras quanto às últimas, ele sempre se mostrou gentil e solícito. Mas a atenção e delicadeza que demonstrava para com as mulheres contrasta com a misoginia por vezes expressou em seus textos. A amizade que devotava às emancipadas contrapõe-se ao antifeminismo presente em escritos seus.
Prova disso são as constantes críticas que Nietzsche faz ao movimento de emancipação feminina. Em Para além de Bem e Mal, ele procura mostrar o despropósito das iniciativas das mulheres que se dispõem a esclarecer quem são e o que lhes cabe. Afirma que à mulher é necessário o pudor, por ela ter muito o que esconder. Mais vale que esconda o que possui de pedante, superficial, doutrinário, presunçoso, desenfreado, imodesto; mais vale que esconda tudo isso que “até o momento e, no fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da melhor maneira”. Em vez de tomar a palavra, discursar e argumentar em favor da própria independência, deveria servir-se dos traços que lhe são peculiares: o belo, o faceiro, o gracioso, o lúdico, o leve, o suave, o agradável. Pois, no entender de Nietzsche, são precisamente esses seus traços que os homens apreciam; assim sendo, à mulher cabe tão-somente continuar a corresponder ao que dela se espera.
Contudo, se, ao lutar por igualdade de direitos, as mulheres da sua época se enganam, porque não recorrem às boas armas, equívoco ainda maior é o dos homens, que acatam tais anseios, aceitam tais demandas, toleram tais exigências. Da perspectiva nietzschiana, ceder à ideia de igualdade, quando se pensa em problemas relativos à política, à ordem social e à educação, é traço distintivo de pensadores superficiais, incapazes de conceber a mulher “como posse, como propriedade a manter sob sete chaves, como algo destinado a servir”. Esses “doutos jumentos masculinos” não hesitam em incentivar as mulheres a se educarem, se informarem, participarem da política. Começam a incitá-las a se dedicarem à literatura e a apreciarem a música; passam a encorajá-las a se afastarem da religião e a praticar o livre-pensar; acabam por induzi-las a abandonar “sua primeira e última ocupação, que é gerar filhos robustos”. Em suma, é justamente porque os homens abrem mão da precedência e renunciam às posições de mando que surge o movimento de emancipação feminina. Se eles mantivessem a atitude que lhes cabe, a posição que lhes compete, o lugar que lhes pertence, as mulheres não acalentariam desejos igualitários.
O eixo central da crítica que Nietzsche faz ao movimento de emancipação feminina reside precisamente na ideia de igualdade. Ao buscarem equiparar-se aos homens, as mulheres renunciam a suas características e peculiaridades, desistindo do que lhes é próprio. Submetendo-se a tal processo, “a mulher degenera”, pois ocorre um “progressivo enfraquecimento e embotamento dos instintos mais femininos”, numa palavra, ocorre “uma desfeminização”. Ao apostar na igualdade entendida como nivelamento gregário, o movimento de emancipação feminina, tal como a tendência democrática, nada mais faz do que se mostrar cúmplice de uma “ideia moderna”.
Analisar as “ideias modernas” é precisamente um dos propósitos que Nietzsche se coloca em grande parte de seus escritos. Nelas, denuncia o procedimento dos ressentidos e ataca o reino do animal de rebanho. É desse ponto de vista que julga acontecimentos históricos, correntes de ideias, sistemas de governo. É também nesses termos que considera a democracia, o socialismo, o anarquismo; é dentro desses parâmetros que os avalia. É dessa perspectiva que encara o movimento de emancipação feminina; a seu ver, as mulheres que nele se engajam nada mais fazem do que exigir a uniformização, impor a gregariedade, expressar o ressentimento. É o quanto basta para criticá-las. Afinal, são entraves para o prosperar da humanidade.
Bem se poderia argumentar que há outras mulheres a frequentar os escritos de Nietzsche. Em Assim falava Zaratustra, com a mulher, o protagonista identifica a felicidade, que corre atrás dele, e a eternidade, a quem declara o seu amor. Mas são sobretudo a sabedoria, a verdade e a própria vida que, concebidas como mulheres, desempenharão papel central no livro. Da sabedoria, Zaratustra torna-se cúmplice; pela verdade, ele se deixa cativar; com a vida, ele se põe a dançar. Não há dúvida de que essas são as mulheres bem-amadas de Nietzsche. Mas, é bem verdade, mulheres que jamais existiram.
Scarlett Marton é doutora em Filosofia pela USP, professora titular da mesma universidade, autora de Nietzsche e a arte de decifrar enigmas (Loyola) e Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos (UFMG), entre outros