Arcas de Babel: Maria Cecilia Brandi traduz Ben Lerner
Maria Cecilia Brandi: 'Lerner inventa marcas para seus poemas como se fossem uma forma fixa' (Fotos: Mauricio Brandi e Catherine Barnett)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje a poeta e pesquisadora Maria Cecilia Brandi apresenta uma amostra de sua tradução comentada de Percurso livre médio, de Ben Lerner, que será publicado na segunda quinzena de agosto pela editora Jabuticaba. O trabalho corresponde à sua dissertação de mestrado defendida no Departamento de Letras da PUC-Rio, sob a orientação de Paulo Henriques Britto.
Maria Cecilia Brandi é brasileira e espanhola, nasceu no Rio de Janeiro e é autora de Atacama (2012, 7 Letras) e A esponja dos ossos (2018, 7 Letras). Seu segundo livro foi contemplado com a bolsa de fomento à literatura do antigo Ministério da Cultura, em 2014, e finalista do Prêmio Rio de Literatura, em 2019. Mestre em Estudos da Linguagem e doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-Rio, fez pós-graduação em Criação Literária na Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona.
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Ben Lerner cresceu numa família judaica de esquerda, em Topeka, capital do Kansas (EUA), em 1979. Estudou teoria política e fez mestrado em poesia, na Brown University. Mais conhecido por sua prosa publicada em diversos países e idiomas, Ben Lerner é também – e primeiramente – um grande poeta. Tem três livros de poesia: The Lichtenberg Figures (2004), Angle of Yaw (2006) e Mean Free Path (2010), todos intitulados com termos científicos. Foi o primeiro estadunidense a ganhar o Preis der Stadt Müenster für Internationale Poesie, na Alemanha, entre outros prêmios. Depois lançou os romances Leaving the Atocha Station (2011), 10:04 (2014) e The Topeka School (2019), todos com protagonistas que são (ou querem ser) poetas. Em um trecho de 10:04, o narrador (o autor?) diz: “O estagiário (…) apresentou-me aos outros como um dos residentes, um romancista. Sou mais poeta, disse eu” (tradução de Maira Parula em edição da Rocco). Ben Lerner lançou também The Hatred of Poetry (2016), que é um ensaio. A poesia está, assim, de algum modo presente em toda a literatura dele. Lerner é professor do programa de escrita criativa do Brooklyn College, em Nova York, e escreve para vários veículos, como The New Yorker e The Los Angeles Review of Books.
Tanto na poesia quanto na prosa de Lerner, há questões comuns que se misturam e reconfiguram, tais como a insularidade dos estadunidenses, o lugar movediço da poesia na contemporaneidade, as referências e citações artísticas (musicais, literárias, do cinema e das artes plásticas), os paradoxos do desenvolvimento tecnológico e científico, as tensões entre o mundo físico e metafísico, as relações amorosas e o tom bem-humorado e crítico. Inclusive, em diferentes obras do autor, alguns trechos se repetem em novos arranjos.
Aqui apresento fragmentos de poemas de Mean Free Path (Percurso livre médio, em minha tradução), em que a operação que Lerner faz com a linguagem me parece particularmente inventiva e sofisticada. O título, na física, designa a distância que uma partícula percorre até colidir com outras. E os versos muitas vezes também sofrem colisões: há choques de sentido de um para outro, versos inacabados e retomados depois, fora da ordem ou com mais de uma ordem possível. Tais características me parecem representativas de uma poética que reflete sobre a comunicação nos dias de hoje e, ainda, como já disse Lerner, de uma “resistance to a kind of closure”.
Os versos do livro não recorrem a nenhum modelo métrico tradicional, mas sim a dois modelos criados pelo próprio autor. Um deles é usado na “Dedicatória” para Ari, que é parte integrante do livro, e também na terceira e na quinta seções, denominadas “Elegias Doppler”. O outro é usado nas seções “Percurso livre médio”, que são a segunda e a quarta. Lerner inventa marcas para seus poemas como se fossem uma forma fixa, de modo que a certa altura o leitor começa a rastrear desordens, colagens, ambiguidades etc. E esses jogos linguísticos guardam relação com os belos jogos de imagens e sentimentos que o autor mobiliza.
Percurso livre médio transita com confusa naturalidade dos assuntos amenos (como a música) aos mais críticos (o estímulo exacerbado ao consumo, o valor da arte) e graves (a guerra do Iraque, a morte de amigos, o fascismo). Vários temas aparecem e depois reaparecem, como nas conversas íntimas, com seus repertórios de preferência. Como diz um verso de John Ashbery (1927-2017), poeta de quem Lerner tanto gosta, “One keeps coming back to that”. Um desses temas recorrentes é a própria poesia, inclusive precisamente a do livro, e um questionamento sobre onde ela pode chegar. – Maria Cecilia Brandi
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Porque as distâncias colapsaram.
. Porque a figura
não conseguiu humanizar
a escala. Porque a obra,
a obra só fez nos convidar
a relacioná-la com
. a parede.
Porque fui às compras no breu das
. gôndolas.
Porque a mesura
. à altura da guerra
era o silêncio, mas seguimos
celebrando a duplicidade.
