Para não esquecer e não ser esquecido

Para não esquecer e não ser esquecido
O músico e compositor Renato Russo (Reprodução)

 

“Cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma vez só e nunca mais”, afirma o escritor alemão Hermann Hesse em Demian (1925). Se cada ser humano nasce dessa confluência de vozes e fenômenos, os registros que deixa na vida são marcas de sua formação. Pinturas rupestres da autocriação.

Durante sua trajetória, Renato Russo compôs muitas listas de preferências culturais, sentimentais, de metas e tarefas cotidianas. Metódico, enumerava as vozes e os fenômenos que o atravessavam em sua intimidade. Três décadas dessa produção foram reunidas em O livro das listas, lançado em setembro pela Companhia das Letras. Com organização e notas dos poetas Tarso de Melo e Sofia Mariutti, a obra reúne 53 listas escritas pelo músico desde quando ainda se chamava Manfredini Junior –  até o final de 1995, já Renato Russo, ídolo nacional.

Hermann Hesse, inclusive, é um dos autores que aparecem em uma das listas, a de melhores livros lidos. Entre os primeiros estão O apanhador no campo de centeio (1951) de J.D. Salinger, Admirável mundo novo (1931), de Aldous Huxley, e os Contos de Edgar Allan Poe. Dos poetas, há transcrições de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, W. H. Auden e Percy Shelley. Em uma pequena nota, indica os contemporâneos que gostaria de ler: Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto, Augusto Massi e Júlio Castañon.

“A lista estruturava o jeito dele pensar. Nelas colocava suas questões, suas dúvidas”, afirma Tarso de Melo. “Na lista de sentimentos, por exemplo, vemos uma espécie de infelicidade, a angústia com a vida pessoal que nunca deixou de revelar, com a coisa de ser gay, com os relacionamentos,  com o fato de não ter formado uma família para a qual pudesse voltar.”

Para a organizadora, os escritos também dão a dimensão da mistura cultural de que o músico se nutriu para compor sua obra. “Ele inventou a si próprio nessa relação com o livro, com o disco e com o cinema”, afirma Mariutti. Inventou Renato Russo, o roqueiro com ar “professoral”. O punk culto que em uma mesma lista de mais ouvidas colocava Wagner e Schubert junto de Nirvana, Chico Science e Bob Dylan.

“Ele tinha uma relação amorosa com as obras de arte pois sabia que precisava daquilo para produzir coisas de alto nível”, afirma o organizador. “Ele se preocupava muito com uma atemporalidade da produção dele, que ela durasse.”

Registrava as influências, igualmente, para não ser esquecido. Entre as listas mais juvenis da época em que anotava as tarefas do curso de jornalismo no Centro de Ensino Unificado de Brasília (Ceub), havia uma de “qualidade que mais aprecia”. Anotou “ambição” como traço característico e defeito tolerável.

Mesmo que as listas sejam somente a ponta do iceberg da formação de Russo, como nota o organizador, elas evidenciam seu modo de pensar metódico, numérico. A enumeração aparece nas próprias canções. É o caso de “Perfeição”, do álbum Descobrimento do Brasil (1993), em que lista a estupidez humana a ser “celebrada” na polícia, na televisão, no governo, no Estado que não é nação.

 

Entre suas referências musicais e cinematográficas estão lançamentos alemães, britânicos e norte-americanos, reflexos da sua alfabetização em inglês (morou em Nova York dos sete anos nove anos). Também em inglês escreveu o livro The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária, publicado no ano passado na ocasião dos 20 anos de sua morte, em 11 de outubro. No texto, Russo imagina a história de uma banda na qual funde suas influências, gostos e a identidade musical que já delineava. Concebida entre os 15 e os 17 anos, a narrativa é uma espécie de romantização dos bastidores da vida de artista.

Neste ano, além de O livro das listas, o músico também é homenageado com uma mostra inédita. Renato Russo, em cartaz até 28 de janeiro no MIS de São Paulo, exibe cerca de mil objetos que o vocalista do Legião Urbana guardava no seu apartamento em Ipanema. São CDs, livros, roupas, desenhos, coleções de baralhos de tarô e cartas trocadas com fãs, que o visitante pode observar nos dois andares que abrigam a exposição.

Entre os itens, estão cerca de 60 cadernos de anotações pessoais, que Russo manteve junto de si até sua morte, aos 36 anos. Sempre consultava os cadernos, mesmo os mais velhos. Mais do que armazenar, escrevia para dialogar constantemente consigo mesmo e com os outros. “Nos últimos cadernos sua letra é quase um garrancho, porque mesmo próximo da morte, com dificuldades para escrever, continuava fazendo as listas”, afirma Tarso de Melo.

Entre os 60 cadernos é que os organizadores foram coletar os 53 textos para compor O livro das listas, uma espécie de “dicionário de referências de Renato. Apesar dos lances imaginativos – como a lista de convidados para um jantar, que incluía Jesus Cristo, Janis Joplin, Rimbaud, Da Vinci e Fernando Pessoa – suas listas também o remetem à realidade concreta. Lembrava o que comprar, que era preciso arrumar o apartamento, passar na livraria, fumar menos, fazer mais exercícios, compor mais, dormir menos. “A maior parte das pessoas escreve listas de projetos, mas Russo inverte isso. Muito jovem ele já vivia um sonho, então anota coisas que o tragam de volta à realidade, ao cotidiano”, afirma Tarso de Melo.

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