Medeia, a memoriosa

Medeia, a memoriosa

Welington Andrade

“Adeus! Adeus! Recorda-te de mim!”
Hamlet, William Shakespeare.

O diretor Marco Antonio Rodrigues, o dramaturgo Sergio Roveri e os atores do grupo Folias fizeram Eurípides e Medeia despertarem de entre os mortos e se dirigirem diretamente a nós como se fossem nossos contemporâneos. Em Medeia: 1 verbo, que estreou no último dia 5 de setembro no Galpão do Folias, o tragediógrafo grego a quem se imputa o declínio da tragédia ática e sua, provavelmente, mais conhecida criação ficcional surgem em cena não como mortos sem sepultura, mas, sim, como dois cadáveres ilustres a quem o Ocidente prestou apressadas exéquias, já que ambos ainda têm muito o que dizer às plateias modernas. Áspero na forma pela qual desconstrói a bela tragédia que talvez muitos esperem ver e repleto de ranhuras no tocante aos significados históricos e sociais que deseja explorar, o espetáculo – absolutamente necessário em tempos deletérios como o nosso – fala de lembrar, silenciar, esquecer.

É admirável o modo como texto e encenação investigam o caráter “transistórico” do mito de Medeia, convertido em um belíssimo poema trágico por Eurípides em 431 a.C. A esse respeito, aliás, vale lembrar que na Introdução Geral à Crítica da Economia Política, Karl Marx se pergunta como é possível que a arte grega ainda cale tão fundo em nós, mesmo tanto tempo depois de as formas da vida social helênica terem se transformado, fazendo desaparecer as condições necessárias àquele tipo de criação: “Mas a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. Eis a dificuldade: elas nos causam ainda um prazer artístico e, de um certo modo, nos servem de norma, são para nós um modelo inacessível”. Assim é que Medeia: 1 verbo não dissimula a natureza transitória de uma obra pertencente a um contexto há muito ultrapassado ao mesmo tempo em que não negligencia a permanência dessa mesma obra através dos tempos, lançando-se avidamente em direção a sua transistoricidade.

A escolha do material metateatral aqui não poderia soar melhor. Primeiramente, pelo estatuto que a figura real do dramaturgo invocado ocupa na história do teatro. Considerado por Aristófanes o corruptor do teatro grego e o responsável pelo fim da tragédia ateniense, o subversivo Eurípides (“Não fui eu quem derrubou os valores tradicionais, e sim o vosso Estado” respondeu ele aos democratas de Atenas que o acusavam de impiedade) assim é descrito na História da literatura ocidental por Otto Maria Carpeaux: “Mas sem Eurípides o teatro moderno não seria o que é; Racine e Goethe são discípulos de Eurípides, que, através do seu discípulo romano, Sêneca, influenciou também profundamente o teatro de Shakespeare e o teatro de Calderón. Os próprios gregos não se conformaram com o ódio de Aristófanes; Aristóteles chama a Eurípides de tragikotatos, ‘o poeta mais trágico de todos’, superlativo que nos parece caber a Ésquilo. Na verdade, Eurípides é o Ésquilo de uma época incerta, de transição, como a nossa. Eurípides quase se nos afigura nosso contemporâneo.”

Em segundo lugar, pela complexidade de sentidos que caracteriza a construção da personagem ficcional que batiza a empreitada do Folias. Quem é Medeia? Uma estrangeira e uma “bárbara”, na acepção original do termo. E também um monstro, sem sombra de dúvida. Um monstro cuja sanha selvagem e irracional a aproxima tanto de nós. Transformada em presa nas mãos do homem que sofregamente amou, Medeia dirige todo seu furor criminoso àquele que é a negação de sua própria força, Jasão. Ao final da tragédia de Eurípides, após estar investida de toda sua potência demoníaca (na qual o poeta identifica uma natureza inelutável, portanto, trágica), ela vai às últimas consequências e triunfa, mas está paradoxalmente destruída, por ter sido levada a aniquilar aquilo que de mais criativo concebera, seus próprios filhos. Só lhe resta, então, subir em um carro alado e ir ao encontro da vacuidade e da carência dos espaços infinitos.