Porque a cidade estava poluída
de luz, e o mundo,
. esquentando.
Porque eu era uma fraude
. numa plantação de papoulas.
Porque a chuva fazia pequenos
. ajustes afetivos
à arquitetura.
Porque a arquitetura era um longo
colóquio que não entendi, mnemônica
negativa refletindo
. o clima
e refletindo
. a reflexão.
Porque não sentia nada
. Bom
muito bom pra mim.
Porque meu sangue era soda.
Porque minha autoridade era pequena
porção de músculos involuntários
. no rosto.
Porque eu tinha injetado ácidos nas maçãs
. do rosto.
Porque eu tinha medo
. de virar
à esquerda nos cruzamentos.
Porque estava numa curva perigosa
Porque estava fazendo sinal,
apesar de mim,
. da vontade de mudar.
Porque não podia lançar minha voz
. no lixo.
Porque tinha dormido além da conta,
. tinha vestido
camadas de roupa para o longo
o sonho que viria, o sonho
recorrente de acordar com
desfechos alternativos
. na companhia dela.
Por Ariana.
. Para Ari.
***
Num esforço inconsciente para unificar a voz
Engulo chiclete. Um homem velho chora no aeroporto
Por uma conexão perdida. A cor do dinheiro é
Verde visão noturna. Ari tira os grampos de cabelo
Eu tiro a pontuação. No freezer não tem nada
Só vodca e rolos de filme. Deixe as belas
Perguntas sem resposta. Restam seis páginas
Da nossa juventude e eu preferiria engolir a língua
Do que desperdiçá-las em descrições
∝
Explode o grito pela linguagem simples
Em cidades idênticas. Zukofsky aparece em meus sonhos
Vendendo facas. Cada peça exposta, um futuro fracassado
A estrela morre e sua luz sobrevive. Anteras de vidro
Confundem abelhas. Isto é pornografia? Sim, mas
Mas nada. Vem pra referência. Um modo de despir-se
À altura do fascismo se torna obrigatório
Em cidades idênticas. Já falei isso antes? Já falei que
É preciso livrar-se da camisa de força da perspectiva
***
Não nego a influência, mas é menos
Uma relação de pai para filho do que uma relação de
Lua para maré. E mais, meus professores são quase todos
Partículas bombardeando folhas de ouro ou dilúvios
É o movimento, não a matéria, não os substantivos
Mas os pequenos atrasos. Um gênero cruzado
Um gênero que Marvin Gaye cruzou a pé
Filicídio. Desleituras fortes surgem
Na superfície. Estouram. Não precisava ser
∝
Se me levanto da mesa, se vagueio
Descalço pelos jardins cintilantes
Se estou perdido em Juárez em Topeka, se é inverno
Em agosto quando pródromos, quando pássaros a
Citar o passado a todo momento, sem
Sem necessidade de exemplos, policiais, médicos
Preciso andar até a beira do gênero e olhar
Para nada. Voltarei, o acesso vai me trazer de volta
A tempo do café com laranjas
***
∝
Pedem aos passageiros que aplaudam
. Era sempre igual
a janela em seus poemas
para os dois soldados. Estávamos atrasados
Em cada assento, uma tela mínima
Uma garrafa mínima. O mesmo tráfego
. Na copa das árvores, chuva
fina. Ele manteve o tema
. constante. Agora eu
entendo. Olhei para
. Denver sobrevoando mas só vi
nosso reflexo. Baixem
as luzes da cabine. Robert morreu
Pertences podem ter se deslocado
Eu não o conhecia. Por que estou
. aplaudindo. Estamos começando
a descida em direção a
. Uma voz do tipo meio
Na gravação, pude ouvir
. a hesitação
Certa coragem. Não sei explicar
feito música. Podíamos ver
nosso avião caindo. Seríamos
Nossos homens e mulheres
. autorizados a repreender
de uniforme. Quando o ouvi ao vivo
. não entendi
***
E se você pudesse ouvir isto como se fosse música
Mas não como você entende isso. O lento feixe
Me abriu. Muros me atravessavam
Como ondas ressonantes. Pensei que talvez
Se você tiver tempo, podíamos passar a vida nos
Despedindo nas estações, prometendo escrever
Guerra e Paz, dessa vez com sentimento
Enquanto as balas deixam rastros luminosos em
Espera, ainda não terminei. Eu ia dizer que
Quebra-mares lembram nuvens alinhadas
∝
Renúncias escalonadas. Fronteira imprecisa entre
A vitrine do museu e a da lojinha. A morte de um
Amigo me abre. De repente o clima
Foi escrito por Tolstói, que tinha mãos gigantes
Ondas ressonantes. É difícil não levar
Quando seu olho está no vértice de um cone
O outono pro lado pessoal. Meu passado se torna
De versos que se estendem a cada folha
Citável em todos os momentos: chuva, despedida
***
As folhas parecem ter o brilho aumentado
A estrela mais fraca e periférica some
No crepúsculo e bastonetes se voltam para ondas curtas
Se você vira e tenta olhar diretamente
Ela é mapeada na fóvea, repleta de cones
Mais sensíveis às cores do que às linhas. Virei
Rasguei. Agora vejo a elegia por trás de
Nuvens alinhadas com pouca opacidade
Um padrão gravado em chapa verde
∝
Com sentimento, como o olho que tanto se move
Para evitar a luz do objeto caindo
Suavemente numa pequena clareira. Chamam de
Como chuva que nunca chega ao chão
Leitura, como pássaros que afastam predadores
Virga, ou o olhar não conseguir chegar
Fingindo uma lesão, como sinalizadores que
Do outro lado do lago no breu total
Desviam mísseis do seu percurso
***
For the distances collapsed.
