Os ventríloquos e a “buceta rosa”: sobre as astúcias e as lacunas cognitivas do machismo

Os ventríloquos e a “buceta rosa”: sobre as astúcias e as lacunas cognitivas do machismo
As russas só repetiram o que lhes impunham os machistas porque tudo parecia uma simples brincadeira (Arte Revista CULT)

 

O melhor jeito de desmistificar uma palavra ou expressão é usá-la sem preconceitos. Há que se tomar o cuidado de não banalizá-las, pois todas elas merecem respeito, afinal carregam conceitos que podem sempre nos fazer pensar melhor.

Há poucos dias o Brasil viveu um momento de extrema vergonha com alguns torcedores que viajaram à Rússia para a Copa do mundo. Merece análise o ato envolvendo homens brasileiros e mulheres russas em torno da expressão “buceta rosa”, arma de um dos espetáculos mais machistas vividos pela cultura brasileira nos últimos tempos.

Manuela D’Ávila, no programa Roda Viva, viveu algo parecido. A quantidade de interrupções e a miséria política de muitas das questões queriam também reduzi-la a uma boneca que falasse o que os arguidores queriam ouvir. O autoritarismo, do qual o machismo é uma forma especializada, sempre funciona obrigando a falar – como nas coerções e torturas – ou fingindo uma sedução ao ato de falar, como vimos com as russas.

Nossa análise deve levar em conta aspectos tais como as condições de possibilidade nas quais o ato violento envolvendo brasileiros e russas se deu. Estamos no século 21 e os costumes deveriam ter se modernizado, mas não. A Copa do Mundo continua sendo, para muitos, um espaço masculino e a masculinidade – essa característica raramente analisada – continua tentando se afirmar pela violência. Poderia haver uma masculinidade melhor do ponto de vista psíquico e político, mas isso seria pedir demais ao momento da mentalidade nacional. Em função de seu arcaísmo e caducidade, a masculinidade tem se mostrado algo ultrapassado e, pelas viseiras que fornece aos machistas, tem sido o fundamento do fracasso cognitivo de muitos homens.

O machismo é a prova do fracasso cognitivo e emocional do sujeito. Uma questão complexa, mas facilmente verificável no dia a dia de quem convive com a imbecilização machista.

Ventriloquacidade

Fundamental ter em vista que o ato de violência perpetrado pelos machistas brasileiros é um ato de linguagem. O que aconteceu entre machistas e mulheres russas não foi uma conversação, nem um bate-papo e nem muito menos algo que lembrasse um diálogo. Fundamental entender qual a operação linguística em jogo para perceber não apenas “como” funciona o machismo, mas qualquer sistema de opressão da qual esse ato nos revela o método.

O ato de linguagem envolvido na violência em questão, é um ato de ventriloquacidade. Em primeiro lugar, os agentes do machismo precisam tratar as pessoas como objetos: é preciso ver as mulheres como coisas. No entanto, não se trata de transformá-las em bolas ou chuteiras (para ficar no universo simbólico do futebol), mas de reduzi-las a autômatos. De um ponto de vista machista, as mulheres nunca foram mais do que bonecas.
Como coisas, as mulheres russas deviam fazer parte de um espetáculo de aviltamento e difamação. Nesse caso, os machistas fizeram com que elas falassem alguma coisa – não o que elas mesmas pensavam, mas antes o que eles pensavam.

Perceba-se a figura em jogo. O que “eles pensam” encontra sua expressão como parte do corpo físico feminino com determinadas características: a “buceta rosa”, genitália e cor. A forma é violenta, mas o conteúdo também, afinal, há a objetificação de uma parte do corpo rebaixada à arma de humilhação. A “buceta rosa” serviu como uma pedra colocada na boca das mulheres. O método foi violento, mas como não envolveu espancamento nem morte, podemos dizer que foi uma espécie de “bullying”, arma básica da violência patriarcal e machista.

