Interlocução entre a cena e a crítica

Interlocução entre a cena e a crítica

 

O espetáculo Abnegação 2 convida a crítica a dialogar com o próprio autor do texto e um dos diretores do espetáculo.  Leia abaixo textos de Welington Andrade e Alexandre Dal Farra.

SOBRE SENTIDOS RESSENTIDOS, por Welington Andrade

 

Abnegação 2, de Alexandre Dal Farra, volta ao cartaz no Armazém Cultural em Pinheiros. A mais recente montagem do grupo Tablado de Arruar, dirigida pelo próprio autor em parceria com Clayton Mariano, é uma peça de teatro que causa profundo mal-estar. Não somente pela brutalidade do que comunica, como também pela forma com que brutaliza a prontidão política do espectador. Tomada como linha de força de texto e encenação, a exploração nua e crua de uma atmosfera de insólita violência parece um tanto quanto problemática, exigindo debate e reflexão. Assim, estimulado pela advertência de Walter Benjamin, que no fragmento “A tarefa do crítico” menciona “a terrível e idônea ideia de que a ‘opinião própria’ é a qualidade indispensável ao verdadeiro crítico”, o presente texto convida o dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra a dialogar com algumas das opiniões aqui expostas, ora buriladas pela pretensiosa goiva do argumento, ora vazadas em pura e simples perplexidade, diante da qual, então, a crítica se sente impotente para avançar sozinha na compreensão do espetáculo.

A peça é organizada em torno de dois núcleos temáticos: o primeiro deles recria livremente, em ordem cronológica, a série de eventos que teriam levado, em janeiro de 2002, ao assassinato do então prefeito de Santo André, Celso Daniel, uma das grandes apostas de liderança política do Partido dos Trabalhadores, morto, segundo certas versões, em virtude de querer dar cabo do esquema de desvio de verbas que ele mesmo teria ajudado a criar para fortalecer o projeto de poder do PT; o segundo núcleo reúne cenas dispersas que envolvem alguns personagens expostos à impiedosa violência que grassa, gratuitamente, nos principais rincões do país.

(Foto: Bob Sousa)

Ambos os núcleos não se relacionam diretamente na encenação, que opta por reservar a cada um deles uma área determinada no espaço cênico e investi-los de características próprias no tocante ao registro discursivo da peça, características estas que irão, por sua vez, determinar o estilo de interpretação dos atores. Enquanto na esfera da trama política passada na região do ABC, a virulência das palavras proferidas pelos personagens corresponde quase sempre ao seu respectivo descontrole físico e emocional – sendo tudo vivido do meio do palco para o proscênio; no ambiente das cenas de fundo, instaura-se uma acentuada estilização, que leva os personagens a comunicarem entre si coisas terríveis sem praticamente se mexer ou tocar nos corpos uns dos outros. Nos dois casos, à palavra é reservado um grande destaque, constituindo Abnegação 2 uma espécie de peça sui generis em que selvageria e coação surgem de modo obstinado, mas disfarçadas a todo momento de mero jogo de conversação.

A despeito de direção e intérpretes se empenharem muito bem para garantir a potência e a contundência (racionalmente desejadas) do espetáculo, bem-realizado, sem sombra de dúvida, do ponto de vista estilístico e formal, emana dele em direção à plateia um indisfarçável mal-estar – a ser compreendido de muitos modos, variáveis de acordo com a experiência do espectador. A tentação de querer advertir os realizadores da empreitada quanto aos riscos ideológicos, implícitos e explícitos, contidos nela é bastante grande, mas tal atitude somente escamotearia a possível verdadeira vulnerabilidade do projeto, revelando sobretudo quão vulnerável seria a própria posição ideológica assumida pelo autor de tal advertência. Assim, não é porque a peça – lida em chave extremamente conservadora – pode vir a alimentar o famigerado ódio contra o PT, que a cada dia se converte em patologia social das mais agudas, que ela é uma realização problemática. De modo algum, embora haja na própria natureza desse mecanismo alguma coisa deveras questionável, segundo o ponto de vista adotado aqui.

