Íntima relação com o Sol
Talento e escândalo se unem na trajetória de Yukio Mishima, o homem da renascença do Japão do pós-guerra.
A duas semanas de sua morte programada, com o seu espetacular suicídio público a 25 de novembro de 1970, o mais ocidentalizado e o mais japonês dos escritores nipônicos contemporâneos, clássico e com uma vocação trágica, homossexual, realizou na loja de departamentos Tôbu, em Tóquio, uma mostra retrospectiva de sua vida e obra. No catálogo da Exposição Yukio Mishima (de 12 a 17 de novembro de 1970), ele declara: “Dividi a minha existência de 45 anos, repleta de contradições, em quatro correntes: os Rios do Livro, Teatro, Corpo, Ação e os estruturei de modo a desaguarem no Mar da Fertilidade”. Título esse de sua tetratologia de romances, completada exatamente no dia de seu seppuku (suicídio cortando-se o abdômen) e onde ele dizia ter colocado tudo como escritor.
Rio do Livro – O quanto o ato de escrever e a lavoura se assemelham. A tempestade e a geada não perdoam um segundo sequer de negligência do espírito, que vigia o campo sem cessar e, ao cabo do cultivo ilimitado de poesia e sonho, não dá para ele próprio prever o quão fértil será a colheita.
Prolífico e talentoso escritor de romances, contos, peças teatrais, ensaios literários, filosóficos, políticos e culturais, suas obras completas pela editora Shinchôsha perfazem 36 volumes espessos. Indicado três vezes ao prêmio Nobel de literatura, em 1968 foi preterido por seu amigo mais velho, Yasunari Kawabata (1899 – 1972), o primeiro japonês a receber a distinção. Talvez porque a obra de Mishima tivesse sido influenciada pelo Ocidente, ao passo que a de Kawabata era mais tradicionalmente japonesa.
Em 1949, Mishima debuta oficialmente com o romance que se pode considerar autobiográfico, Confissões de uma máscara, uma espécie de vita sexualis e sacode a cena literária nipônica com a franqueza do protagonista quando garoto, que revela ter ficado tão excitado ao ver uma reprodução da gravura do
São Sebastião de Guido Reni, que se masturbara e tivera sua primeira ejaculação. Em São Sebastião, esse mártir do cristianismo com seu corpo desnudo, trespassado por várias flechas, imiscuem-se, além do corpo formoso, os temas do martírio, da autodestruição e o grande tema da morte.
Essa impressão carnal violenta da juventude fundiu-se com o seu ideal de beleza física masculina e mesmo com o passar dos anos isso não se alterou. O zênite do seu culto ao corpo permaneceu sempre São Sebastião, com sua juventude, sua beleza, seu martírio e o choque do erotismo e morte. Em 1970, poucos meses antes de sua morte, Mishima posa para o fotógrafo Kishin Shinoyama, na famosa pose de São Sebastião, atado a uma árvore, com o rosto sofrido, mas em êxtase.
Soberbo romancista, seus outros romances incluem Cores proibidas, Sede de amor, Mar inquieto, Templo do pavilhão dourado, Casa de Kioto, Depois do banquete, O marinheiro que perdeu as graças do mar, os contos reunidos em Morte em pleno verão e outras histórias e a tetratologia Mar de fertilidade (composta por Neve de primavera, Cavalo selvagem, O templo da Aurora e A queda do anjo).
Influenciado pelos clássicos japoneses, Ogai Mori e Junichiro Tanizaki e por Radiguet, Thomas Mann, Nietzsche e sobretudo Bataille, o doce ventre da obra de Mishima era a idéia da morte. Ele considerava a vida através da idéia de morte e que mais tarde será transmutada para um desejo ardente do trágico. Em suas obras tudo se encaminha para a inevitável catástrofe final.
Rio do Teatro – O drama magnífico onde escorre sangue falso talvez seja uma experiência mais forte e profunda do que as da vida e possivelmente comova e enriqueça as pessoas.
