Kierkegaard e a reinvenção do existencialismo

Kierkegaard e a reinvenção do existencialismo
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, considerado o primeiro filósofo existencialista (Reprodução)

 

“A subjetividade é a verdade”. Tal juízo, dito pelo próprio Kierkegaard no seu Post Scriptum não científico às Migalhas filosóficas, poderia ser a nossa deixa para apresentar e definir essa filosofia que, salvo engano, foi a primeira a se designar “existencialista”.

Nada parece, aliás, mais adequado quando igualmente se sabe que o existencialismo que fez fama e fortuna, o francês, não se cansava de anunciar justamente um retorno à “subjetividade” como a cura para todos os males (os passíveis de cura, evidentemente).

Além do mais, há outro elemento, em parte resultado do que se chamou de “renascimento” de Kierkegaard nos anos 1920, que poderíamos adicionar a essa constelação de coincidências que parecem culminar no encontro do existencialismo francês com Kierkegaard: em 1938, Jean Whal publicava seus Estudos kierkegaardianos, e, sem o saber, tornava-se o primeiro leitor qualificado – como seus textos posteriores atestam – para entender a virada da maré existencialista na França, então em curso acelerado.

Entretanto, qual a surpresa quando se depara, ao abrir o primeiro livro de ensaios de Merleau-Ponty, Sentido e sem sentido, com um artigo intitulado “O existencialismo em Hegel”.

Não apenas Kierkegaard havia escrito deliberadamente contra Hegel – ou, como ele talvez preferisse, havia escrito justamente “migalhas” filosóficas, de maneira “não científica”, contra um filósofo do “sistema” e “científico” –, como a própria idéia de uma arena privilegiada para o espetáculo da verdade, a existência, marcada por sua necessária finitude, tem como matriz a oposição que Kierkegaard pretendeu fazer ao famigerado saber absoluto hegeliano, que, como se sabe, afirma peremptoriamente (uma vez que é absoluto) que “a verdade é o resultado, que o resultado é a verdade”.

Daí que, talvez, valha a pena rastrear o que há de Kierkegaard e o que há de Hegel nesse “novo” existencialismo, prestes a ganhar notoriedade no fim dos anos 1940. Como Hegel é um caso muito especial, fiquemos por hora com Kierkegaard.

Tomemos como exemplo o ensaio de Merleau-Ponty indicado acima. Lá, Kierkegaard aparece assimilado a tudo que é “concreto” (e, mesmo com Marx, Merleau-Ponty sugere algum parentesco). Mas não escapa a Merleau-Ponty uma distinção importante: trata-se do cuidado com que ele opõe e separa a “boa” imanência da “má” imanência. A última, a do espírito absoluto que engole a subjetividade; a primeira, a da subjetividade que se dá no mundo. Sua apreciação de Hegel é sintoma desse critério: desde cedo, Merleau-Ponty percebe que o absoluto hegeliano tornar-se-á uma má imanência à medida que traz para o buraco negro do conceito (o mecanismo do absoluto) a existência, que, muitas vezes – senão todas –, é aqui índice da subjetividade. Quer dizer, esvazia a subjetividade da sua capacidade de autoposição ou, diríamos simplesmente, de sua iniciativa.

Ora, tal apreciação põe Merleau-Ponty muito próximo de Kierkegaard e da sua “dialética”, que significa, com todas as conseqüências que se pode tirar disso, uma intransigente ancoragem do sentido na subjetividade (e, tal como a “situação” sartreana, serve de crítica ao hegelianismo das altas altitudes). Isso sugerirá a Merleau-Ponty, nos parece, a possibilidade de retomar uma tradição dialética representada, sem dúvida, pelo próprio Kierkegaard, que se autodenomina dialético em vários textos, e que se dá primordialmente na escala da subjetividade e não na escala do saber absoluto; e tudo, obviamente, em benefício desse existencialismo redivivo do qual ele faz parte.

Vejamos duas passagens de Kierkegaard:

“O problema colocado nesta brochura, sem nenhuma pretensão de o ter resolvido, já que se trata simplesmente de o pôr, seria o seguinte: pode haver consciência eterna baseada num ponto de partida histórico; como um tal ponto de partida pode oferecer um interesse mais que histórico; pode-se fundar uma felicidade eterna num saber histórico?