Mas a Medeia do Folias é a tragédia reescrita, para espanto tanto da plateia (convidada a um exercício bem mais ativo do que a confortável fruição de um texto clássico) como do próprio Eurípides (um tanto quanto deslocado no velho galpão onde veio parar). É o atravessamento da velha retórica ática rumo a um novo modo de dizer a perplexidade de tudo. Impossível não pensar em Heiner Müller (autor também de uma Medeia rediviva) em sua discussão sobre a pós-modernidade: “A primeira forma de esperança é o medo, a primeira aparição do novo, o espanto”.

Medeia: 1 verbo trata da violência sistêmica que acomete os tempos atuais, nos quais vamos alargando cada vez mais os limites do grotesco, os contornos da selvageria. Há algo de sujo no reino desta Corinto do aqui e agora, afirma o espetáculo, por meio da atmosfera de decadência que envolve o espaço cênico, mergulhado em constante semiescuridão. Poeira e objetos encardidos se insinuam aqui e ali naquele velho galpão, ampliando o sentido que se pode depreender do tom marrom e acinzentado dos figurinos. As grades colocadas ao fundo do palco indicam a prisão lúgubre e decadente onde Medeia está detida. Mas essa talvez seja a única referência realista da encenação, já que tudo mais convida à alegoria e à alusão. Os enunciados da peça falam da Medeia de outrora e de uma Medeia atual (que não sabemos muito bem de quem se trata), mas rememoram em certo momento a Joana de Gota d’água. A lembrança do dilaceramento do corpo do próprio Eurípides, devorado pelos cães do rei macedônio Arquelau, mistura-se à menção do corpo humano esquartejado, recentemente descoberto na região onde se situa o teatro. Outros crimes atuais também são evocados. Constantemente a voz dos atores é reverberada por um sistema de som que “mancha” a emissão vocal natural dos intérpretes. Ao texto que é dito por eles em dicção vertiginosa e contundente correspondem certas palavras gregas que Eurípides parcimoniosamente vai grafando pelas paredes do galpão. Programas de vários espetáculos em torno da figura de Medeia são espalhados pelo chão. Assim é que a encenação trabalha com a ideia de um estado de coisas a que chegamos após camadas e camadas sucessivas de acúmulo e deterioração. A sujeira, então, acumulada (o fato de Eurípides sair de um saco de lixo no início do espetáculo e retornar a ele ao final é altamente expressivo nesse sentido) aponta para esse lugar imundo onde o Folias quer estar para nos propor sua utopia em chave invertida. Etimologicamente, i-mundo é o caos, isto é, o espaço da negação do mundo (mesma negação, vale dizer, presente em i-rreal, i-rreflexo, i-rregular), correspondendo o vocábulo ao antônimo da palavra cosmos, de cujo campo lexical emergem o limpo e o organizado. Desse modo, a tragédia evocada pelo Folias não poderia soar mesmo cosmética, preferindo antes trilhar o caminho do impuro e do caótico.

O fato é que o público paulistano acostumado a uma teatralidade cada vez mais feérica e vivaz poderia se permitir deixar-se envolver pela atmosfera de fantasmagoria e morbidez que exala de Medeia: 1 verbo. Os fantasmas do Folias são da mesma nobre linhagem dos de Marx (“A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos”), Brecht (“como antes os espectros vinham do passado/agora da mesma forma do futuro”) e Müller (“A juventude hoje, fantasmas dos mortos/Da guerra que deve acontecer amanhã”), isto é, são figuras oscilantes entre o passado e o futuro que exigem consciência e memória, conforme aponta diligentemente Hans-Thies Lehmann em Escritura política no texto teatral: “Sem afundar na morte não há visão acertada sobre a vida. Sem ter presente, não há utopia”