Homem de teatro completo, Mishima foi dramaturgo, ator e diretor de algumas de suas próprias obras. A sua dramaturgia compreende 62 peças. Escreveu shingueki, teatro moderno influenciado pelo teatro ocidental e, no seu caso, sobretudo Racine; dramas de guerra, teatro político e chegou ao experimentalismo extremo do teatro de diálogos com as obras-primas Marquesa de Sade e Meu amigo Hitler; com Peças de teatro Nô moderno e com o Kabuki de Mishima, balé e ópera; traduziu Racine, Goethe e D´Annunzio. Sua estadia numa fazenda de Lins, no interior do Estado de São Paulo, inspirou-o a compor o drama moderno A toca de cupins, e a deliciosa opereta Bom dia, senhora! foi baseada no carnaval do Rio.
Seu método de composição dramatúrgica iniciava-se a partir da cena final. Ele não conseguia começar a escrever se a última imagem, a mais decisiva e de maior impacto, não estivesse perfeitamente definida. Alias, esse processo criativo singular estendia-se também aos seus romances e contos. Exatamente
como no caso de Edgar Allan Poe, do romancista Jô Soares e do humorista Chico Anísio.
Rio do Corpo – Eu estava insatisfeito com o fato de que o espírito, invisível aos olhos, continuasse a criar uma beleza visível. Por que eu também não posso me transformar em algo visível aos olhos? Mas para tal, a condição necessária é o corpo.
No início do outono de 1950, os rostos das pessoas que contemplavam um mural com fotos da múmia do Templo Chûson, numa grande livraria de Tóquio, subitamente pareceram-lhes todos múmias. Fiquei irado com essa feiúra. Como são feias as faces dos intelectuais! Que espetáculo repulsivo o dos intelectuais! A sua adoração pela Grécia e a aversão às coisas intelectuais, que na realidade era uma aversão à sua sensibilidade gigantesca, o levaram a se tornar gradualmente um clássico.
Em 1952, faz sua primeira viagem ao exterior e já no convés do navio President Wilson dá-se o aperto de mãos conciliatório com o Sol. Até então vivera como se recluso num castelo. Em seguida, a sua estada no Brasil, quando visitou um amigo numa fazenda em Lins e assistiu ao carnaval no Rio, bem como a viagem pela Grécia foram dias de embriaguez sob o céu azul e brilhante. Ele confessa que se extasiara ao brincar o carnaval do Rio e diante dos corpos esplêndidos dos atletas que participaram das olimpíadas na Antiguidade; Mishima deve ter sentido na carne o lema mens sana in corpore sano. Os gregos antigos procuravam preservar o equilíbrio entre mente e corpo. Na sua opinião, o espírito e a alma seriam idéias cristãs para se superar o medo da morte e que não existiriam na Grécia antiga. Assim, de volta ao Japão, a partir dos 30 anos, pratica a malhação, o alterofilismo, o boxe, as artes marciais, com treinamento em kendô (esgrima japonesa) e caratê. Empenha-se para transformar o impossível em possível, tornando-se um ideal grego de beleza física. Por fim, quando adquiriu um corpo belo e musculoso como o dos gregos, deu-se o nascimento do ator de teatro, cinema e musicais, bem como do modelo de fotos ousadas, quase sempre desnudo, com o torso bem torneado e os pelos abundantes no peito. O corpo surgiu como uma segunda língua e descortinou-lhe um novo horizonte.
Ele foi o primeiro japonês a destruir o ídolo homem de letras e agitava a mídia ao ir contra a corrente do intelectual-padrão. Quando entrava em cena o teatro, ficava nervoso e cometia um erro sem falta. Certa feita, seu amigo Shintaro Ishihara, atual prefeito de Tóquio, o visitara no camarim e lhe dissera que ainda tremia no palco. Constrangido, Mishima retrucou: “Que nada, seu bobo, não vê que aquilo é o tremor de um gerreiro?”. No cinema, nunca queria aparecer como um escritor, só almejava papéis de yakuza, de patife ou de matador.
