Magmas do submundo
(Foto: Carolina Antunes/PR)
I
Preâmbulo
Sintoma do submundo
A partir de fevereiro de 2020, o mundo assistiu, perplexo, à bilionária jogatina brasileira com fármacos internacionalmente ineficazes para o combate ao Sars-Cov-2 e suas cepas. Milhares de mortes, entre as mais de 600 mil ocorridas no período, ficaram reféns dessa especulação.
Extensivamente, a farra negacionista, que adiou por meses as providências de Estado até a efetivação do cronograma federal de vacinação, custou também a vida emocional de milhares de famílias. Preceitos humanitários da Constituição Federal de 1988, amplamente feridos, sempre pressupuseram que ninguém tem de viver luto antecipado.
Sintomático, o episódio criminoso, protagonizado, de forma copiosa, pelo Palácio do Planalto, sob lastro de parte das Forças Armadas vocacionada a interferir politicamente na vida civil, inspira reflexão sobre a natureza do submundo. A quem pensa tratar-se de região material específica, quimera religiosa ou filosófica, proeza de literatura fantástica ou de dramaturgia ficcional, o Brasil federal e pró-pandêmico até meados de 2021, sob inspiração da extrema direita e depois ofuscado pela aceleração vacinatória carreada por governos estaduais e municipais, demonstra o contrário.
II
O submundo
Propensão insultuosa em relação ao diverso
Como qualquer outro país com passado colonial e escravagista, o Brasil represa, em terreno ocluso, magmas social-históricos periculosos. Se são distintos dos de nações egressas de guerras antigas, de aristocracias agrárias milenares e/ou da experiência do medievo e que, mais tarde, transitaram para totalitarismos e ditaduras (de direita e de esquerda), na Europa, na América Latina, na África, na Ásia e no extremo oriente – como a Alemanha, a Itália, a Argentina, o Uruguai, o Chile, Uganda, a ex-União Soviética, a China ou o Afeganistão, por exemplo –, todos os magmas, no entanto, confluem para um pomo político comum: eles provêm do submundo, ali onde o inumano e o escárnio banqueteiam vilezas e quejandos, convidando a todos como comensais, próximos à cabeceira.
Uma tal, digamos, sucinta “sociogeologia” da banalidade do submundo, inspirada na espessura imaterial e tortuosa do imaginário social (para evocar Castoriadis), apenas reangula o há muito sabido, no casco de obviedades históricas mais recentes. O submundo – esta categoria aparentemente genérica – é mais que uma metáfora. No imaginário cultural e medieval de Dante, o extenso latíbulo sinistro, referido a palavra diversa – inferno –, tinha camadas concêntricas relativamente definidas. Como magma político, o submundo se nutre do que a crosta invisível das relações sociais tem de mais sórdido no tratamento da alteridade e da diferença. Esta é – e sempre será – sua marca axiológica fundamental.
Vale o exagero da figuração alegórica como recurso pedagógico, para calcar na veracidade: o submundo – não é inapropriado imaginar – remete a larga “região” de charco (abastado ou não) na trama política complexa do simbólico como dimensão da cultura, em ligação umbilical com um estrato imaterial e sombrio da alma de diversas segmentações do povo.
Por incrível que pareça e guardadas as idiossincrasias de plano, esse “pântano” se metamorfoseia e se totaliza em e como estruturas psicoemocionais subjacentes à personalidade, ao caráter e ao comportamento individuais (e, por tais atalhos, ao perfil de grupos, coletivos e redes) – todos vinculados ao sub-humano: da mera vilania (já amplamente constrangedora) ao assassinato. A mentira, a bazófia e o desprezo representam muito pouco nesse perímetro.
III
O submundo político, por exclusão
Relação de vilipêndio
Rechaço ao reconhecimento
Esse submundo, portanto, não se reduz à circunscrição política convencional, disputativa dos poderes de Estado: ele se confunde com as raízes históricas e culturais da constituição da própria nacionalidade. Seu caráter político lato sensu (mais além das instituições legadas pela modernidade dos séculos 18 e19), vincula-o, por conseguinte, a certa zona de subjetividade e procedimento coletivos no que tange ao tratamento cruel, insultuoso ou desrespeitoso à diversidade. Esse modo de relação – modo de vilipêndio, como exercício de humilhação alheia – equivale a uma política de antirreconhecimento interidentitário máximo. Vice-versa, a tolerância revoltosa – por ter de ser ela mesma, tolerante, contida – para com o outro e com as marcas da diferença celebra, com churrasco e cerveja, o rechaço a toda e qualquer forma de reconhecimento.