A Medeia do Folias lembra em grande medida a figura do administrador Kurz, de Coração das trevas, de Joseph Conrad, cuja loucura é diretamente proporcional ao desvario do sistema colonialista do qual ele, de “eleito”, acaba por se transformar em vítima sacrificial. Há muito a humanidade vem erguendo barreiras contra o mal e a corrupção que espreitam cada um dos homens e que, em certo sentido, jazem disfarçados no fundo de todos nós. Tais barreiras costumam ser chamadas de casamento, família, amor maternal, religião, altruísmo… Entretanto, o que ocorre quando essas barreiras caem e a humanidade se encontra consigo mesma? Violência inexplicável? Brutalidade arrebatadora? Medeia e Kurz são os bárbaros que nos habitam (Bin Laden e os pais e mães assassinos de cada temporada também o são), daí o profundo interesse que temos por esses personagens cujos crimes são alvo de nossa atração e repulsa. O coro do espetáculo afirma: “O sangue dela é o meu”, enquanto Creonte, mesmo sabendo que “o tempo aproxima os iguais”, o repreende duramente (“O monstro que deixaste escapar”), sem se dar conta de que a etimologia latina não deixa dúvida: “monstro” é aquilo que se mostra. Portanto, a transformação de Medeia – de criatura a ser monstruoso – deve ser encarada por cada um dos espectadores, em cujo coração também repousam sombras e trevas.

Toda essa potencialidade de sentidos não estaria garantida, não fossem o empenho e o talento de cada um dos criadores aqui envolvidos. A direção de Marco Antonio Rodrigues explora essa miríade de signos com a preocupação de convertê-los rapidamente em elementos cênicos. Trata-se de um homem de teatro cuja grande bagagem intelectual (recomenda-se a leitura do belo texto de sua autoria publicado no programa da peça) está sempre a serviço da forma sensível. (À crítica cabe refletir sobre as ideias de Medeia; ao diretor cabe transformar tais ideias em um complexo feixe de estímulos sensoriais e nervosos – tarefa da qual Marco Antonio Rodrigues se desincumbe com espantosa naturalidade). O texto de Sergio Roveri prima pela engenhosidade da construção, seja pelas referências contextuais que habilmente articula, seja pelo belo registro linguístico em torno do qual se constitui, vazado em versos de uma cadência muito expressiva, a despeito de soar tão natural. O elenco, muitíssimo experiente, confere ao projeto a ousadia criativa necessária. Nani de Oliveira é uma Medeia de olhos injetados e autocontrole o tempo todo por ruir. A bela voz da atriz e sua estampa hierática nos dão a plena convicção de estarmos diante, sim, de uma Medeia exumada. O Eurípides de Gabriel (o ator não se deixa identificar por um sobrenome) é uma figura que oscila muito bem entre o espectral e o caricatural, entendido aqui como traço esfumaçado de uma criatura cujo contorno é levemente sugerido. Zé Geraldo Jr. empresta uma máscula energia a Jasão, em sua altivez, quase, inquebrantável. Dagoberto Feliz faz de Creonte um tipo sustentado por arrogância e cinismo. Que servem de ótimo contraponto para a Glaucia de Ana Nero, patética, seja em sua felicidade, seja em seus instintos de autodestruição. (A gaiola que serve de diadema à personagem e que a impede de praticar a autofagia é um verdadeiro achado cênico). O coro composto por Fábio Joaquim do Vale, Juliana Grave e Rafaela Penteado, que se desdobra também em pequenos personagens periféricos, não fica devendo nada aos demais atores – dada a energia criativa que emana da presença de cada um desses intérpretes.

Vale destacar o trabalho assinado por Tulio Pezzoni, responsável pela sutil, e indispensável, materialidade de som e luz. O uso da música grega antiga reconstituída nos dias de hoje acentua o movimento, algo impossível, de volta ao passado. O cenário de Flávio Tolezani e os figurinos de Fernando Fecchio, como já demonstrado, contribuem de modo decisivo para os campos visual e sensorial que se querem construir.

Ao final do espetáculo, após Medeia livrar-se da prisão, Creonte quer esquecer; e Eurípides, silenciar. Lembrar, então, talvez seja a ação que caiba a nós, espectadores. Lembrar de nosso trágico destino, como criaturas condenadas à eterna inconsciência a respeito de cada promissora progênie que costumamos assassinar.

Medeia: 1 Verbo
Onde: Gal­pão do Folias. Rua Ana Cin­tra, 213, Santa Cecí­lia
Quando: até 30/11. Sex­tas e sába­dos às 21h e domingo às 20h.
Quanto: R$ 40 inteira e R$ 20 meia-entrada. R$ 10 para os mora­do­res de Santa Cecí­lia
Info: (11) 3361–2223.

welingtonandrade@revistacult.com.br

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