(Foto: Bob Sousa)

A unidade temática de Abnegação 2 e a polaridade fabular sobre a qual a peça é construída soam redutoras. Tudo gira em torno da crueza presente tanto no plano político como no plano social, explorando texto e encenação tais emanações de crueldade à exaustão. Logo o espectador se dá conta de que foi arremessado para dentro de uma estrutura circular, fechada sobre si mesma, retroalimentada por indícios de violência vividos alternadamente pelos atores entre os registros corporal-sinestésico e discursivo. Esgarça-se a violência e atinge-se o patético. (Em vários momentos, muitos espectadores riem diante de cenas marcadamente desagradáveis). Se, para William Blake, a estrada dos excessos conduz ao palácio da sabedoria; aqui, diferentemente, os caminhos barrocos parecem levar somente à muralha do maneirismo. Não há compreensão alguma – somente choque. E é à natureza de tal experiência de choque que se imputa um caráter de irracionalismo angustiante, perturbador.

Não se defende aqui a via do esclarecimento dialético de tipo brechtiano como a única possibilidade de realização estético-política no teatro. Fosse assim, Zé Celso Martinez Correa não teria feito um coro com máscaras de Brecht dialogar de modo tão apolíneo com as figuras dionisíacas de Para dar um fim no juízo de Deus, de Antonin Artaud. Se, para Artaud, por exemplo, submeter os velhos sentidos a um impiedoso tratamento de choque faz surgir novos e insuspeitos sentidos – desagradáveis e grotescos e, por isso mesmo, libertadores; para a mais recente criação do grupo Tablado de Arruar, escandalizar um sentido já em si previsível – o excessivo respeito à dramaticidade da fábula não parece diferir do modo como a indústria cultural costuma se apropriar dela – produz um tipo de politicidade bastante ressentida.

(Foto: Bob Sousa)

Abnegação 2 não parece querer investir em nenhuma saída: o ressentimento contra o que aconteceu com a utopia petista é o ponto de partida e o ponto de chegada do espetáculo, que em grande medida fica preso pura e simplesmente ao rito do bode expiatório, exposto por René Girard, sem procurar investigar o mecanismo por detrás dele. De ritos e mitos não mediados pode exalar uma teatralidade algo fascinante, mas em si mesma profundamente conservadora. Uma das mais angustiantes narrativas de Kafka (autor com cuja obra Alexandre Dal Farra, em um de seus textos recentes, O filho, estabeleceu uma portentosa interlocução) – Na colônia penal –, veicula também uma violência atroz. Mas ela é capaz de produzir um forte ruído sobre nós a partir da assimetria entre forma e conteúdo (“Sabe-se que o impacto da prosa kafkiana deriva em grande parte do choque entre a notação quase naturalista do detalhe e o conjunto da fantasmagoria narrada, momento em que esta adquire aos olhos do leitor a credibilidade do real”, afirma Modesto Carone a respeito da obra do autor de A metamorfose), da qual emerge, pela via da linguagem realista, a consistência do acontecimento fabular.

Da fábula tão realisticamente explorada por Abnegação 2 parece emergir somente a consistência do acontecimento real. Com que finalidade, então, dramaturgo, diretores e intérpretes desejam nos colocar diante dele? De que nos adianta empunhar esta espécie de manual da destruição de certa utopia, se ele somente nos ensina a destruí-la do mesmo modo violento com que a comunicação de massa já a havia aniquilado. O escândalo aqui não produz conhecimento algum, preferindo, antes, reforçar, melancolicamente, o puro ressentimento que dia após dia vai tomando conta de todas as esferas da vida social. Por que razões, então, a arte do teatro estaria se aproveitando dele?

