Lavagem cerebral: sobre a loucura coletiva brasileira

Lavagem cerebral: sobre a loucura coletiva brasileira
Imagem do cérebro humano criada pela Dutch National Ballet para o TEDxAmsterdam, em 2011 (Reprodução/Vimeo)

 

Fora do Brasil, ninguém acredita no que está acontecendo dentro do Brasil. Tenho falado com cidadãos americanos das mais diversas profissões, não somente com professores ou intelectuais, e o sentimento de perplexidade, consternação e pena quanto ao Brasil são comuns. A imagem do povo cordial, afetuoso e amoroso cai por terra, mas não sem questionamento. Todos se perguntam: Como o Brasil chegou a isso? Como foi capaz de eleger o fascismo? Como Bolsonaro chegou ao poder? Quem recebeu as notícias do envolvimento da família do presidente com as milícias e o assassinato de Marielle, quem viu as diversas atitudes do presidente que culminaram no famoso vídeo do golden shower conspurcando o Carnaval, quem assiste a subserviência do presidente a Donald Trump, mesmo sendo cidadão americano, está mais do que estarrecido e com vergonha alheia. Assim como os brasileiros que permanecem lúcidos, todos percebem que há algo de muito estranho acontecendo.

Quem viu as falas dos ministros, sobretudo da ministra das mulheres sobre a sexualidade de pais e bebês holandeses, ou entendeu a farsa do kit gay e da “mamaroca” (algo muito difícil de explicar para qualquer pessoa), percebe que não estamos vivendo em um padrão de normalidade.

Ouvi manifestações de consternação sobre o Brasil, não apenas de pessoas democráticas e liberais, mas também de pessoas conservadoras nos hábitos e na compreensão da economia. Ou seja, parece que, apesar de Trump, o bom senso e a razoabilidade ainda são considerados por aqui. Embora também haja gente perturbada pelo fascismo nos EUA desde muito tempo (lembremos do grande estudo A personalidade autoritária, de Adorno, feito nos EUA dos anos 40), até agora não encontrei nenhum fascista dizendo-se orgulhoso de seu fascismo como encontrei nas ruas do Brasil.

Verdade é que, também nos Estados Unidos, a classe média baixa se deixa levar pelo fascismo. E as classes cultural ou economicamente superiores se chocam com isso. Ninguém entende por que alguém é capaz de defender o fim da seguridade social como quer Trump, ou de defender o fim de um direito qualquer. Pressupõe-se que direitos são bons para todos e isso é uma base subjetiva fundamental à democracia. É claro que há no Brasil, assim como nos EUA, quem, dependendo da previdência social, também deseje o seu fim, mas enquanto houver perplexidade podemos esperar que as pessoas reajam e acordem.

Classe média

Salvo engano, foi o escritor João Antonio quem primeiro usou a expressão “classe mérdia”. Com pesar, há semanas escrevi sobre a “merda” como metonímia explicativa do Brasil atual. Quem quiser pensar sobre o lodo que nos afunda e sua “qualidade” pode ler o artigo publicado nesta coluna. Nele, não trabalhei a questão da classe social que menciono agora com a preocupação de trazer à luz mais um aspecto para nossa reflexão infinita sobre a grande questão ética que nos deve mover na vida: Como nos tornamos quem somos?

Menciono a classe média porque ela é originalmente objeto de estudos de todos os teóricos do fascismo. Originalmente, a classe média é a classe que se deixa levar pelo fascismo. Ela adere à propaganda fascista manipulada por dirigentes do governo, do estado ou das corporações interessadas em manipular. No Brasil há milícias midiáticas em ação tentando destruir reputações, como sabemos. Eu mesma sou vítima disso. Estou até escrevendo um livro sobre isso, pois é muito interessante analisar como funciona. Mas em outro momento falarei melhor sobre o assunto.

Os publicitários do fascismo seguem o exemplo de Goebbels, chefe da propaganda de Hitler e um dos seus homens mais importantes, e definem as linhas do fascismo em cada caso. Sem discurso de ódio o fascismo não se sustenta. Na Itália e na Alemanha foi o ódio aos judeus que encabeçou o ódio geral; no Brasil é o ódio à esquerda, sobretudo ao PT, às feministas e aos ativistas, todos colocados sob o guarda-chuva da paranoia geral “comunistas”. Falando sério, na prática não se pode dizer que haja comunistas no Brasil, embora possa haver algumas poucas pessoas que se guiem ética e politicamente pela utopia de um mundo sem desigualdade e perfeito de um ponto de vista comunitário, econômico e social.  Com todo o respeito, é um evidente exagero chamar de “comunista” qualquer pessoa simplesmente porque ela defenda direitos fundamentais. Ou será maldade? Ou será burrice mesmo? Quando conto aos estrangeiros que no Brasil pessoas que têm uma mentalidade democrática são chamadas atualmente de comunistas, eles dizem “então eu também sou comunista”.

Voltarei a esse assunto em algumas semanas, pois precisamos falar sobre comunismo. A tarefa de quem pensa analiticamente continua sendo combater a mistificação.

Lavagem cerebral

Chamar de “lavagem cerebral” o que vem se passando no Brasil não é um exagero. Lavagem cerebral não é apenas uma expressão metafórica como muitos pensam. É uma prática psicossocial relativamente simples para quem a põe em curso. Segundo Naomi Klein, que se dedicou a expor o seu funcionamento em A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (Record), livro que sempre recomendo, a lavagem cerebral tem uma história intimamente ligada à violência, às catástrofes, à manipulação de crises que fazem com que as pessoas aceitem políticas econômicas que não aceitariam em sã consciência. A ideia de um livre mercado contrário a um mínimo Estado de bem estar social é o que visa a “doutrina do choque”, um método organizado para destruir países inteiros e suas democracias.