(…)

“Entretanto, para prevenir toda confusão, lembremos imediatamente que o problema não é aquele da verdade do cristianismo, mas da relação do indivíduo com o cristianismo; em outros termos, ele não concerne ao zelo sistemático que um indivíduo, alhures indiferente, desprende para alinhar em si a verdade do cristianismo, mas no cuidado e no interesse infinitos que ele dá à questão de suas relações com essa doutrina. Em termos tão simples quanto possível (e para submeter-me à experiência): ‘Eu, Johanes Climacus, nascido nesta cidade, hoje com trinta anos, homem ordinário como a maioria, admito que para mim como para um criado e para um professor, há em perspectiva um bem supremo que se chama felicidade eterna; ouvi dizer que o cristianismo condiciona esse bem, eu pergunto como relacionar-me com essa doutrina?’. Ouço um pensador: ‘Que imprudência, ele diz, que atroz vaidade em nosso século 19 teocêntrico e tão importante para a especulação, que ultraje ousar supor um tal peso a seu pobre e pequeno eu!’. Tremo; se não tivesse me firmado contra os diversos tipos do horror, eu me enfiaria no buraco do camundongo. Mas eu me sinto livre de toda acusação nesse sentido, pois não me é própria a insolência; ela me vem, como obrigação, do cristianismo.”1

Nas passagens transcritas (a prosa de Kierkegaard vale a longa citação) de um livro em que o anti-hegelianismo aparece já no título (o caráter “não científico” do post-scriptum), Kierkergaard centra o fogo naquilo que chamará de “pensamento objetivo” e cuja natureza, radicalmente diferente da subjetividade, inviabilizaria a própria subjetividade, se o tomarmos como princípio ou fundamento. Como ele parece estar bem ciente das implicações desse recorte, que diferencia naturezas e não apenas separa quantidades, asseverará adiante (cf. p. 52) que a tese hegeliana “segunda a qual o exterior é o interior; e o interior, o exterior” não vale para o cristianismo justamente porque o cristianismo não será, na versão inventiva de Kierkergaard, a doutrina em forma de compêndio, mas uma relação íntima do eu com a idéia inescrutável, o espaço válido para a liberdade e a invenção do pequeno eu do filósofo.

Há outro elemento-chave para essa conversão pela subjetividade e que não aparece no texto citado: trata-se do instante, descrito em detalhes nas próprias Migalhas filosóficas e em O conceito de angústia. O instante é, por excelência, o limite existencial do tempo, porque é nele que o tempo pode realizar um salto qualitativo. Será no instante que o homem – interessado em sua própria felicidade e, portanto, fazendo uso de sua liberdade –, supera precariamente os limites de sua finitude; é no instante que as palavras do mestre (interior) se convertem em ensinamentos para o discípulo.

Ora, o intrigante desse parti pris é seu resultado. Como dirá Merleau-Ponty, menos que uma outra teologia, as obras de Kierkegaard fundam uma antropologia em que o constante e, por vezes, inusitado desdobramento do sentido interior é a pedra de toque do movimento da subjetividade.

Importante notar, ademais, que a tese hegeliana da reversibilidade interior-exterior é o que mais interessa aos existencialistas, que não desistem da procura de um “existencialismo” em Hegel. Dado que a intencionalidade é, em suma, a posição subjetiva da objetividade, não serão poucos os momentos em que o Hegel da “fenomenologia do espírito”, isto é, o Hegel dos momentos objetivos da “subjetividade”, na tradução dos existencialistas, aparecerá como mais essencial que Kierkegaard e seu existencialismo da “interioridade”, interioridade em relação à qual Sartre e Merleau-Ponty pretendem escapar.

Entretanto, se é o interior que contamina o exterior – e, portanto, deixamos a salvo a consciência –, se é o interior que reduz o exterior às significações válidas para mim, então permanece o ponto de partida de Kierkegaard. Se Kierkegaard não aceita outra dialética senão aquela que ele chama de “comunicativa” e “negativa” (cf. op. cit., p. 61 e ss.), é porque essa subjetividade, mesmo que ganhe ares “objetivos” graças à intencionalidade, não realizará os feitos do saber absoluto, e bem poderá se aparentar à dialética “truncada” sartreana.

Não à toa Sartre descobrirá por meio dela o mundo dos “artistas e dos profetas”. Kierkegaard sentir-se-ia em casa.


Alexandre Carrasco é professor do Departamento de Filosofia da UNIFESP/EPM

(1) Comentário

  1. Dialetica Materialista começou com August Conte, Hegel,Karl Marx. Esses referência tambem pra outros intelectuais neste campo da filosofia! – marcio “osbourne” silva de almeida – joinville/sc

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