(Foto: Bob Sousa)

FALAR SOBRE O QUE DÓI, por Alexandre Dal Farra

O convite ao diálogo é por si só um movimento antiautoritário que permite um vaivém a meu ver crucial (e raríssimo), entre autor e crítico. Por isso é de fato uma honra o convite feito pelo crítico Welington Andrade, para que eu escrevesse um texto a ser colocado em diálogo, a partir do seu olhar sobre a peça Abnegação II – O começo do fim. Apesar disso, preciso dizer também que fico em uma situação delicada, porque não posso falar sobre o que a minha própria peça gera em alguém. Vou tentar lançar um olhar sobre alguns pontos do que entendo que está nesse trabalho, e do que vejo em relação ao que ele envolve politicamente. Espero poder com isso contribuir para o diálogo e desde já agradeço imensamente a abertura desse espaço.

Teoria e prática

O filósofo, citado na epígrafe do texto de Andrade, Slavoj Zizek, tem um ponto de vista que me é bastante caro em relação ao estatuto da ideologia na atualidade. Segundo ele, nos dias de hoje, a ideologia não opera mais pelo falseamento no campo das ideias, mas sim, no campo da vida real – a falsidade não está na teoria, mas, na prática. Ele formula, nesse sentido, que, embora saibamos que uma ilusão estrutura a nossa realidade, seguimos agindo como se não soubéssemos disso. Ou seja, existiria, na sociedade atual, uma espécie de ponto de partida cínico no lugar ocupado pelo sujeito. A ilusão não está nas nossas ideias (estas são, ao contrário, hiper-conscientes de si mesmas, críticas, muito espertas e contemporâneas). Ao contrario, a ilusão está localizada na nossa prática, na própria forma como vivemos, no que fazemos concretamente, na maneira como, na vida, reproduzimos aquilo tudo que no campo das opiniões refutamos com toda tranquilidade.

Em um terreno como esse, pensar de maneira crítica não parece ser o maior desafio, mas sim, agir de maneira crítica. O pensamento, como ocorre na psicanálise, ou no caso da análise de conjuntura, não pode ser medido simplesmente pelo seu valor absoluto, pela sua verdade em si mesmo, mas sim, pela sua capacidade de se inserir na vida, e modificá-la. Mas quando o pensamento dá esse passo em direção à realidade, quando procura se inserir na esfera da prática, há, nessa passagem, imenso risco. Por isso, tal movimento do sujeito em direção à vida, à ação, é, por excelência, ético – no sentido que Lacan confere à palavra, ou seja, trata-se de assumir os riscos: a atitude ética é aquela que corre o risco de agir sobre a realidade, e que se fia em si mesma para essa ação (e não em outrem). Nesse sentido a postura talvez antiética por excelência seria a daquele que se fia em outrem para realizar a sua ação e, com isso, evita o risco, evita colocar-se. Mas, também não é ético o ponto de vista da análise exterior, talvez até mesmo correta, mas que se propõe a ser um olhar externo, quase neutro, e que, por sua exterioridade, tampouco corre risco algum de se sujar na realidade, de tornar-se ação. (Talvez, pelo contexto em que o texto está publicado, valha a pena frisar a evidência de que não estou neste momento acusando subterraneamente a atitude do texto de Andrade, já que ele justamente faz o inverso disso, ao colocar-se e, em seguida, propor-se a abrir um diálogo). Essa análise correta, porém, externa (por isso confortável) foi algo que quis evitar claramente na peça. Pois bem. Mas a busca por uma ação ética nos coloca, assim, uma dificuldade, qual seja: como agir sobre a esfera do fazer? Como ser capaz de fazer com que o universo simbólico (artístico) se insira no terreno da realidade, da própria vida, e não fique recluso à esfera das opiniões, dos saberes, com que lidamos com tanta facilidade, mas que deixaram de ter qualquer importância frente à vida em si, já que, com Zizék, somos cínicos o bastante para acharmos tudo o que quisermos, desde que continuemos agindo como se não soubéssemos?

