Max Weber entre duas vocações

Max Weber entre duas vocações

Duas conferências manifestam a concepção weberiana, marcada pelas agitadas circunstâncias de época, das potencialidades efetivas da ciência e da política

Gláucia Villas Bôas

Se ainda hoje pairam dúvidas sobre as datas em que Max Weber pronunciou as conferências “Ciência como vocação” e “Política como vocação” – questionando-se se foram proferidas em 1918 ou consecutivamente em 1917 e 1918 – estudiosos de Weber concordam que as duas conferências foram dirigidas aos jovens estudantes alemães da Associação dos Estudantes Livres da Baviera, que convidou o mestre e promoveu os dois eventos na Universidade de Munique. Há também concordância quanto ao fato de que “Ciência como vocação” não deveria integrar os estudos metodológicos de Max Weber, nem “Política como vocação” sua obra política. Pelo conteúdo muito próximo das circunstâncias em que foram proferidas, as conferências seriam textos sobre questões da cultura moderna: a ciência e a política.

Ao comentar “Ciência como vocação” em palestra realizada na Universidade de Heidelberg em 1994,  Friedrich Tenbruck afirma que a conferência “não foi escrita para especialistas  e trata menos de ciência do que da situação espiritual das pessoas em uma civilização fundada na ciência. A conferência diz respeito à compreensão do homem moderno que deseja ganhar clareza sobre si e seu tempo”.  Talvez por isso a linguagem viva que distingue o texto prenda tanto a atenção do leitor e o recompense, diz Tennbruck.

A linguagem viva de que fala Tenbruck era bem diferente daquela que Weber usava em seus artigos e livros acadêmicos e, também, em palestras e conferências dirigidas ao público acadêmico e político. Wolfgang Schluchter aventa a hipótese de que as conferências “são textos filosóficos que pretenderam levar os ouvintes e, logo, os leitores a reconhecer fatos e encorajar a auto-reflexão, a fim de ganhá-los para esforços responsáveis dirigidos para uma causa realista”. A questão estaria definitivamente associada às circunstâncias históricas e à posição de Weber quanto à construção da nação alemã, que propugnava por um estado nacional moderno dependente da prontidão dos indivíduos de se engajar em tarefas que exigiam auto-renúncia e distanciamento.

Fatos históricos relevantes haviam modificado o destino político e geopolítico da Europa naqueles anos. O Segundo Império alemão sofrera uma grave uma derrota militar, enquanto a Revolução de Outubro fora vitoriosa na Rússia; desfizeram-se as monarquias e os impérios austro-húngaro, germano e turco-otomano. Pode-se imaginar o impacto desses acontecimentos, especialmente entre os estudantes profundamente envolvidos com a guerra, com suas carreiras e projetos de vida. Karl Löwith, que era um deles, e ouviu Weber, escreve, em suas memórias, que as formulações do sociólogo expressavam uma vida dedicada ao conhecimento e à experiência, parecendo por isso que vinham diretamente de dentro, enquanto a autoridade da personalidade de Weber lhes atribuía uma poderosa urgência. A maneira arguta de formular as questões combinava-se com a recusa a soluções fáceis. E embora Weber não deixasse sequer um fio de esperança, “qualquer um que o ouvisse sentia que no coração daquela razão clara repousava uma profunda e sincera humanidade”. Nem todos certamente concordam com a generosidade de  Löwith.

Os traços comuns às duas conferências não as configuram enquanto uma unidade. “Ciência como vocação” destacou-se e teve recepção bem diferente da conferência “Política como vocação”. Causou grande impacto, não só aos ouvintes, como aos leitores, depois de sua publicação em 1919, provocando uma polêmica apaixonada da qual fizeram parte Ernst Robert Curtius, Erich von Kahler e Arthur Salz, que eram do círculo de Stefan George, Ernst Troeltsch, Max Scheler e Heinrich Rickert, cujo tema era o papel da ciência no mundo moderno. O cerne do debate dizia respeito à necessidade de reafirmar uma unidade para a ciência e abandonar o relativismo frouxo de Max Weber, que pregava o politeísmo e a batalha dos deuses.

Participação na vida política

Durante os anos da Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, Weber ressurge na cena pública como orador político e volta, ao final daquele período, ao professorado na Universidade de Munique. Tinha 50 anos quando o conflito começou. Aderiu imediatamente à guerra e como não podia ir para a frente de batalha, apresentou-se para servir nas forças armadas, tendo recebido o posto de oficial de disciplina da Comissão de Hospitais Militares do Corpo de Reservas em Heidelberg. Trabalhou alguns meses na organização dos hospitais e em seguida absorveu-se inteiramente na sua pesquisa sobre as religiões mundiais.  Voltou ao escritório para escrever sobre a ética econômica das religiões, focalizando o confucionismo, o budismo e o hinduísmo. Paralelamente começou o esboço do que mais tarde se tornaria o livro Economia e sociedade (1922).