Rio da Ação – O rio do corpo abriu-me naturalmente o rio da ação. Num corpo de mulher, isso não ocorreria. Mas o corpo de um homem, devido à sua disposição e função inatas, o conduz à força ao rio da ação, o mais terrível rio das selvas, onde há jacarés, piranhas e lanças venenosas vêm voando de aldeias inimigas.
Durante a guerra no Japão, incentiva-se aos jovens a leitura de Hagakure (sob as folhas), de Jocho Yamamoto, uma espécie de manual de conduta do samurai do século 18, com sua declaração do bushidô: “Descobri que o caminho do samurai (bushidô) é a morte”. Desde adolescente Mishima tinha o Hagakure como seu livro de cabeceira e em 1967 escreve Introdução ao Hagakure.
O culto do corpo o fez descobrir o culto da ação e ele se tornou ativista ultra-nacionalista. Simultaneamente à volta ao corpo físico, o escritor faz um retorno à mitologia, ao seu sonho de restauração do sistema imperial divino. Cria um exército particular, a “Sociedade do Escudo”, o escudo do imperador, porque na sua concepção, “o militar é a forma mais extrema do homem de ação”. O escudo não do imperador enquanto pessoa física e por quem ele tinha pouco apreço, mas do imperador enquanto idéia cultural. Ele acreditava que o caráter básico japonês havia sido atrofiado pela ocidentalização. Daí seu esforço pela preservação da tradição japonesa na língua, na arte e na ideologia.
Philip Shabecoff, correspondente do The New York Times, publicou em agosto de 1970 o artigo “Japan´s Renaissance Man – Yukio Mishima”. Nele, o escritor japonês afirma que a sociedade nipônica moderna é materialista, rica e só quer curtir a vida. Mas tudo isso seria artificial, um alimento enlatado. Ele chegara à conclusão de que deveriam procurar algo genuíno e puro, algo cru: “Eu quero tocar o fogo, mas não há fogo em nossa sociedade atual. Eu quero ser Prometeu. É claro que nós já temos o fogo – o fogo civilizado do gás; mas eu quero o fogo real. Portanto, comecei a fazer exercícios corporais, a praticar o kendô e o caratê. Eu gritei, e quando grito sinto um pouco de fogo e do material cru da vida. Foi uma nova experiência para mim e algo muito difícil de se encontrar na vida moderna”.
Certa vez, indagado por que os japoneses escolhiam o seppuku, o mais doloroso método de suicídio, ele dissera que no período feudal os japoneses acreditavam que a sinceridade se alojava nas vísceras. “Não posso crer na sinceridade ocidental porque ela não é visível aos olhos. Caso houver necessidade de mostrar a sinceridade a alguém, nós temos de cortar o ventre e retirar a sinceridade para torná-la visível aos olhos.” Na última carta ao japonólogo e seu amigo Donald Keene, pouco antes de morrer, ele declara que de há muito desejara morrer antes como um samurai do que como um literato.
No seu ensaio autobiográfico Sol e aço, de 1968, que é o seu mais importante tratado sobre o corpo, Mishima discorre acerca da morte precoce como uma resolução para o dilema inevitável do corpo e do espírito. Por não admitir o envelhecimento natural do corpo e influenciado pelo conceito de bunbu ryodô, o caminho combinado do erudito e do guerreiro, que consta no Hagakure, de que a excelência em ambas
as artes, literária e militar, palavras e ação, só se dá no momento da morte, comete o seppuku em defesa da idéia cultural do imperador, a identidade nipônica perdida.
As obras de Mishima falam sobre o Japão e ao mesmo tempo sobre o homem em todos os lugares.
Darci Kusano
é autora de Os teatros Bunraku e Kabuki – Uma visada barroca (ed. Perspectiva) e livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese O homem do teatro e de cinema Yukio Mishima; colaborou com Paulo Leminski na tradução de Sol e aço, de Mishima (ed. Brasiliense)