(Foto: Bob Sousa)

Neste sentido, o que mais me interessa no que se tem denominado performatividade no teatro se refere, penso, justamente a essa questão. Em um momento em que o cinismo geral da sociedade como um todo dificulta mais e mais que o pensamento e que a esfera simbólica se introduza no terreno da ação, na prática, porque o que pensamos independe cinicamente do que vivemos, a performatividade parece ser justamente uma das possibilidades de, quando ela consegue se instaurar na sua potência desagregadora, inscrever o fazer teatral no âmbito da realidade, quebrar a barreira que estrutura o cinismo, juntar momentaneamente o simbólico ao concreto da vida, em uma espécie de curto-circuito entre as esferas real e simbólica, que gera deslocamento, e por isso, dor. Um exemplo disso é quando um ator realmente bebe meio litro de cerveja até quase vomitar antes de falar determinado texto, ou quando um outro ator enche a cara de farinha, impossibilitando-se de ver e mesmo de respirar. O porém aqui é para que esse gesto de imanência absoluta da cena tenha o impacto que se propõe a ter, o espectador precisa estar disposto a se mover também, por mais mal-estar que isso cause, do contrário, a proposta simplesmente fica impossibilitada de ocorrer.

Medusa versus medusa

Para entrar na peça em si, gostaria de falar sobre as cenas que Welington denominou de fundo. Creio que falando delas poderei apontar algo sobre a peça como um todo. Para mim, nessas cenas, trata-se antes de tudo de investigar uma maneira determinada de lidar com o horror, e com o medo que dele decorre, com a sua força petrificante. Ítalo Calvino em seu Seis propostas para o próximo milênio expõe belamente a forma como a leveza era para ele crucial na lida com o horror, lembrando do mito da medusa, e da maneira como ela é morta: “Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho”. Penso que, aqui, trata-se justamente do caminho inverso. Pensando o horror (que aqui se refere a determinados fatos reais) como essa espécie de medusa que, quando olhada de frente, petrifica, como seria se experimentássemos justamente encará-la, olhá-la de frente, mas, não por meio do semideus Perseu, e sim por meio de uma outra medusa? O que ocorreria em tal encontro? Tornar-se-iam ambas pedra? Mas como se daria esse processo, e, mais importante, o que ele geraria enquanto ocorresse?

(Foto: Bob Sousa)

HOMEM 2 –

O foda de sair da cadeia é que às vezes a gente fica tempo demais sem comer ninguém. Eu, por exemplo, estou com tesão o tempo todo.

MULHER –

Ah, é?

HOMEM 2 –

É. Outro dia eu peguei uma menina que estava subindo ali. Meti o pinto nela.

HOMEM –

Já está namorando então?

HOMEM 2 –

Não, ela não queria na hora, então eu tive que forçar um pouco, sabe? Mas ela cedeu rápido. Foi só dar um soco na cara. Ela era bem pequena.

MULHER –

Era uma criança?

HOMEM 2 –

Acho que sim. Eu não sei a idade dela. Mas foi muito gostoso. Elas sempre dão esses gritinhos e você enfia o pau com força, é como se estivesse cortando ela no meio. É muito gostoso.

HOMEM –

Deve dar um tipo de prazer, né?

HOMEM 2 –

É muito gostoso.

Pausa.

Eu estou precisando de dinheiro.

MULHER –

Ah, é. Espera, eu tenho… Cinquenta reais…

HOMEM –

Eu tenho vinte aqui…

HOMEM 2 –

Não, eu preciso de bem mais do que isso… Algum de vocês tem carro?

HOMEM –

Eu tenho…

HOMEM 2 –

Então me dá o carro.

HOMEM –

Mas… É meu…

HOMEM 2 –

Ah, mas não pensa assim. Pensa que é meu agora. É melhor.