Contudo, não conseguia mais ficar apenas na mesa de trabalho. Ao mesmo tempo em que escrevia e buscava material para suas pesquisas, participava da vida política. A primeira vez que falou em público depois de suas sucessivas crises depressivas foi em Nuremberg para o Comitê Alemão Nacional para uma Paz Honrosa. Daí em diante fez várias conferências, tanto de caráter eminentemente político como também para a sociedade alemã de sociologia e outras instituições acadêmicas. Finalmente, foi convidado para ocupar uma cátedra na Universidade de Viena e, poucos meses depois, para a Universidade de Munique. Acabou aceitando o segundo convite. As conferências “Ciência como vocação” e “Política como vocação” foram feitas justamente nesse período entre os convites e sua decisão de ocupar uma cátedra na Universidade de Munique.

Weber tomou uma posição clara contra o pacifismo, a anexação de territórios e o pangermanismo.  Karl Jaspers o chamou de nationaler deutscher. Sua adesão a favor da construção de um estado nacional alemão não impediu que tomasse o partido da Monarquia até a fuga de Guilherme II.  Somente com o fim do Segundo Império e do governo monárquico é que Weber adere ao regime democrático. Tomou parte ativa na negociação dos tratados de paz e na reforma parlamentar, reabrindo paulatinamente seu ­diálogo com a juventude acadêmica.

Desde o final do século 19, mas, sobretudo, nos anos de guerra e reorganização da Alemanha após o conflito, uma associação de estudantes – a Associação Livre dos Estudantes – desempenhou um lugar de destaque na vida política. Essa associação lutava contra as tradicionais sociedades de estudantes que se fundavam em códigos de honra e cujos membros tinham uma posição privilegiada dentro das universidades.  A Associação Livre dos Estudantes levantara a bandeira da democratização do acesso à universidade e o fim dos privilégios. Considerava a universidade o locus privilegiado para a educação acadêmica e autoformação. Foram combatidos e acusados de serem a favor dos judeus, socialistas e comunistas. Finalmente, a Associação deu origem a vários diferentes grupos de estudantes, inclusive a Associação dos Estudantes Livres da Baviera, que fez a Weber o convite para lhes falar sobre ciência como vocação.

Weber era filiado a uma das antigas sociedades de estudantes chamada Allemania. Passou a fazer parte dela nos meses em que estudou Direito e Economia Política na Universidade de Heidelberg em 1912. Nos anos de 1917 e 1918, contudo, manifestou-se veementemente contra essas sociedades, que ainda se baseavam no duelo como forma de resolução de conflitos. Em sua conferência “Estudantes e política”, esclareceu que o sistema de exclusividade próprio daquelas sociedades, baseado no direito ao duelo era do tipo que tornava a democratização da universidade impossível, levando a um falso entendimento da posição dos estudantes. Considerou as sociedades incompatíveis com a nova forma de governo republicano, democrático e parlamentar que estava surgindo na Alemanha.  Solicitou o seu desligamento da Allemania.

“Ciência como Vocação” foi, portanto, proferida aos estudantes em um contexto de mudanças políticas e sociais profundas, e de rompimento de Weber com seus “aliados” da Allemania.

Como conciliar humanismo e especialização na universidade

Acuado diante da volta ao mundo acadêmico ou ao mundo da política, o que deveria Weber dizer aos jovens estudantes alemães naquela ocasião e o que pode interessar nos dias de hoje? Qual o sentido da conferência “Ciência como vocação”?

Para Wolfgang Schluchter, “Ciência como vocação” tem três expressões-chave: dever vocacional, auto-limitação e personalidade.  Max Weber quer mostrar aos estudantes que o trabalho intelectual enquanto profissão significa uma vida cheia de renúncia e não de reconciliação. O que mais causou mal-estar entre os estudantes, segundo o autor, teria sido justamente sua insistência na base ascética das ações profissionais. Elas não poderiam estar mescladas com ideais, sobretudo com ideais de ordem política. Profissão como autolimitação era a mensagem que Weber queria transmitir aos estudantes. Com o intuito de provar a base secular das profissões, Weber associa profissão e renúncia a um terceiro termo – personalidade.  Ele havia criticado o termo personalidade pelo seu caráter romântico e naturalista através do qual se procurava definir ou buscar o espaço sagrado de uma pessoa de maneira difusa e indiferenciada nas profundezas vegetativas da vida pessoal. Não acreditava que as personalidades eram características de gênios, e recusava a idéia romântica e esteticista de personalidade que a define como a busca de experiência direta e modelagem de uma vida como se fosse uma obra de arte.  Mas, se era assim, por que diz então que somente os jovens que têm personalidade poderão sobreviver com dignidade nos meios universitários? 

