Mulheres, não esperem sentadas

Mulheres, não esperem sentadas
Colagem de Adam Hale (Reprodução/Instagram)

 

Na Política de Aristóteles Pólis é a cidade-Estado, e Óikos o território da casa. Na equação política criada pelo filósofo grego, o primeiro é reservado aos homens e o segundo às mulheres, aos escravos e aos animais. Economia é um termo que tem na origem a palavra Óikos, do mesmo modo que política vem de pólis.

Ora, as bases da separação entre público e privado estão dadas aí e correspondem à diferença entre gêneros e classes, bem como entre cultura e natureza. No mundo da pólis se exerce o poder, a voz que leva à expressão e à partilha das ideias. Assim se constitui o reino da democracia ocupado pelos homens na ágora que é, justamente, o espaço público do encontro entre cidadãos. No espaço da casa, há o trabalho, a procriação e a sustentação organizada da vida.

Gostaria de propor algumas considerações sobre a importância dessa separação entre público e privado que coloca homens e mulheres (e escravos e animais) em mundos separados. Essa separação rege o pensamento e as práticas ético-políticas da história humana. Público e privado correspondem a mundos habitados por homens e mulheres (e escravos e animais).

Antes de seguir, devemos saber que o reino do público se define pela ordem do poder, e o reino do privado pela ordem da violência.

É um fato que a violência contra as mulheres é uma constante cultural e que ela continua a crescer em todas as sociedades. A violência doméstica sempre foi assunto levantado pelas mulheres que fazem sua politização defendendo-se da violência, que vem dos homens dentro de casa. A questão da violência doméstica é até hoje uma das principais bandeiras dos movimentos feministas. A violência contra as mulheres é principalmente violência doméstica. A desigualdade do trabalho doméstico, o papel da maternidade e toda uma lógica do próprio casamento como submissão da mulher ao homem tem muito de violência.

Em um tom mais radical, poderíamos até nos perguntar se a ordem doméstica não é, ela mesma, aquela que instaura as condições de possibilidade da violência doméstica. Guardemos essa hipótese que pode nos ajudar a refletir sobre a sustentação e avanço da violência doméstica. A questão que proponho é que pensemos na intimidade conceitual e prática que há entre mulheres, vida doméstica e violência.

Ao mesmo tempo, precisamos ter em vista um dado que nos permitirá avançar em nossas considerações. É curioso que o lugar das mulheres no parlamento, nos poderes executivo e legislativo, seja, hoje em dia tão pequeno e, em certos países, como o Brasil, continue a diminuir. As mulheres concernem bem mais ao mundo da violência do que ao mundo do poder, não é verdade?

A equação política continua evidente: de um lado estão as mulheres e a violência doméstica, de outro estão os homens e o poder público. A equação mostra o nexo mais profundo entre seus fatores no momento em que observamos a oposição que estrutura essa relação: enquanto a violência é “sofrida” por mulheres, o poder é “exercido” pelos homens.

Vamos deixar claro que a violência sofrida por mulheres é exercida certamente por homens, mas também por toda uma sociedade que produz esses mesmos homens como seres de privilégios contra outros seres que, não sendo homens, não teriam privilégios. Muitas mulheres que se sentem naturalmente parte do patriarcado ajudam a confirmar a ordem vigente e a tendência dominante machista porque aproveitam alguma coisa do sistema de privilégios. Não quero reduzir a questão da violência à questão dos privilégios, mas esse é um fator importante já que os privilégios são a forma imediata do poder, ele mesmo infinitamente mais complexo. E que, de um modo geral, quem tem mais poder, tendo mais privilégios, sofre menos violência.

Vamos deixar claro que nem todos os homens exercem violência, e que alguns poucos conseguem romper com o privilégio. Há exceções a qualquer regra.

Por privilégios, entendemos as vantagens provenientes de posições sociais, políticas, econômicas, de gênero, raciais, etárias. Sabemos que o capitalismo é, ele mesmo, a versão econômica do que o machismo é em termos de gênero. Ele é um sistema de favorecimentos. Natural que no machismo elevado à Razão de Estado, como vemos no Brasil de hoje, os auto-favorecidos sejam homens e suas mulheres colocadas debaixo de jargões tais como o conhecido “bela-recatada-do lar”. Verdade que essa construção é violenta de um ponto de vista simbólico, mas quem se submete a ela não está preocupada com isso.

Evidentemente não se está sustentando que não haja violência para homens, que não haja violência entre eles e também contra eles. Certamente há opressões para todos em uma sociedade capitalista que administra privilégios e opressões de raça e classe, além de gênero e sexualidade, para todos. O que está em jogo é entender o padrão, no mínimo curioso, que implica que as mulheres estejam do lado da violência e os homens do lado do poder, que haja muita violência contra mulheres e pouco poder administrado por elas.

A quantidade e a qualidade da violência contra mulheres são atravessadas por fatores diversos. Se for verdade, como dizia Theodor Adorno, que a vítima desperta o desejo de proscrever, então, tanto mais violência sofrerá aquele que menos poder tiver. Isso nos leva a algumas considerações necessárias: 1- que há um nexo entre violência e poder que não permite confundi-los simplesmente, portanto, que poder não é simplesmente violência e que a violência não é simplesmente poder. 2 – Que onde não há poder há violência, que a violência é o que resta para aqueles que não tem poder.

Podemos considerar também que a violência é usada para evitar o poder daqueles que são marcados pela violência. Nesse sentido, uma pergunta deve ser feita por todas: haveria para os seres heterodenominados “mulheres”, alguma chance de fazerem parte da humanidade que não fosse sob o jugo daqueles que, como algozes, as heterodenominaram?

Nessa linha podemos nos perguntar: quando o atual presidente da República fez seu comentário infeliz no último dia 8 de março relacionando mulheres e economia doméstica num tom entre o desconhecimento de economia e o desconhecimento da vida das mulheres, em certo sentido, podemos pensar que ele falava como um homem muito antigo, um ignorante da luta das mulheres por direitos e da vida das mulheres como trabalhadoras, profissionais, artistas, etc, podemos pensar que ele falava como alguém que pensa que as mulheres vivem em nossa época como donas de casa.

Mas não é apenas isso, ou melhor, como representante do culto da ignorância machista, a fala do presidente é estratégica. Se de uma lado, podemos supor uma tentativa de mistificação das massas de mulheres que de fato são donas de casa, fingindo que elas não são trabalhadoras e profissionais nas mais diversas áreas, de outro vemos a velha esperança do machismo: de que as mulheres não entrem na política, muito menos com consciência da política à qual damos o nome de feminismo.

O fim da violência doméstica depende de levarmos a sério a ideia de que poder é ação conjunta e de que violência é a destruição do poder (lembremos da definição de poder e violência de Hannah Arendt), tal como tem sido perpetrado contra mulheres.

Enquanto convocamos as mulheres do mundo para que se unam à luta feminista, essas mulheres que trabalham o dia inteiro em seus empregos, realizando várias jornadas de trabalho que envolvem também suas casas como oficinas da desigualdade doméstica, podemos sugerir aos machistas que esperem sentados em seus tronos de privilégios. Não perdem por esperar.

(1) Comentário

  1. A sociedade hipócrita, desde há muito tempo, criou e promoveu a idéia de que, entre o homem e a mulher, ela deve ser a parte mais fraca e que a mulher tem que viver submissa ao homem. Idéia totalmente absurda e de extrema boçalidade.
    Todo “homem” que agride uma mulher é um covarde complexado e recalcado, só agride quando sabe que ela é mais fraca do que ele e/ou que ela não irá reagir. – CDarte

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