O início do parágrafo precedente tonaliza perspectiva adequada: a tomada do submundo conforme preceitos homeopáticos – isto é, por exclusão.
O submundo político jamais equivale a camadas socialmente desgraçadas pela extrema desigualdade, pela segregação e/ou pela morte antecipada. Essa é a visão deturpada, ingênua e desonesta das classes abastadas, sob o efeito morfínico da regularidade de confortos e privilégios.
O submundo político não se refere – ao menos, essencialmente – ao reino dramático do vício, sobretudo nas camadas desfavorecidas. Esse estigma é produzido por um senso comum que nunca tocou o cerne da aflição existencial e do desespero do lumpemproletariado.
O submundo político não tem relação necessária e/ou direta com a propensão à devassidão, à bandidagem e ao contrabando comuns, ao tráfico de drogas, de crianças, mulheres, órgãos, vacinas etc. Esse é outro descuido semântico do senso comum: o atrelamento de uma das segmentações do submundo à mercantilização ilegal de serviços, mercadorias e corpos preservaria total validade se, ao mesmo tempo, não aprisionasse a definição inteira (de submundo) exclusivamente nas sombras dessa mundanidade. O que vigora como franja não pode ser totalizado, tanto mais porque ela ludibria a existência de magmas mais profundos do submundo.
O submundo político não pode ser encarado pelo prisma da moral ou do moralismo, sob risco de não se apreender, com propriedade, sua natureza, suas capilaridades, seu propósito, seu alcance e suas consequências. Esse “charco” merece, antes, abordagem estratégica (com ou sem condimento ético) e resposta política de contradito – ambas, de forma republicana e intrépida e, se se quiser, implacável.
O submundo político não está “abaixo” do humano, como numa metáfora de subsolo. Sua ligação a práticas infrassolidárias – conforme assinalado – não o subtrai do próprio humano: ao contrário, refere-o totalmente, em sua expressão mais bárbara – e ressentida em relação às “sofisticações” (mal distribuídas) da civilização democrática, à redução (estatisticamente pouco convencíveis) da desigualdade material e ao respeito igualitário (ao menos, constitucionalmente reconhecido) a todas as formas de identidade (de indivíduo, grupos, povos e nações).
Esse submundo não é uma aberração artificial da história. Trata-se, antes, do social-histórico num movimento peculiar, a partir de sua zona humana politicamente mais degradada.
As últimas duas negativas não representam novidade. Há muito se sabe que a barbárie escreve cru na contraface o que a civilização, com toneladas de positivismo mediático, escamoteia no anverso.
IV
Submundo neofascista e instituições
Invisibilidade do estado de exceção
Se o submundo neofascista corrente, a exemplo de seu pântano originário da primeira metade do século 20, encerra, dentro e fora do aparelho de Estado no Brasil, a maioria ou todos os aspectos reportados, encarna-os num nível politizado e institucionalmente “negociado”, como forma de capa (edulcorada aqui, extremamente rústica ali), para a “lavagem social” de suas intenções inconfessas.
A mais organizada e periclitante perigosa segmentação desse submundo re-emergiu historicamente serpenteando aterros oclusos da Web, agregou-lhes recursos tecnológicos avançados (à base de robótica online insuflada por inteligência artificial) e escancarou vinhas do supremacismo, na forma-fluxo (em rede) quase de uma “sociedade secreta” em expansão, autoblindada em seu fundamentalismo e multirramificada na invisibilidade, com esteio e liames internacionais.
Foram frações violentas desse submundo que invadiram, em massa, o Congresso dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, sob a crença ressentida no factoide de que as eleições presidenciais de 2020 haviam sido fraudadas por adeptos do Partido Democrata em vários Estados e cúpulas institucionais, com o apoio de independentes e republicanos traidores. Variações desse submundo – nazifascista e nacionalista, pró-enrijecimento de fronteiras e de controle xenófobo da imigração e dos refugiados – pulsam na Europa e em outras partes do mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Seu recente recrudescimento ameaça esforços democráticos na Alemanha e na Áustria, na França e na Grécia, na Holanda, na Hungria e na Polônia, além de Índia, Myanmar e Turquia, entre outros.
