Lacan chinês
O filósofo Jacques Lacan (Divulgação)
Um analisante lembra-se de sua mãe dizendo: “Isso acaba com meus dias de vida”. Antes disso a frase lhe parecia enigmática: “dias divida”. Seria uma ordem para “dividir os dias”? Como se faz em boa parte do Brasil, pronunciamos a letra “e” na expressão, como “i” resultando em “dias di vida”. O fenômeno chamado epêntese, ausente no português de Portugal, criava um segundo sentido potencial, porque convidava ao deslocamento da acentuação, de “divida”, do verbo dividir, para “dívida”, substantivo de pesadas consequências quando se pensa na relação entre um filho e sua mãe.
Essa complexa operação de leitura e desleitura, envolvendo equívocos e homofonias com passagens incertas da língua oral para a língua escrita, faz parte do cotidiano da interpretação psicanalítica. Durante algum tempo suponha-se que, para praticar sua arte, o psicanalista deveria possuir alguma sensibilidade poética. Qual poesia haveria de lhe servir melhor? Os clássicos da retórica latina, descritos por Quintiliano? A poesia que se libertou do verso, no veio de Mallarmé ou Ezra Pound? A poesia surrealista de Éluard ou Prévert e seu esforço por um ato poético? Procurando o ponto arquimediano da poesia psicanalítica chegamos a uma espécie de caso problema. Uma língua capaz de desmontar as categorias nas quais estávamos acostumados a colocar a questão ideia ou coisa, forma ou matéria, conceito ou palavra. Como declarou Lacan em 1971, no seu seminário De um discurso que não seria do semblante: “é que talvez eu só seja lacaniano p
Assine a Revista Cult e
tenha acesso a conteúdos exclusivos
Assinar »