O conflito Israel-Palestina: uma perspectiva crítica para além do corredor moral da esquerda
Esta semana, o jornalista de esquerda Breno Altman, sempre ele, perguntava-se retoricamente: “Como parar a mão assassina de Israel?”. “A única saída”, declarou placidamente, “é uma escalada militar que envolva Hezbolah, Síria e Irã, com aval de Rússia e China, alimentada pela comoção mundial e a solidariedade dos palestinos, com a rebelião estendida à Cisjordânia.” Por fim, remata com a tranquilidade de um grande general olhando o campo de batalha: “Então haverá real negociação de paz”.
Sim, é isso mesmo que você leu. O plano de paz de Altman é tocar fogo no Oriente Médio e envolver a Rússia e a China na guerra. Altman é um revolucionário. Um desses revolucionários de ar-condicionado para os quais a morte e a destruição de uma guerra são sempre uma abstração, como num game ou num jogo de tabuleiro. Lembra-me um personagem de um desenho animado que declara ao povo reunido diante dele: “Infelizmente, nesta guerra, muitos de vocês irão morrer, mas lhes asseguro que é um sacrifício que valerá a pena”. O sacrifício dos combatentes pode, efetivamente, ser lindo e nobre desde que não sejamos nós nem os nossos a colocar a corda no pescoço.
Mas Altman é apenas uma parte visível e próxima de uma posição de esquerda muito comum neste conflito. A sua posição é de condenação imediata e total de um lado, o de Israel. É um corredor moral estreito do qual as pessoas decentes não podem escapar, têm que caminhar por ele até o fim. Como no caso dos “homens de bem” do bolsonarismo, o sujeito decente desta esquerda não tem o direito de escolher outro caminho, de sopesar argumentos, de examinar todos os lados e, sobretudo, de fazer distinções.
A ele não é permitido, por exemplo, distinguir entre, de um lado, a hedionda matança de cidadãos de Israel e de outros países no terrível dia 7 de outubro e, do outro, a chuva de mísseis que o Estado de Israel faz desaguar nesses dias sobre a Faixa de Gaza. E condenar a ambos. Na verdade, enquanto nós víamos, horrorizados, vídeos das barbaridades cometidas pelo Hamas, eles já recitavam que se tratava da justa reação de um povo oprimido. Há dois lados nesta história e um deles está sempre certo.
Para quem não é soldadinho de nenhuma militância, parece claro que é possível condenar nos mais severos termos as indesculpáveis atrocidades do Hamas no início do mês passado, a não devolução dos civis ainda sequestrados ou o uso que os terroristas fazem dos habitantes de Gaza como escudos humanos. E, ato contínuo, deplorar a brutal mão de ferro do governo de extrema direita de Israel, que considera que matar com mísseis quem nada teve a ver com os ataques do Hamas é um dano colateral aceitável e necessário. Ou até mesmo o histórico de brutalidades a que são submetidos os habitantes de Gaza e da Cisjordânia. Isso, contudo, é muita firula para a esquerda altmaniana: condena-se o genocídio de Israel, entende-se o resto.
No corredor estreito desta esquerda não se pode sequer distinguir entre os governos de Israel e da Faixa de Gaza, de um lado, e a sua população civil, do outro. É tudo a mesma coisa, de forma que se passa rapidamente da condenação das barbaridades dos governos e do Estado de Israel para a condenação de todo israelense e, em seguida, do sionismo e, não raro, de todo judeu da face da Terra. O que é exatamente o mesmo, mudando-se apenas o vetor, que fazem os radicais da direita, que responsabilizam cada palestino pelo que faz o Hamas, e saltam daí para a condenação de todos os muçulmanos do mundo. Nem a distinção entre religião, língua e etnia são capazes de fazer: palestinos e persas viram árabes; cristãos da Palestina, Jordânia, Síria e Líbano viram islâmicos, é tudo a mesma pasta. Distinções geram hesitações e soldadinhos da militância, de um lado e do outro, não podem hesitar.
Não se pode admitir no estreito corredor ideológico nem mesmo quem considera que tanto Israel quanto os palestinos têm direito não só a existir e a prosperar, mas a um Estado próprio onde viver em paz. Imaginem se descobrissem que há sionistas que defendem que também os palestinos têm direito a uma nação? Como fariam para continuar a usa a palavra “sionista” como insulto e ofensa?