O problema se torna mais complexo e profundo quando instituições políticas, jurídicas e mediáticas que deveriam contribuir para a inibição permanente desse submundo participam dele desde as raízes (nos pressupostos, na discursividade e até em práticas), sob a rubrica de conveniências e conivências. Essa injunção é particularmente musculosa no Brasil. Quando o estado de exceção se generaliza, o prefixo “sub”, ao contrário de perder razão de ser, cambia de natureza, escala e reverberação: a elisão “mágica” que o faz desaparecer na percepção comum – tudo passa a ser apenas “mundo”, como se “vida normal”, sem estranheza – é a mesma que revigora (e naturaliza) a exceção e seu lodaçal, também invisível.
V
Submundo e impotência da educação
Orquestração de segmentos antifascistas
O paradoxo desse cenário envolve, na raiz, a educação institucionalizada como instância civilizatória, em desdobramento transnacional.
A robustez progressiva – espalhafatosa, ao mesmo tempo, silenciosa – do neofascismo no Brasil, mais que sua irrupção institucional a partir de 2018, sacode a ingenuidade política na frente do espelho e patenteia a impotência do sistema educacional para erradicar o analfabetismo anti-humanista e anti-igualitário, que recorta classes sociais e permeia todas as formas de autoritarismo.
A modernidade iluminista abstrata, “sabotada” pela modernidade econômica real (isto é, regida por diversos tipos e níveis de desigualdade), não conseguiu “moldar” (no sentido de “resolver” historicamente), na esteira do humanismo greco-clássico e renascentista, esse “estrato” humano obscuro em prol de valores democráticos e igualitários na vida cotidiana. Foram mais de 200 anos de tentativa perseverante, deslizes recorrentes e impotência involuntária, sem autocrítica ou mea culpa dos protagonistas implicados (corporativos, governamentais e intelectuais, à direita). Em particular, os métodos pedagógicos convencionais do sistema educacional não o alcançam. Tal ineficácia contamina sobretudo os métodos de “ressocialização” típicos do sistema penitenciário para white collors.
O “estrato” ultraconservador e supremacista, forjou sua própria “educação” a céu aberto, blindada na cultura de ruas toscas e bastidores iníquos, sob reforço consuetudinário de círculos familiares identitários ou alinhados, de geração em geração (e agora em redes adulterantes): em regra, sua axiologia (se dela se trata) inclui até zombaria da instituição escolar e do estudo: “não têm utilidade”, exceto se militarizados – tonitruam graúdos, desacorrentando extenso resmungo na horda.
O resultado desse processo nunca foi imprevisto. Nos últimos anos, porém – deve-se enfatizar –, resolveu avolumar-se com orgulho recobrado: facínoras permanecem, como fetiches de liderança, estampando paredes invisíveis de sequazes e apaniguados países afora. (A notação é retomada no próximo tópico.)
Após longo transcurso civilizatório sob condições imperial-feudoescravistas, totalitárias/ditatoriais e republicano-democráticas, a história tardomoderna da extrema rusticidade demonstra, com exuberância, o seguinte: o que a primeira operação socializadora da educação como instância ontoantropológica – isto é, a operação interacional no e do âmbito familial – não consegue moderar tende a permanecer para o pragmatismo político, cultural e ético, alerta e diuturno, na escala coletiva de conflitos agudos; mais abrangentemente, quando a dissimulação eufemista da inculcação por violência simbólica na esfera da educação formal (para lembrar Bourdieu e Passeron) também falha na desidratação de sinistros incivis, a sobra do processo fica para o gregarismo politizado resolver sob o céu aberto da praça pública, na escala de multidões indignadas e sob consequências imprevisíveis.
A sociopsicanálise politicamente orientada conhece bem os meandros desse deslocamento. Somente o fortalecimento social de segmentos e estratos antifascistas espalhados, quando majoritários, são capazes de, sem promessa de dissolução alguma, fazer, ao menos, as pulsões mortuárias desses magmas se enrustirem novamente no submundo, evitando rearticularem-se em cargos e funções executivas, na conhecida forma atabalhoada de um caos significativamente desqualificado. Essa contribuição é o mínimo que os movimentos sociais, a diversidade das artes, do jornalismo e da educação, as instituições religiosas, as organizações não-governamentais, a política pragmática etc. do espectro progressista podem – das ruas às redes digitais. e vice-versa – realizar em nome do menos pior.
