Marisa Letícia, uma filha do Brasil
Marisa Letícia na Marcha das Mulheres em São Bernardo do Campo, em 1980 (Foto: Hélio Campos Mello)
Na cozinha de uma casa no Jardim Lavínia, em São Bernardo do Campo, um grupo de mulheres trabalha sobre tecidos, tintas e telas. São vizinhas, irmãs e companheiras de partido de Marisa Letícia, que lidera a produção de camisetas para a campanha do marido ao governo do Estado de São Paulo, em 1982. Dali saem 200 peças por dia, em modelos variados. Na mais famosa, a palavra “optei” aparece em vermelho e preto, as letras “P” e “T” na cor do recém-fundado Partido dos Trabalhadores.
Não era a primeira e nem seria a última vez que a dona de casa se engajaria nas empreitadas políticas do companheiro. Da eleição de Lula à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em 1975, até a chegada ao Palácio do Planalto, em 2002, Marisa acumularia diversas funções, além de mãe de quatro filhos e chefe da casa dos Lula da Silva.
“Era muito disciplinada. Perguntava: ‘o que precisa ser feito? Broche, camiseta, bandeira, levantar recurso para construir a sede do PT? Então vamos fazer’”, afirma Camilo Vannuchi, autor da biografia Marisa Letícia Lula da Silva, lançada em fevereiro pela Alameda Editorial.
Entre o final de 1970 e início de 1980, Marisa foi às ruas em busca de assinaturas para a fundação do PT. Ouviu demandas de possíveis eleitores e planejou bingos para arrecadar fundos para o partido. No dia 8 de maio de 1980, puxou uma grande marcha de mulheres no centro de São Bernardo do Campo pela libertação dos sindicalistas presos na greve dos metalúrgicos daquele ano, liderada por Lula.
Mas a política não fluía naturalmente para a mulher nascida na zona rural de São Bernardo, e não foi sem resistência que Marisa permitiu que aquela se tornasse a vida de sua família. Filha de benzedeira, sabia desde cedo como era ter a casa cheia de estranhos, e temia pelo fim de sua privacidade. Sentia-se sobrecarregada com as tarefas domésticas, preocupava-se com a segurança familiar e com a possibilidade de os filhos crescerem sem um pai presente.
“Após a prisão de Lula em 1980 e o curso na Pastoral Operária, ela percebe que a opção do marido era um caminho sem volta”, conta o frade dominicano Frei Betto, que no mesmo ano de 1980 propôs uma série de encontros voltados à politização das mulheres dos operários.
Semanalmente, no salão paroquial da Igreja da Matriz, Frei Betto falava a elas sobre conjuntura econômica, inflação, relações trabalhistas e sobre temas como direitos humanos, reforma agrária e ditadura militar. À medida que Marisa comparecia às reuniões, mais mulheres se animavam a participar.
“Outras eram até mais engajadas, mas Marisa se torna referência porque é mulher do principal líder”, afirma seu biógrafo. Os encontros tiveram muita influência na formação política de Marisa, que ainda menina aprendera com o pai a evitar esse tipo de discussão. O agricultor não gostava nem que os filhos comentassem o tema dentro de casa.
Décima entre onze irmãos, Marisa nasceu em 1950 em uma casa de taipa sem energia elétrica, onde os pais plantavam batata, cenoura, abóbora; criavam porcos, galinhas e patos. Foi babá dos 9 aos 13 e operária em uma fábrica de bombons antes dos 14 – idade em que abandonou os estudos. Quando completou 20 anos, pediu demissão para se casar com seu primeiro namorado. Pouco tempo depois, grávida de quatro meses, recebeu a notícia de que ele tinha sido assassinado.
Já era viúva havia três anos quando pisou no Sindicato dos Metalúrgicos pela primeira vez e foi ali que conheceu Lula, então primeiro-secretário. Era verão de 1973 e ela precisava de um documento para um dos irmãos, que não podia mais trabalhar devido ao vício em álcool. Lula também era viúvo e, desde o momento em que colocou os olhos na “galega”, não passou um dia sem insistir no relacionamento. O casamento aconteceu no ano seguinte.
Dali em diante, a política seria parte inevitável da vida de Marisa. Ela ainda tentou, sem sucesso, dissuadir o marido da ideia de se candidatar à presidência do sindicato em 1975 e depois em 1978 – ele agora era pai e precisava passar mais tempo dentro de casa. Lula passava doze horas por dia no sindicato.
Fábio nasceu um mês antes da primeira eleição sindical do pai, e o irmão, Sandro, após a segunda. Lula não estava na maternidade em nenhum dos dois nascimentos, e nem esteve no do terceiro filho do casal, Luís Cláudio, em 1985. Naquele ano, ele rodava o país para formar diretórios do PT e apoiar candidaturas locais. Após a derrota nas urnas em 1982, quando foi candidato a governador, elegeu-se deputado federal pelo PT em 1986.
Durante a campanha, Marisa ajudava a fazer a agenda do marido, organizava a entrega de materiais de divulgação, recebia pessoas, cuidava da casa e dos quatro filhos, o mais novo de um ano e meio. Na biografia, Camilo Vannuchi conta que, em quatro meses, “15 mil camisetas foram impressas nas pranchas de Marisa”. “Era muito inteligente e curiosa. Falava pouco, mas estava sempre ligada. Dava muitas sugestões ao Lula, tinha esse papel de conselheira extraoficial.”