Para Weber, personalidade seria uma relação constante e intrínseca com certos valores e sentidos da vida que uma pessoa pode alcançar no desenrolar do seu destino, um processo que é ao mesmo tempo Bildung (formação). Ascetismo e individualismo humanista são valores que expressam o mais próximo que se pode dizer desse conceito de personalidade:  1) a personalidade é ascética porque está voltada para uma ação contínua e regular necessária para o  serviço de uma causa; 2) humanista porque o encadeamento das ações se dirige para valores últimos; e 3) individualista porque exige escolha que provoca um conjunto de decisões. Se essas condições são satisfeitas, a pessoa cria personalidade, pois descobre qual é seu demônio interior e passa a obedecer a ele satisfazendo as demandas do dia-a-dia.

Tenbruck, contudo, não compartilha dessa interpretação.  Para ele é importante observar que, em 1917, a palavra Beruf não tinha ainda o sentido exclusivo de profissão, porém “significa ainda o preenchimento de uma vida interior e não meramente os meios externos necessários para viver e ter sucesso”.  Na realidade, Weber acredita que a ciência como vocação exigia uma vocação interna. O fundamento da conferência, no que diz respeito à ciência como profissão/vocação, encontra-se em A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (1905). No livro, Weber demonstra como no protestantismo o trabalho (Arbeit) perde o estigma de obrigação para a sobrevivência e passa a significar profissão (Beruf), uma vez que Deus chama o crente para servir sua obra no mundo.  Para Tennbruck, contudo, à época de Max Weber, a universidade alemã estava passando por transformações que concerniam à especialização, divisão das disciplinas, pesquisas empíricas ligadas ao desenvolvimento e ao progresso dos meios de vida. Para fazer frente às mudanças, a ciência torna-se um importante Beruf, uma profissão que o cientista abraça apenas se tiver sido “chamado” intimamente.

Além disso, Tenbruck chama a atenção para o fato de que, na virada do século, a crença na ciência estava abalada. Na França, os escritos de Renan e Bergson davam provas do questionamento da ciência. Para que futuro leva a ciência? Na Alemanha, diz ele, permanecia o ideal da Bildung durch Wissenschaft (formação através da ciência), apesar dos duros golpes que os portadores dessa posição recebiam, sobretudo no âmbito das ciências do espírito. A crítica à ciência veio com Nietszche, que combateu o racionalismo e o intelectualismo, porém, diferentemente de seus contemporâneos franceses, teria proposto uma nova ciência, uma inversão dos valores e confiava essa missão aos jovens.

Mas o cerne da conferência estaria ainda na pergunta “qual o sentido da ciência?”.  Weber teria expressado dramaticamente, segundo Tenbruck, sua dúvida radical com relação ao sentido da ciência. A ciência exigia o fim das ilusões de sentido, uma vez que estava intimamente ligada ao progresso e o progresso não tinha fim; renovava-se nele mesmo. Quem ajuíza que Weber teria simplesmente feito um elogio a uma ciência livre de valores estava enganado. Ele não havia restringido a ciência a um mero exercício empírico, fortalecendo seu caráter racional. O que estava em jogo agora era de fato o sentido da ciência. Para Tenbruck, a ciência, na acepção de Weber, não oferece sentido nem à vida pessoal, nem ao mundo.  A conferência trazia mais perguntas do que respostas.  

Em “Ciência como vocação”, Weber questiona mais uma vez o surgimento da profissão e da especialização no mundo da cultura e de uma ciência livre de valores. Como combinar a formação (Bildung) com os rigores e limites de uma especialização no âmbito das universidades?  Essa questão perpassa o seu pensamento e sua obra. Quanto à “novidade” do tom dramático com que se refere ao problema, isto sim talvez possa ser compreendido pela dúvida de Weber em voltar para o mundo acadêmico para o qual muitas vezes dizia que não era “talhado”, ou dirigir o sentido de seu dever para a ação política, sabendo de seu insucesso como homem político, desligado dos partidos e defensor da ética da responsabilidade que não empolgou os políticos nem tampouco os estudantes que o ouviram na Universidade de Munique.

Tipo ideal – Contribuição importante para consolidar a sociologia e o arcabouço teórico da disciplina, os tipos ideais são ferramentas de análise para compreender a sociedade a partir de seus elementos constitutivos como religião, economia, burocracia, capitalismo, e a partir da observação de aspectos concretos e históricos. São generalizações “puras” que o cientista social, por sua vez, utiliza na sua pesquisa dos fenômenos sociais. Para Weber, como a total apreensão da realidade seria impossível, o recurso aos tipos ideais torna-se indispensável.

Gláucia Villas Bôas é professora de sociologia da UFRJ e autora do livro A recepção da sociologia alemã no Brasil (Topbooks)

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