Os segmentos antifascistas, entre militantes, simpatizantes não-engajados e apoiadores tácitos, necessitam, no entanto, agir de modo mais integrado e, além de majoritários na população, ter, acima de tudo, propensão continuamente ativa – numa palavra, precisam não somente querer destronar e/ou isolar o sinistro, mas operar orquestralmente, acantonando animosidades internas. Esse magma humanista uníssono, vivendo na pele, no bolso e na mesa, com mortes a fio, o prejuízo da desova neofascista do bolsonarismo, estagia ainda na superação da perplexidade fragmentária – primeiro passo, fundamental, para o isolamento ulterior do infortúnio. A necessidade social dessa orquestração em rede, em conflito declarado com media corporativos hegemônicos, não se reduz a rituais eleitorais.
VI
Submundo e ingenuidade política
A lava pronta
Redescoberta da sinistrose odienta
A síntese histórica do descalabro o vislumbra em cauda longa: magmas síncronos do submundo político brasileiro perduram na boca do vulcão, mesmo (ou sobretudo) após o pico de ataques do Palácio do Planalto ao Supremo Tribunal Federal às vésperas da comemoração do Dia da Independência, em setembro passado. Esses magmas gravitam em torno do nome e do lugar de fala do hóspede do Palácio. A bolsonarização de inúmeros segmentos sociais e setores profissionais é lava pronta – na superfície. Basta uma fagulha – um álibi – no rasto de pólvora.
Em termos contextualizados, o submundo brasileiro, a exemplo de décadas recentes, em solo latino-americano, europeu e asiático, retornou às escâncaras, de forma indiscriminada. Parte quantitativa dele, perdendo rubor ou recobrando desfaçatez, infestou as redes sociais.
Até o triênio 2015-2018, grande parte da sociedade civil brasileira, conservadoramente embalada pelo modelo de redemocratização pós-1985, supondo-o como reescritura resolutória de feridas da ditadura militar, imaginou, floridamente, que os magmas do submundo não existiam mais. Hoje, os supostos escombros, edulcorados pelo fardo imperceptível de uma anistia desigual articulada goela adentro, grassam personificados nas proximidades – às vezes, na residência vizinha, quando não na própria família. Qualquer reação de surpresa quanto a isso exala a ingenuidade política que a credulidade dos dias impedia de ver no espelho róseo de esperanças impossíveis.
Nunca é demais ter no bico da pena: a rigor, o horizonte pós-Pindorama arrasta esse submundo desde a invasão colonizadora e grilhões escravocratas. De frações da elite concentracionária e parasitária ao longo dos séculos até os vários tipos de “proletário de extrema direita” atuais, o largo diapasão desse magma arrasa-alteridade constata, em seu entremeio, a trajetória sinuosa de vários veículos de comunicação mainstream (liberais ou conservadores), além, obviamente – desde raízes à disputa por audiência ampliada – de uma legião de canais e perfis (individuais e grupais) de ultradireita nas redes sociais. Ao mesmo perímetro, pertencem, orgulhosamente, os porões do DOI-CODI e seus gendarmes.
A consciência reificada do senso comum e a credulidade fetichista em um líder messiânico pouco o percebem: vivem-no. A diferença agora é que o fantasma da Marcha com Deus pela Liberdade tem se nutrido de sua própria reinvenção civil-empresarial, policial-militar e miliciana, com o bolsonarismo como sua versão histórica mais periclitante.
Não foi útil redescobrir a sinistrose odienta, atoleimada na covardia e tendente a cinturas com cartucheira preparada?, perguntam a transparência e a veracidade, em algum lugar inexpugnável. É fundamental – dizem elas – mapear mais profundamente quem são, o que pensam e o que querem esses brasileiros. É fundamental saber, no mínimo, onde jogam e qual o lugar de fala (explícito e implícito) dos inimigos (evidentes e ocultos) dos princípios republicano-democráticos e do conjunto de reconhecimentos jurídicos correspondentes, na forma de direitos humanos, civis, políticos, sociais, trabalhistas e previdenciários.
Há detalhes banais do vivido que, muitas vezes, emparelham com a cognição mais sofisticada. Os equívocos da ingenuidade, quando despojados continuamente de sua potência educativa e transformadora, competem, em resultado, com a estultícia soberba e perseverante em matéria de sobrevivência: ambos – ingenuidade e estultícia – não acometem somente o presente; entregam o futuro imediato aos deleites de uma corrosão irreversível.