Era comum que Lula saísse de uma reunião com uma decisão e voltasse na manhã seguinte com outra – fosse como líder sindical, deputado ou presidente da República. “As falas de Marisa eram sempre nessa linha: ‘o que o trabalhador vai achar disso? Você falou com catadores, com alguém da indústria de plástico?’”, conta Vannuchi. Ela foi uma das primeiras pessoas a dizer ao marido sobre a necessidade de abrir diálogo com os evangélicos.
Quando Lula perdeu as eleições para Fernando Collor em 1989 e pensou em desistir da carreira política, ela o convenceu a continuar determinado, ainda que aquilo significasse ver sua família no centro da máquina de difamação que voltava a funcionar a cada campanha eleitoral, desde 1982.
Naquele ano circularam boatos de que Lula morava em uma mansão no Morumbi. Na disputa contra Collor, diziam que o metalúrgico tinha decepado o próprio dedo para se aposentar por invalidez e que, se chegasse ao poder, fecharia igrejas e tomaria bens da população. A equipe de Collor pagou uma ex-namorada de Lula, que gravou um depoimento afirmando que o candidato oferecera dinheiro para que ela tirasse a filha que tiveram juntos, Lurian.
Marisa evitava dar entrevistas e manifestar-se publicamente. Tinha medo de atrapalhar o marido, repetia que era só uma dona de casa, não uma pessoa pública, muito menos candidata a nada. O receio dos holofotes permaneceu durante o período no Palácio da Alvorada, de 2002 a 2010, e Marisa preferiu não assumir nenhum cargo oficial.
A Constituição não especifica as funções da mulher do presidente, mas é comum que elas adotem uma causa. Ruth Cardoso coordenou um programa de alfabetização de jovens de 12 a 18 anos, por exemplo, e Sarah Kubitschek fundou uma iniciativa social voltada para crianças, mães e mulheres grávidas.
“Marisa temia a obrigação de, ao estar à frente de uma atividade, ter que fazer discursos, dar entrevista. Nunca se sentiu segura para dar esse passo”, conta Frei Betto. As mulheres do partido se frustravam com a opção da primeira-dama. Nos bastidores, Marisa permanecia ativa, sempre inteirada das decisões do marido, aconselhando-o e manifestando suas opiniões.
Como primeira-dama, lidou ainda com comentários preconceituosos sobre sua origem: diziam que ela não daria conta de limpar todas as janelas do Palácio da Alvorada. Marisa não se sentia confortável em Brasília. Trocaria qualquer agenda oficial por um fim de semana com os filhos e netos, de preferência à beira de uma lagoa, entre plantas e bichos.
Em 2005, ela decidiu comprar uma cota de participação do condomínio Mar Cantábrico, da Cooperativa Habitacional do Sindicato dos Bancários de São Paulo, de olho em uma casa na praia. Também aceitou, em 2010, compartilhar com Jacó Bittar, conselheiro do fundo de pensão da Petrobras, um sítio que ele compraria em Atibaia com a intenção de juntar as duas famílias nos fins de semana. Eram amigos fazia mais de 30 anos e Marisa se animou com a ideia. Opinou sobre os rumos da reforma a fim de surpreender Lula no fim do mandato.
Em setembro de 2016, ambos tornaram-se réus nas investigações da Lava Jato. A suspeita era de que Lula recebera vantagens indevidas de empreiteiras como OAS e Odebrecht em troca de favorecimentos em contratos com a Petrobras. As obras no sítio em Atibaia e a reforma em um apartamento no Guarujá estariam entre elas. No caso do triplex, Marisa é acusada de lavagem de dinheiro.
“A ideia de que atitudes dela pudessem causar perseguição aos filhos e uma possível prisão do marido passa a ser aterrorizante”, afirma Vannuchi. De volta a São Bernardo, Marisa dobra a quantidade de cigarros e de bebida, passa os dias aflita e isolada em casa. Para se distrair, borda, faz sabão e troca mensagens pelo WhatsApp.
Em 24 de janeiro de 2017, é vítima de um AVC hemorrágico, decorrente do rompimento de um aneurisma diagnosticado no primeiro governo Lula. Morre nove dias depois, aos 66 anos, antes de ver o marido ser carregado por uma multidão para fora do sindicato dos metalúrgicos no dia de sua prisão.
Para Vannuchi, a presença de Marisa em centenas de viagens de campanha e em cima de palanques do PT permitiu que mulheres se identificassem com o partido, hoje o maior da esquerda latino-americana. “A eleitora passa a confiar no PT porque a Marisa está ali.” Ele diz que, no lançamento do livro em São Bernardo, muitas mulheres o abordavam para falar de Marisa. “Elas percebiam que ela era essa pessoa que dialogava com outras mulheres, sem achar que elas não eram importantes.”
Neta de imigrantes, filha de agricultores, dona de casa advinda da classe trabalhadora, teve uma história de vida semelhante à de muitas da sua geração: “Se Lula é considerado um ‘filho do Brasil’, Marisa também é”.