‘Amor e anarquia’: série agrada mainstream, enquanto critica o neoliberalismo

‘Amor e anarquia’: série agrada mainstream, enquanto critica o neoliberalismo

Criada por Lisa Langseth, série sueca ‘Amor e anarquia’ da Netflix foge dos estereótipos das comédias românticas com senso de humor peculiar

 

Sofie é uma mulher bonita, inteligente e bem sucedida, de cerca de 40 anos, que mora em Estocolmo, na Suécia, com o marido, a filha mais velha e o filho mais novo. Eles vivem em uma casa adorável e tem uma relação que parece harmoniosa, com trajetórias profissionais independentes e jantares em família. A única peça fora de lugar nesse mundo que está perfeitamente de acordo com as expectativas sociais é o pai de Sofie, um homem que faz protestos e críticas ao modo de vida neoliberal, e parece completamente deslocado do cenário.

Em muitos momentos, Sofie age como a adulta, segundo os critérios vigentes, enquanto o pai é uma espécie de adolescente rebelde, que vive lhe dando trabalho. Apesar das diferenças e dos embates, a relação entre eles é próxima, afetuosa e até mesmo divertida. Olhando um pouco mais de perto, talvez exista mais em comum entre Sofie e o pai do que ela mesma gostaria.

Amor e anarquia é uma série sueca, criada por Lisa Langseth, que está disponível na Netflix. À primeira vista, pode parecer só mais uma produção de entretenimento, uma comédia romântica como muitas outras, o que, em certo sentido, é verdade. Mas não demoramos para perceber que há um senso de humor peculiar, um estranhamento que vai se intensificando e tornando o desenrolar do enredo cada vez mais e mais interessante.

São apenas duas temporadas, a primeira de 2020 e a segunda que acaba de chegar à plataforma, com oito episódios de cerca de 30 minutos cada. À medida que a série caminha, vamos percebendo que existe algo de intercambiável entre pai e filha, e essa construção vai se dando de forma lenta e cuidadosa, o que torna os processos de transformação — que são muitos — mais verossímeis e comoventes.

No início, Sofie, uma mulher de negócios, é contratada como consultora de uma pequena editora literária que enfrenta dificuldades com os desafios impostos pelos novos tempos. Com uma visão pragmática e talvez mesmo cínica, ela passa a criar planos para que a editora se reinvente como empresa e se torne mais lucrativa, mesmo que para isso tenha que atropelar valores e princípios. A literatura, então, passa para segundo plano — talvez terceiro ou quarto —, enquanto algumas pessoas, em especial um editor mais velho apegado à “alta literatura” e pouco disposto a fazer concessões, transformam o processo num embate entre o que podemos chamar de velho e novo modo de vida. Não há simplificações, nem maniqueísmos, e sim personagens e situações complexas, com argumentos ora absurdos, ora sensatos, que tensionam diversas questões essenciais do nosso tempo.

Na editora, Sofie conhece Max, um garoto vinte anos mais jovem, técnico de informática e espécie de faz-tudo do lugar. Contra todas as probabilidades, eles descobrem uma espécie de linguagem em comum, que começa como um jogo. O dia a dia na editora, a relação com Max e os embates com o pai vão aos poucos criando uma rachadura na casca que Sofie construiu para si, bem como em toda a vida que havia estruturado. Para algumas pessoas, pode parecer que a vida da protagonista degringola e que, como o pai, ela passa a flertar com o enlouquecimento.

Mas é justamente a ideia de normalidade e a ideia de loucura que estão em xeque nessa série, esses construtos sociais que na maior parte das vezes servem muito bem à manutenção do status quo. Mesmo um país com mais estabilidade econômica e menos desigualdade social como a Suécia também está profundamente afetado pela lógica neoliberal hegemônica, que molda não apenas as relações de trabalho, mas também as de afeto, e até mesmo a nossa subjetividade.

Amor e anarquia é uma grata surpresa: tem todos os elementos para agradar às expectativas mainstream — é genuinamente engraçada, há amor, sexo e tantas confusões improváveis, além de personagens muito bem construídas —, ao mesmo tempo que não foge da dor e faz uma crítica afiada e consistente ao neoliberalismo, tomando uma posição clara ao final. De outro lado, sem negar o desalento e a gravidade do que vivemos, aponta caminhos, ainda que tímidos, e nos deixa com um aceno de esperança.

 

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Fabiane Secches é psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo

 

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