Vale a pena ler o livro para entender os casos que ela conta, dos “choques” corporais aos econômicos, e o programa MK-Ultra, que compreendeu e especializou a tortura em seres humanos como procedimento de controle da mente, ou lavagem cerebral. Não é a toa que o presidente da república e seus filhos adorem o famoso torturador Carlos Alberto Ustra. O motivo pelo qual esse fato, secreto durante muito tempo, tornou-se motivo de orgulho é, no entanto, um mistério. Nos faz pensar se o orgulho exposto é apenas gozo perverso ou se entenderam que o cinismo é uma ótima técnica para arregimentar otários. Talvez as duas alternativas sejam válidas para o caso.

Talvez a partir dessas considerações seja mais fácil entender as falas e atitudes absurdas do presidente. Desde o simples vestir-se de modo muito inadequado até praticar o tal golden shower sobre o Brasil, desde fazer um discurso patético em Davos até falas racistas e homofóbicas, o presidente abre janelas diariamente para perturbar mentalmente a população.

A função disso tudo, e de objetos tais como a “mamaroca”, é criar confusão mental. Ora, a moral é uma função mental, uma função psicológica facilmente manipulável. Sejam objetos, sejam ideias estapafúrdias, tudo serve como chave que abre janelas emocionais em qualquer pessoa. A experiência da loucura coletiva, ou seja, a perturbação emocional nas massas é provocada. Você tem que estar muito protegido por reflexão, amor próprio, compreensão do sentido e valores democráticos para não cair nesses jogos. E se sua comunidade ou família não ajuda estando ela mesma a dormir um sono dogmático, então, as pessoas realmente podem sucumbir ao delírio.

A cultura e a educação tendem a dar estofo para as pessoas contra esse abismo. Mas esse estofo é tirado diariamente de todos pelos discursos prontos das corporações televisivas e religiosas. A indústria cultural manipula o pavor e o êxtase, reduzindo cada um a um rato de laboratório ébrio de fake news e desinformação. Nesse cenário, permanecer lúcido é a única resistência real para que o seu cérebro e a sua alma não se vão com a água do banho de estupidez que práticas como o golden shower visam produzir sobre pessoas desassistidas.

PS: É sobre essas questões e muitas outras que escrevi em meu novo livro Delírio do poder: psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação que está chegando nas livrarias nos próximos dias.


Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT         

(6) Comentários

  1. A maioria das classes fica e média já foi pobre. Passaram necessidade, sofreram humilhações. É horrível ser pobre diz milionária . J K. Rowling, autora do Harry Potter, que ja foi muito pobre. Então, essa maioria se sustenta na riqueza a qualquer custo , principalmente apoiando qualquer governo, ou candidato, anticomunista.

  2. Espetacular análise de conjuntura
    Muito triste difícil e complexo viver esse tempo nebuloso insano onde a ética rodopia a nossa volta como se fosse um forte redemoinho

  3. Penso em não definirmos o que e a loucura, porque esta pode ser relativa, mas definirmos o humano; o humano como condição de existência, com o Lívio arbítrio e o poder de sua própria vida em suas mãos.
    Porque começamos este processo destrutivo ou melhor autodestrutivo?
    Começamos não, Porque aceitamos. Todos sabemos que este processo e importado pelo IMPERIALISMO. Sabemos que tanto os Presidentes do Brasil e dos EUA, são simples marionetes corporativas. Sabemos quem são os verdadeiros vilões da Historia —-OS BANCOS E AS CORPORACOES Transnacionais.
    O Fascismo sustenta todos os projetos capitalistas imperialistas e agora mais que nunca e alicerçado pela vigilância, pelo controle dos super computadores, robôs etc. Todo estes aparatos nos vão dar 2 alternativas,
    sermos a rebelião ou morrermos (em todos os sentidos).
    Para sermos a rebelião, não podemos ficar somente no confronto reativo ao Sistema (capitalista imperialista da supremacia masculina branca), pois, não temos mais tempo para isso; também não usamos as mesmas armas que eles; literalmente falando,
    Então, o que nos sobra?
    Criarmos um SISTEMA PARALELO.
    Neste sistema tentamos já vivenciar o que queremos, fazemos e experimentamos relações que por teoria nos parece razoável e humanística, então tateamos, sugerimos, pensamos e criamos, pois tudo esta para ser criado , pois não temos referencia ainda,
    A vantagem disso e que faz com que usemos nossa criatividade intensamente.
    O que quero dizer e que, se Ficarmos somente na reação ao Fascismo, este processo não vai nos tirar do Fascismo, mas vai alimenta-lo;
    O que realmente nos vai tirar do Fascismo e vivenciarmos e criarmos no paralelo outra realidade, e que seja A que queremos. Então começar a substituir Relações verticais de Poder, competição e hierarquia por Relações horizontais de cooperação e solidariedade, já pode ser um bom começo.
    Mas adiante trocamos a moeda, unimos os coletivos, articulamos nossas possibilidades. Só assim me parece que poderemos escapar deste vendaval de crueldade e desumanidade no qual estamos vivendo nossa condição humana. Só assim conseguiremos resistir a este fascismo do inconsciente coletivo.

    por
    Adriana Varella, Artista, Anarquista Queer- trans Feminista.

  4. Parabéns pela análise.
    Se não resolve o problema grave que vivenciamos, nos dá esperança que ainda é possível reverter o quadro, como tantos outros povos fizeram ao longo da história.
    Parabéns também pela postura e coragem.
    Saudações democráticas.

  5. É preciso muita lucidez, logo, um defensor do facismo (ou idólatra do Bozo) não escreveria um texto com essa qualidade.

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