Ora, o conceito de corpo é complexo e não se reduz aquilo que ocupa lugar no espaço. Pensemos, neste caso, a voz e o pensamento como um corpo. A voz é física e é um meio de comunicação e de expressão, mas também pode ser um meio de violência. Por meio da voz, esse corpo diáfano, chegamos à percepção e, assim, ao corpo do outro. A misoginia, como forma discursiva, é violenta na forma e no conteúdo. É o velho discurso de ódio, naturalizado na sociedade machista. A cena violenta com as mulheres se torna normal para os imbecis machistas que tentam esconder a imbecilidade pela astúcia patética embutida no ato.

As mulheres foram reduzidas a animais e a objetos ao longo da história. Não é à toa que os xingamentos com os quais se tenta humilhar uma mulher sejam, geralmente, denominações animais. O evento envolvendo os machistas brasileiros é um exemplo de que o machismo – como o Brasil – se parece cada vez mais com o século 19, quando Hoffmann usou uma personagem boneca para falar de uma mulher ideal. Mas nem tudo é retrocesso no país do eterno retorno do mesmo. O machismo, pelo menos, está em um estágio avançado de decomposição emocional ao reduzir as mulheres a autômatos.

Por isso, pela redução do ser humano ao autômato, o ato dos brasileiros em relação às russas pode ser considerado um ato de lesa humanidade. As mulheres russas que falaram o que não pensaram sem saber o que diziam foram roubadas de sua humanidade no instante do assalto machista. Todo o machismo sempre fez e continua a fazer isso, mas talvez nunca tenha ficado tão explícito como naquele momento em que os machistas ventríloquos se manifestaram.

Eles falaram por meio do corpo das outras, mas tampouco eles falaram o que realmente pensam – se é que pensam -, porque o machismo implica um discurso pronto que opera no cancelamento da reflexão. Um recurso ao clichê, ao texto e à expressão pronta, sem nenhuma criatividade, àquilo que é copiado e colado, no caso do evento na Rússia, nas bocas das mulheres que falam sem saber o que fazem contra si mesmas. É a misoginia imposta à boca de uma mulher. O machismo é um discurso pronto que vem sendo desmontado, e essa cena nos faz pensar também que toda mulher que repete o discurso machista é, infelizmente, como a russa que fala sobre a “buceta rosa”, novo signo da opressão machista, cujo significado ela perde de vista. Ela se torna vítima e algoz de si mesma ao ter caído na armadilha machista.

Não existe opressão fora da linguagem. Assim, os sistemas se especializam em operações de linguagem. Dos discursos prontos que transitam no cotidiano às grandes corporações donas dos meios de comunicação – que são meios de produção da mentalidade geral por meio da linguagem – é sempre a mesma operação que está em jogo.

A mulher machista não é diferente do “pobre de direita” que repete a ideologia dominante imposta a ele contra si mesmo. Detalhe: as mulheres russas só repetiram o que lhes impunham os machistas porque tudo parecia uma simples brincadeira, afinal, era sugerido em tom de graça. O capitalismo e o machismo, bem como o racismo, são demônios covardes que sempre tentam parecer primeiramente graciosos para seduzir e, assim, oprimir mais facilmente.

Me pergunto se esse gesto dos brasileiros seria realizado no Estados Unidos e se ele não é um resquício da guerra fria que sobrou para o capitalismo machista breganejo de nossa nação colonizada.

(2) Comentários

  1. Prefeita a análise da filósofa, as usual! A associação “mulher machista”-“pobre de direita” nao é tão óbvia quanto possa parecer e destrinchá-la em suas maquinações subjetivas que engendram linguagens cristalizadoras do status quo é uma forma necessária de reverter este modo autômato de funcionamento. Necessária e Urgente como Marcia nos mostra.

  2. As grandes mídias são instrumentos que infelizmente costumam pregar e incitar o que é de mais pobre, em termos de ética, para a sociedade. Um desserviço. Como que uma tentativa de manutenção da ignorância de uns, para assim, serem tratados segundo à intenção dos sádicos que optam pela violência em suas diversas formas.

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