VII
Títeres da Casa Grande
Cordilheira de oposição histórica
Gatunagem lexical e curto-circuito semântico
Inúmeras vozes progressistas, dentro e fora do Brasil, cedo notaram que o neofascismo bolsonarista é a armação narrativa de gabarolas belicistas e míseros da Casa Grande – daqueles que, à primeira oportunidade, lavam verba aos bilhões nas hierarquias e interstícios dessa circunscrição, sob a fachada dissuasiva do combate à corrupção. Os abastados ultraconservadores permitem essa horda no aparelho de Estado desde que a rusticidade voluntária da gabolice (especialmente civil e miliciana, parlamentar ou não, do campo à cidade) lhes sirva as circunstâncias. Afora o lucro planejado, importam pouco a queda do PIB e do índice de empregabilidade, nem a alta do dólar, da gasolina, da inflação e do desprestígio global do país – nem mesmo a fome, os assassinatos na floresta amazônica e a precária situação habitacional de milhões de brasileiros.
Essa observação catalisa seu respectivo dimensionamento. Gabarolas são apenas títeres de “estamentos” sociais que, por força de permissividades estatais, constitucionais e legais, concentram a riqueza socialmente produzida e permanecem majoritariamente invisíveis. De modo similar, esses estratos, hereditários de privilégios desde a colonização, ligam-se, direta ou indiretamente, ao submundo, em camadas diferentes. Do bojo de sua constituição excludente, essa elite econômica, no entanto, sempre jogou, em seus redutos de ação e influência, com a conhecida plasticidade positivista de todas as conveniências, requerida pelas relações de respeito e reconhecimento entre as pessoas. O cinismo estrutural blinda sua preservação escudando-se nos valores humanitários mais caros.
Não fossem exceções por beiras convictas e resistentes (e com fiação também sistêmica), o Brasil seria hoje um submundo quase absolutizado – do fundo do lodaçal ao neon glamuroso das telas, à sombra autolegitimatória e positivada da visibilidade multimediática.
A veracidade e a transparência em contextos de disputa aguda requerem que o jogo – uma guerra simbólica, braço narrativo da “guerra cultural” em curso – seja o mais limpo possível. Nesse ponto, quem defende princípios republicanos, democráticos e igualitários testemunha, à esquerda, com a história pós-1988 (para ficar apenas neste marco): sua gigante cordilheira, por mais fragmentária que seja, sempre olhou para a planície áspera; interessam, prioritariamente, a democracia concreta na vida cotidiana, os direitos humanos concretos na vida cotidiana, as liberdades civis concretas na vida cotidiana. Esses valores jamais se comutam com abstrações formais de um Estado de Direito que, por mais historicamente crucial em países com intensa desigualdade, não deixa de, em matéria de efetividade universalizável, figurar na trilha sinuosa que vai do papel complacente à primeira gaveta vaga. A imensa cordilheira de oposição histórica reafirma tal modelo de Estado, mas não se reduz a ele: exige mais – exige o cumprimento cabal e incondicional da missão política da invenção democrática como valor universal, bem como de um Estado de Direito crítico de si próprio, com eficácia equânime e extensa a toda a população, doa a quem doer. A grandes traços, não se equivoca quem, militando contra o nepotismo, o fisiologismo e o oligarquismo, advoga, como norte, o que certa vez sintetizou Rosa Luxemburgo: trata-se, no mínimo, da defesa de “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
A horda bolsonarista – sabemo-lo bem – gatuna os elementos desse léxico. Causando curto-circuito semântico em vocábulos tradicionais caros à tradição progressista, o submundo – das redes às ruas, dos bastidores aos plenários parlamentares e à fachada mediática – encampa a “democracia” e a “liberdade” tão somente para, se se deixar, derruir o edifício republicano-democrático, o mesmo que lhes concede voz e espaço para a atuação corrosiva, fora das celas. Com a adição deste vexame, que a metáfora pinta melhor que o verbo técnico: escorpiões, quando dados à covardia e a pândegas, deslocam – ariscos que são, mesmo em apuros – o ferrão para o alqueire inteiro.
Irradiando confusões, o submundo trata como “escória” quem abraça a diversidade; e as realizações de democratas e defensores de políticas públicas têm assim seu estigma em boca parva: são “imundície”. A maioria do submundo não vê problema em adorar a Deus e, ao mesmo tempo, destilar bílis odienta. Alguns – texto sagrado à mão – conseguem falar de amor.
No limite, o neofascismo brasileiro equivale, mutatis mutandis, a um Talibã latino-americano, simuladamente laico e não menos fundamentalista na defesa de seu tresloucado “comunismo imaginário”. Adota apenas sinal trocado na guerrilha simbólica que trava, no arco da “guerra cultural” deflagrada em países ocidentais: a horda é pró-Estados Unidos, como os Talibãs em sua origem antissoviética.
Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).