HOMEM –

Mas eu comprei… Ainda estou pagando as prestações…

MULHER –

Pega o carro de outra pessoa.

HOMEM 2 –

O quê? Ah, mas tanto faz! Para mim dá na mesma se é seu ou de outra pessoa. Nem é mais seu, de qualquer forma. Eu quero o carro.

(Foto: Bob Sousa)

A meu ver, neste trecho por exemplo (essa proposta se repete em todas essas cenas) o central não é a representação que ela faz de determinada questão social (como Andrade coloca, sobre a violência que grassa nos rincões do país). Parece-me, antes, que o dispositivo que se investiga aqui não pertence ao terreno da representação de determinado assunto, mas sim, da própria relação entre forma e conteúdo. Trata-se justamente de, com Agamben, profanar a própria forma com que se trata a questão, pois a cena trata a violência justamente a partir de uma lógica em si mesma violenta. Ou seja, propõe-se uma espécie de curto-circuito, em que o material e a forma se igualam, fazendo com que, em algum ponto, se anulem mutuamente, ou se somem, a depender inclusive de quem vê, provocando o riso e o horror, às vezes de maneira simultânea. Forma e conteúdo se unem, então, produzindo uma espécie de efeito de condensação, em que significado e significante se referem mutuamente, e a cena se fecha sobre si mesma, como que se implode. Ou seja, este experimento é antes de tudo uma investigação que pertence à esfera da cena, uma tentativa de responder à pergunta sobre maneiras possíveis de lidar com o horror. Assim, creio que não se trata aqui, de forma alguma, de um tipo de retrato cru da violência dos rincões do país, como salvo engano a crítica sugere, mas sim, de criar cenas em que tanto a forma quanto o conteúdo se unam sob uma mesma lógica, e investigar os diversos efeitos e possibilidades dessa condensação, enquanto caminho para lidar com o horror. A tentativa de tratar o horror com as próprias ferramentas fornecidas por ele, ou seja, a busca de neutralizá-lo a partir das suas próprias armas, é o que as cenas investigam: experimentar lidar com a violência não a partir de um contraponto, mas a partir de uma linguagem também violenta na sua própria lógica.

Esse encontro entre uma linguagem perversa e um conteúdo também perverso, para mim, se relaciona ainda, enquanto questão, a algo de profundamente brasileiro. A perversidade já foi pensada muitas vezes como sendo uma das bases da nossa sociabilidade, e podemos pensar em um antecedente artístico para este ponto de vista no conto A causa secreta, de Machado de Assis (e mesmo em grande parte da sua obra). Creio que o que reverbera naquele conto é, de alguma forma, ainda o que reverbera aqui – um tipo de Brasil profundo, daquele que tortura um rato com fogo àquele que arranca os olhos da mãe; aqui, no entanto, tornado forma e conteúdo.

(Foto: Bob Sousa)

