Não atirem no mensageiro

Não atirem no mensageiro

 

As coisas não estão fáceis para o jornalismo nos últimos tempos. Primeiro, o modelo de negócio que por mais de um século manteve empresas de comunicação ─ e o jornalismo como o conhecemos ─ há muito dá sinais de que se tornou financeiramente insustentável. Segundo, o mais bem-sucedido modelo alternativo que apareceu na última década para garantir fornecimento de informações sobre os fatos correntes foi aquele que resultou na indústria das fake news. Uma triste alternativa. Outros modelos estão sendo testados, mas até agora nada se garante.

Terceiro, nos ambientes sociais digitais, em que se consome e discute informação política em grande intensidade e em fluxo contínuo, a informação é consumida e discutida de forma militante. Notícias não passam de insumos para uma luta política cada vez mais sectária, radical e polarizada. Neste quadro, há uma espécie de hipervigilância sobre a informação em circulação e sobre quem a produz profissionalmente. A militância está sempre policiando a inclinação política das matérias ou colunas, calculando a proximidade ou a distância entre o que é publicado e o próprio quadro de valores e estimando os efeitos que este conteúdo poderia exercer para levar a opinião pública a posições contrárias ao “nosso lado”.

Essa circunstância faz com que ocorra com frequência cada vez maior algo que já foi raro: mobilizações para atacar veículos e jornalistas como se fossem inimigos numa guerra ou adversários numa competição política. Nessa nova mentalidade, o jornalista não é apenas mais um profissional fazendo seu trabalho, que consiste em relatar fatos apurados ou fazer análises sobre os acontecimentos da atualidade. Não, ele deve ser tratado como uma espécie de militante envolvido em operações ideológicas e propagandísticas para favorecer um dos lados da batalha política, normalmente o lado contra mim.

Veja bem, a novidade não consiste em achar que a cobertura, os enquadramentos adotados, a seleção dos fatos e dos destaques, as interpretações oferecidas são parciais e hostis ao meu lado. Dezenas de artigos científicos já provaram que pessoas muito partidárias tendem a portar essa síndrome e o sentimento de que o jornalismo é sempre tendencioso contra o lado que elas adotaram. O que há de novo decorre do fato de que, hoje, o consumo de informação e a mobilização política não se dão em dois espaços diferentes, mas concomitantemente e no mesmo ambiente digital. Com isso, da sensação de que a matéria está contra o meu lado e, portanto, está errada, se passa imediatamente às medidas corretivas, em geral ao ataque direto e feroz contra o repórter, o colunista, o editor. O gatilho pode ser só uma foto, como no caso de Gabriela Biló, não importa. O que interessa é que é permitido, incentivado e justificado atirar no mensageiro. Afinal, onde você vê um jornalista, o militante vê outro militante a ser combatido.

Se já está ruim até, complete o quadro, com outro complicador. Está em curso no Brasil uma guerra declarada entre pequenas e grandes empresas de jornalismo por prestígio e distinção política, por superioridade moral e por recursos que são cada vez mais escassos no campo, como atenção pública e dinheiro. “Atenção pública”, sim, porque o jornalismo profissional precisa lutar todo dia para ser lido e visto diante da inundação de informações provenientes de fontes amadoras, boatos e fake news, que disputam cada centímetro da atenção de um consumidor de notícias cada vez menos capaz de fazer distinções. O fato é que temos agora jornalismo contra jornalismo, com veículos pintados para a guerra e para a autopropaganda, fazendo manifestos sobre a superioridade do jornalismo independente, o deles, em face do jornalismo corporativo, o dos outros.

O último ataque coordenado a um jornalista ocorreu esta semana e foi uma constrangedora campanha digital para queimar a reputação de Andreza Matais, editora de política do jornal O Estado de S. Paulo. Do lado das tochas estavam conhecidos jornalistas autoproclamados independentes, um influenciador digital peso pesado, Felipe Neto, figuras carimbadas do PT e, claro, a arraia miúda da militância política petista. A jornalista havia sido acusada, por um site de notícias dito independente, de intencionalmente patrocinar e dirigir uma matéria cuja finalidade seria atacar a imagem do ministro da Justiça, candidato a uma vaga no STF, ao narrar uma visita ao ministério da esposa de um chefão do crime organizado no Amazonas.

Nem quero discutir o mérito das acusações ─ reportagens têm que ser capazes de se defender sozinhas ─, mas registrar o espanto com a atitude. Na campanha, vista por milhões de pessoas, a jornalista teve sua foto reproduzida, sob a legenda “a dama das fake news”, como se fosse uma criminosa procurada pela Justiça. Não era mais uma editora fazendo o seu trabalho, do qual grupos políticos podem gostar ou não, mas uma pessoa condenada pelo crime de desagradar a patrulha política que vigia e pune jornalistas como se fossem colaboracionistas de algum regime desprezível.

Há quem esteja tentando vender a ideia de que o jornalista de grandes empresas de comunicação vive sobre as pressões do dinheiro, da vontade do patrão e dos interesses políticos da empresa, enquanto o jornalista de pequenas organizações viveria de idealismo e gozaria de liberdade intelectual e moral. Pura autopromoção. Todo mundo tem boletos para pagar e espera que a grana entre no caixa, vinda de consumidores e assinantes, de verbas publicitária de governos ou de organizações filantrópicas.

Não há jornal que se preze que não cuide de separar a redação e o departamento comercial, sob pena de não conseguir ter um produto sustentável, uma vez que o jornalismo vive de reputação, capital social que depende do julgamento coletivo sobre honestidade e isenção. E idealismo político e moral, convenhamos, não garante noticiário de qualidade; antes, pode ser um problema quando a ideologia compromete o cuidado, a imparcialidade e a veracidade da apuração.

E se a ideia é dizer que o jornalismo que se autodenomina “independente” faz jornalismo de opinião, isso não é necessariamente uma vantagem em uma sociedade em que a maior parte das pessoas quer e precisa de relatos confiáveis, objetivos e atualizados sobre o que está acontecendo ao seu redor. E não aceita ter na sua dieta informativa apenas opinião partidarizada.

Não consigo reconhecer a diferença entre jornalismo independente e jornalismo corporativo, apesar de ser professor de jornalistas há mais de 30 anos. Consigo reconhecer a diferença entre bom e mau jornalismo, entre jornalismo comprometido com o interesse público de seus consumidores e jornalismo que assume uma das trincheiras e escolhe um dos lados de uma guerra que deveria apenas narrar, entre jornalista comprometido com os valores do seu campo e jornalismo venal, militante ou que contribui para atacar a credibilidade da sua própria profissão.

A crítica pública a matérias, colunas, editoriais e até à linha editorial de um jornal é essencial para o jornalismo e para a democracia. O “jornalismo de denunciar jornalista” não só é desnecessário como contraproducente, pois contribui para a erosão da credibilidade de todo o jornalismo. O ataque orquestrado e personalizado contra jornalistas que estão fazendo o seu trabalho nada tem a ver com a luta política honesta, crítica ─ que pode ser dura, mas tem que ser leal ao conteúdo, não às pessoas ─, que é fundamental numa democracia. A intimidação de jornalistas é arma autoritária, a exposição e desqualificação de uma jornalista na esfera pública é recurso de política sórdida e inescrupulosa. Não deixamos Bolsonaro para trás para continuar a ver isso.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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Errata: Em sua primeira versão, o texto acima foi ilustrado com uma foto do jornalista Leandro Demori, que, no entanto, não foi citado na coluna. Reconhecemos o equívoco em utilizar sua imagem e pedimos desculpas aos leitores e a Leandro Demori pelo ocorrido.

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