. For the figure
failed to humanize
the scale. For the work,
the work did nothing but invite us
to relate it to
. the wall.
For I was a shopper in a dark
. aisle.
For the mode of address
. equal to the war
was silence, but we went on
celebrating doubleness.
For the city was polluted
with light, and the world,
. warming.
For I was a fraud
. in a field of poppies.
For the rain made little
. affective adjustments
to the architecture.
For the architecture was a long
lecture lost on me, negative
mnemonics reflecting
. weather
and reflecting
. reflecting.
For I felt nothing
. which was cool,
totally cool with me.
For my blood was cola.
For my authority was small
involuntary muscles
. in my face.
For I had had some work done
. on my face.
For I was afraid
. to turn
left at intersections.
For I was in a turning lane.
For I was signaling,
despite myself,
. the will to change.
For I could not throw my voice
. away.
For I had overslept,
. for I had dressed
in layers for the long
dream ahead, the recurring
dream of waking with
alternate endings
. she’d walk me through.
For Ariana.
. For Ari.
***
In an unconscious effort to unify my voice
I swallow gum. An old man weeps in the airport
Over a missed connection. The color of money is
Night-vision green. Ari removes the bobby pins
I remove the punctuation. Our freezer is empty
Save for vodka and film. Leave the beautiful
Questions unanswered. There are six pages left
Of our youth and I would rather swallow my tongue
Than waste them on description
∝
A cry goes up for plain language
In identical cities. Zukofsky appears in my dreams
Selling knives. Each exhibit is a failed futurity
A star survived by its own light. Glass anthers
Confuse bees. Is that pornography? Yes, but
But nothing. Come to reference. A mode of undress
Equal to fascism becomes obligatory
In identical cities. Did I say that already? Did I say
The stranglehold of perspective must be shaken off
***
I don’t deny the influence, but it’s less
A relation of father to son than a relation of
Moon to tide. Plus, my teachers are mainly
Particles bombarding gold foil or driving rain
It’s the motion, not the material, not the nouns
But the little delays. A gender crossed
A genre crossed on foot by Marvin Gaye
Filicide. Strong misreadings arise
On the surface. Burst. It didn’t have to be
∝
If I rise from table, if I wander
Discalced through the sparkling lawns
If I’m lost in Juárez in Topeka, if it’s winter
In August when the prodromata, when the birds
Cite the past in all its moments, there is no
No need for examples, police, doctors
Let me walk to the edge of the genre and look out
Into nothing. I will return, the fit will return me
In time for coffee and oranges
***
∝
The passengers are asked to clap
. It was always the same
window in his poems
for the two soldiers. We were delayed
In every seat, a tiny screen
A tiny bottle. The same traffic
. High up in the trees, small
rain. He held the subject
. constant. Now I
get it. I looked out
. over Denver but could see
only our reflection. Dim
the cabin lights. Robert is dead
Articles may have shifted
I didn’t know him. Why am I
. clapping. We are beginning
our final descent into
. A voice described as torn
On the recording, I could hear
. the hesitation
A certain courage. I can’t explain
as music. We could watch
our own plane crash. We would be
Our men and women
. permitted to call down
in uniform. When I heard him live
. it was lost on me
***
What if I made you hear this as music
But not how you mean that. The slow beam
Opened me up. Walls walked through me
Like resonant waves. I thought that maybe
If you aren’t too busy, we could spend our lives
Parting in stations, promising to write
War and Peace, this time with feeling
As bullets leave their luminous traces across
Wait, I wasn’t finished. I was going to say
Breakwaters echo long lines of cloud
∝
Renunciation scales. Exhibits shade
Imperceptibly into gift shops. The death of a friend
Opens me up. Suddenly the weather
Is written by Tolstoy, whose hands were giant
Resonant waves. It’s hard not to take
When your eye is at the vertex of a cone
Autumn personally. My past becomes
Of lines extending to each leaf
Citable in all its moments: parting, rain
***
The leaves appear to increase in brightness
The dim star in the periphery disappears
At dusk as rods shift toward the shorter waves
If you turn and try to look at it directly
It maps onto the fovea, rich in cones
Which privilege color over line. I turned
I tore it. Now I see the elegy beneath
Long lines of cloud with poor opacity
A pattern stamped into green foil
∝
With feeling, how the eye moves constantly
To keep light from the object falling
Gently on a little clearing. They call this
Like rain that never reaches ground
Reading, like birds that lure predators away
Virga, or the failure of the gaze to reach
By faking injury, like flares that bend
Across the lake in total dark
Missiles from their path