Calar-se sobre si mesmo diante do medo do outro

O caso do assassinato do ex-prefeito Celso Daniel, que serviu de base para a criação da peça, ainda está em aberto. Trata-se de uma espécie de ferida aberta, da qual, no entanto, simplesmente não se fala. Existem duas principais linhas de interpretação para o assassinato. Uma, a da polícia, defendia grosso modo que se tratava de um crime comum, em que os sequestradores teriam se enganado ao capturar o prefeito, e o assassinato teria ocorrido por conta de uma falha na comunicação entre os bandidos: o chefe do bando teria dito para aqueles que estavam com a vítima, que ele deveria “se livrar” do prefeito, e os algozes teriam interpretado a mensagem erroneamente. Ou seja, tratar-se-ia de um equívoco linguístico. Inúmeras evidências indicavam que tal versão havia sido forjada. O acusado original pelo assassinato não foi sequer capaz de reconhecer a vítima (mas foi indiciado da mesma forma à época), os depoimentos dos envolvidos não combinavam entre si, etc. (  Me baseei em diversos artigos sobre o crime, a maioria deles disponíveis na internet. Os materiais adicionais que busquei foram o inquérito e parte do material sobre o caso gerado pelo Ministério Público. Aqui está um resumo relativamente completo).  O Ministério Público (são dele as certas versões que Welington menciona) abriu uma nova investigação e concluiu que havia fortíssimos indícios de que o assassinato se relacionava a uma polêmica em relação ao esquema de desvio de verbas que funcionava em Santo André naquele período. Segundo o MP, tratava-se de uma retaliação ao fato de que o prefeito estava ameaçando de alguma forma tal sistema, que envolvia caixa dois, propinas e assim por diante. Esta tese só não foi totalmente comprovada porque não se conseguiu provas suficientes para indiciar o segurança do ex-prefeito e seu amigo Sérgio Sombra como mandante do crime (ele seria a ponte concreta entre os dois pontos: o assassinato e o esquema de desvio), pois que estava envolvido no esquema de desvio, e, caso fosse provado, teria sido também o mandante do crime, unindo as duas pontas. A razão para que não se tenha conseguido as tais provas reside em que sete potenciais testemunhas dessa ligação foram assassinadas ao longo do processo de investigação, de forma que nunca puderam chegar a depor. Trata-se realmente de uma série bastante grande de coincidências, que alimentam que a versão do MP seja realmente muito plausível. Para exemplificar, uma dessas testemunhas, o então detento Dionísio Severo, afirmou ter provas da dita ligação. Segundo o que consta, quando ele se propôs a prestar depoimento, foi transferido de prisão, para um presídio onde a facção rival à sua estava no controle. Ao adentrar a sala onde realizaria finalmente o seu pronunciamento em juízo, quando estava a sós com o seu advogado para falar, a sala foi invadida por presidiários que o assassinaram a facadas, na frente do advogado. O garçom que serviu a última refeição de Celso Daniel e Sérgio Sombra também foi assassinado, assim como uma outra pessoa que viu esse garçom sendo morto.

***

O corpo a corpo com o caso e com os seus desdobramentos foi o ponto de partida da criação da peça. Ela foi a tentativa de dar conta de todo o horror que a pesquisa tinha nos transmitido, e o tom explícito e de um cinismo esgarçado até o seu limite, faz jus ao que encontramos no material: a versão da polícia, que de alguma forma perdurou por muito tempo e até hoje de certa maneira se manteve, é tão absurda, que fica absolutamente impossível não imaginar que haja algo de errado nisso tudo. Um material também importante para o processo foi o vídeo da participação do irmão de Celso Daniel, Bruno Daniel, no programa Roda Viva. O nível do linchamento que se realiza neste programa, a virulência com que praticamente todos os participantes acusam o entrevistado constantemente, e sobretudo o próprio apresentador Mário Sergio Conti, como se ele fosse o réu, e não um parente da vítima, foi também algo que aprofundou o nosso horror (disponível aqui). Não bastasse o caso em si mesmo terrível, em torno dele identificamos um outro nível de violência, que se dirigia contra aqueles que resolviam mexer neste “vespeiro”. Foi inevitável enfiar a mão ali também. Mesmo que fosse para depois corrermos o risco de sentirmos, contra nós, a mesma violência que foi dirigida a Bruno Daniel no citado programa. Tal virulência na negação de tudo o que mexa na tal ferida mostra que ela ainda está aberta, e revela, a meu ver, que parte da esquerda se pauta muito pelo medo das consequências que uma autocrítica radical poderia vir a ter, evocando uma espécie de centralismo democrático sem democracia interna nem sequer unidade na ação, mas feito apenas da limitação nas críticas ao partido.