Todos têm que fazer uma escolha e apenas uma, de forma que os decentes estarão comprometidos com os palestinos, não importam as circunstâncias, restando aos outros a opção única de apoiador incondicional de Israel. A condição de pró-Palestina eleva o sujeito automaticamente à virtuosa condição de misericordioso, do lado certo da história, favorável a todos os oprimidos da Terra, sensível à dor das criancinhas, dos órfãos e das viúvas. Aliás, a tônica da fantasia é bem essa: a tragédia de Gaza é mais uma passarela pela qual pessoas decentes da esquerda altmaniana desfilam as suas virtudes na cara de uma multidão de degenerados e insensíveis.
O fato é que a “questão Palestina” está desmoralizando uma parcela considerável da esquerda, até mesmo naquilo que à autoimagem da esquerda parecia essencial. Pois é fato que a esquerda gosta de se pensar como a parte mais educada, sofisticada intelectualmente, crítica, tolerante e iluminista da sociedade. Mas enquanto soldadinhos da militância incondicional da “causa palestina”, o que se vê é uma esquerda ignorante, fanatizada e estúpida que divide o mundo em dois corredores, o da virtude e o da depravação, sem terceira opção.
Assim, se você faz uma crítica a uma posição corrente da esquerda muito rasteira e ignorante sobre o tema, como esta que abre a coluna, o sujeito lhe aponta o dedo e esbraveja que você só critica, sem apresentar uma solução. Mas, pergunto-me, desde quando a esquerda deixou de valorizar críticas e desafio a dogmas? Então virá um outro, de pé no peito, a declarar que “este é um pseudointelectual que só critica”. Ora, mas não é esse o trabalho dos intelectuais na tradição de esquerda? Desconfiar das respostas óbvias e das questões simplórias, propor novos frames, discutir dogmas, refutar consensos obtusos?
No fim de tudo, nem a crítica à estreiteza do corredor pelo qual desfila a virtude é aceitável. “A crítica pela crítica, sem apresentar outra solução, é nula.” A “solução criticada”, no caso, consiste em atiçar uma guerra mundial para produzir paz. Posição, aliás, que deveria ser descartada automaticamente por qualquer pessoa minimamente sensata. Ora, o que é nulo é justamente propor soluções absurdas e o problema começou quando uma franja alucinada da esquerda resolveu demitir os críticos e começar a curvar a espinha e a mugir para artífices irresponsáveis e fanáticos de “soluções finais”. O altamanismo é o túmulo da esquerda que pensa.
Da minha parte e, espero, da de vocês, recuso-me a aceitar todas as três premissas embutidas nesta perspectiva. Primeiro, recuso-me a ter que escolher um lado entre Israel e Palestina e assumir um tal compromisso com ele que lhe conceda todas as imunidades e direitos. É isso que me dá liberdade para condenar com horror o que fez o Hamas e desprezar a extrema direita de Israel ao mesmo tempo. Ninguém tem que escolher um lado, muito menos comprometer-se com ele a este ponto.
Segundo, recuso-me a entender que na questão Israel-Palestina há um lado com direitos e outro sem direitos, como se um fosse o lado bom e o outro o mau, pois na verdade ambos estão certos em querer uma terra e um país. Em terreno moral, às vezes a tensão é entre o certo e o certo e não entre o certo e o errado; a tensão é fruto das dificuldades de acomodação de duas reivindicações corretas naquilo que nelas colide.
Terceiro, recuso-me aceitar que um lado esteja certo e o outro errado quando se trata de degolar criancinhas, sequestrar pessoas ou despedaçar civis com mísseis, pois na verdade a mão que trucida está sempre errada. Às vezes, há duas posições erradas em disputa, sob certo aspecto, e ambas posições certas, sob outro ângulo. Pensar criticamente é fazer as distinções apropriadas e começar por aí a construir saídas.
Não há soluções simples para questões complexas, mas, pelo menos, continuemos lúcidos. A esquerda altmaniana, contudo, está fora do alcance da razão faz um tempinho já.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)