Penso, ao contrário, que a esquerda, em um momento como esse, não pode ter nenhum medo de criticar violentamente o PT, mesmo que isso doa. Creio que a importância de que a crítica seja feita plenamente, com a contundência que lhe cabe, é condição para que possamos buscar alternativas reais mais à esquerda para a política nacional. A crítica impiedosa de si mesma é patrimônio da esquerda. Ela não pode perder essa força, que é só dela, do contrário, vai tornar-se mais e mais conservadora, estática, incapaz de mover-se. A esquerda vem de uma necessidade de crítica, e creio que a proposta da peça é justamente essa: olhar para o que incomoda. E voltando ao que falei em relação à medusa, a chave que propusemos foi a de olhar para o que incomoda com o as ferramentas do próprio incômodo.

(Foto: Bob Sousa)

Bisturi do Mal

O teórico Tales Ab’Saber, na sua orelha para o meu livro Manual da Destruição, depois de conceituar o ponto de vista do narrador como um tipo de olhar cirúrgico e fortemente negativo, escreve que “este trabalho com o bisturi do mal produz conhecimento, além do seu escândalo estrutural, um tipo de conhecimento que não deve ser conhecido”. Penso que é disso que se trata: utilizando-se de um bisturi do mal, conhecer o que não quer ser conhecido. Olhar para o que se quer esquecer. Olhar de frente para aquilo que ameaça petrificar-nos. Falar sobre isso. O movimento de calar os assuntos mais difíceis e urgentes que nos pertencem, à esquerda, só vai nos colocar mais e mais em uma posição passiva e conservadora, de resto alimentada pela grande mídia que só faz fortalecer a ideia da direita como uma ameaça constante para nos deixar ainda mais encurralados e sem ação, como que prendendo o nosso próprio rabo a um partido que não necessita da nossa ajuda condescendente, mas sim, da nossa crítica.

Epílogo

Como adendo, gostaria de dizer que, em concordância com um ressente artigo de Vladimir Safatle, O poder não muda ninguém, acredito que a crítica à corrupção do Partido dos Trabalhadores precisa ser feita de maneira clara e impiedosa. (Anteriormente eu mesmo tinha escrito um artigo sobre a peça, que tocava em pontos semelhantes, aqui). Safatle aponta a necessidade de que não contextualizemos sempre a corrupção dos nossos, resistamos, pois, à tentação de sempre tratar-nos como diferentes nesse ponto, por conta do senso comum de que focar na questão da corrupção é uma pauta da direita, e sempre fazendo o movimento de relativizar com o fato de que o sistema como um todo é corrompido: “não, meus amigos, a corrupção do seu partido do coração não é ‘outra coisa’. Ela é a ‘mesma coisa’”. Penso que a ideia exposta por Andrade, de que a crítica que a peça propõe é redutora porque não investiga “o mecanismo por detrás” daquilo que critica se enquadre justamente como um pedido por uma contextualização e, no limite, por uma relativização do problema. Na peça, não contextualizar, portanto não falar do sistema por detrás, foi intencional, pelas mesmas razões: não podemos, só porque seria uma “pauta da direita”, postergar indefinidamente uma crítica que precisa ser feita de forma radical, e que precisa ser voltada para nós mesmos, sem relativizações ou contextualizações. Embora a peça a meu ver não fale só sobre isso (como já apontei), penso que isso de certa forma ressoa de maneira contundente, e incomoda. Fico satisfeito com o incômodo gerado, mas, como escreve Safatle, citando sem saber o subtítulo do espetáculo, acho que a crítica à corrupção em si não deveria parecer redutora, porque ela não é coisa pequena: “na política, tão importante quanto o que você fala é qual sua legitimidade. Por isso, a corrupção é sempre o começo do fim da política”.

Abnegação 2 – Grupo Tablado de Arruar
Onde: Armazém Cultural SPRua dos Cariris, 48 – Pinheiros.
Quando: Até 10 de setembro – quartas e quintas-feiras, às 21h.
Quanto: De R$ 30,00 a R$ 15,00.
Info: (11) 2729-5137.

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